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18 de novembro de 2006

“A hora e a vez de Augusto Matraga” e “Duelo”, extraídos de Sagarana, de G. Rosa

“A hora e a vez de Augusto Matraga” e “Duelo”, extraídos de Sagarana, de G. Rosa
(Material copiado descaradamente da internet, modificado, editado e transformado. Viva o Ctrl+C + Ctrl+V !)


Sagarana: Neste livro, um conjunto de sagas - histórias épicas, folclóricas, de amor, mistério e aventura – Rosa universaliza o sertão, mistura o popular e o erudito, fecunda de vida o mundo primitivo e mágico dos Gerais. As estórias desembocam sempre numa alegoria e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada conto condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira , dos provérbios e cantigas do sertão.


A onisciência do narrador dos contos em terceira pessoa, como “Duelo” e “A hora e vez de Augusto Matraga”, é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia.

Ø Em Sagarana, “não é a linguagem que se acomoda à realidade, mas a realidade que se transforma em linguagem”.
(Utilização de metáforas, rimas, aliterações, assonâncias = prosa poética)


Duelo

Turíbio todo, ex-seleiro de profissão, foi pescar e avisou a mulher, Dona Silivana, que pernoitaria na casa do primo Lucrécio, no Dêcámão, para tentar o pesqueiro das Quatorze Cruzes. Teve má sorte e mudou de idéia, voltou no mesmo dia, deparando com a esposa em amores com o ex-militar Cassiano Gomes, de grande pontaria e notável habilidade com as armas.

Fingiu então que não voltara. Retornou na manhã seguinte, preparou uma viagem, e, no outro dia, foi espreitar a casa de Cassiano Gomes. Meteu-lhe, pelas costas, um balaço na nuca. Soube depois que o alvejado era Levindo Gomes, irmão de Cassiano e com ele muito parecido. Sua viagem programada tornou-se fuga, porque Cassiano Gomes, logo após o enterro do irmão inocente, pôs-se em busca da vingança. Turíbio, então, passa de perseguidor a perseguido e, embora ao alvejar o homem errado tenha demonstrado incompetência, consegue escapar às perseguições de Cassiano, querendo cansá-lo. O militar sofria do coração e, com o esforço da perseguição, poderia encontrar a morte, por causa da doença.

Após cinco meses e meio de fuga cansativa, Turíbio Todo atravessa o Paraopeba e vai para São Paulo. Cassiano não atravessa o rio e retorna para a Vista Alegre, onde reencontra com a mulher do perseguido. Descansa, consulta um boticário, de quem sabe da precariedade do coração, e apressa o recomeço da caçada. Faz, porém, repouso involuntário no Mosquito, um povoado perdido e longe de toda parte.

Na beira da morte auxilia o capiauzinho Timpim Vinte-e-um, que, por agradecimento, jura cumprir sua vingança. Dona Silivana envia a Turíbio Todo a notícia da morte do ex-amante. Quando de volta, dono da vitória e com planos de levar a mulher para a cidade, Timpim Vinte-e-um o liquida, contra a própria vontade, com uma garrucha de dois canos. A vingança de Cassiano se completa pelas mãos de um capiau, que, de acordo com o que prometera ao militar, em seu leito de morte, encontra Turíbio e inesperadamente o mata.

Alegoria do destino: enquanto os dois se perdem na busca de um fim, algo superior a ambos dispõe o contrário.


A hora e vez de Augusto Matraga

Pela estrutura narrativa, pela riqueza de sua simbologia e pelo tratamento exemplar concedido à luta entre o bem e o mal e às angústias que essa luta provoca em cada homem durante toda a vida , este conto é considerado o mais importante de Sagarana.

Augusto Matraga é um fazendeiro violento e beberrão, criador de casos e boêmio, que não respeita as pessoas nem a família. É o maior valentão de todo o lugar, gosta de briga e de deboche, tira as namoradas e mulheres de outros, não se preocupa nem com sua mulher nem com sua filha e deixa sua fazenda arruinar-se. Sua esposa, Dionóra, suporta-o pelo medo que tem da reação do marido se tentar se separar. A filha, por sua vez, não consegue entender por que o pai age dessa maneira.

A mudança na vida de Matraga vem depois de uma emboscada que sofre, pois seus capangas, mal pagos, põem-se a serviço de seu maior inimigo, Major Consilva. A mulher e a filha vão embora com Ovídio Moura, que quer Dionóra por companheira.

Nhô Augusto vai até a fazenda do Major para se vingar, mas seus ex-capangas o espancam, marcam sua nádega direita com o ferro quente de marcar o gado do Major e o jogam numa valeta crendo que ele já estava morto. Augusto Matraga, moribundo, é socorrido por um casal de pretos, que consegue o milagre de fazê-lo sobreviver aos ferimentos.

Quando se recupera, Augusto vai para longe com o casal, tentando acertar o passo de sua vida, perdida e desregrada. Passa, então, um período de ascese, em que busca o sofrimento como forma de purgar os pecados. Num lugarejo bem afastado trabalha duramente de manhã à noite, é manso servidor para todo mundo, reza e se arrepende de sua vida anterior. De homem boêmio e violento, que maltratava a mulher, a filha e todas as pessoas que o rodeavam, Augusto Matraga transforma-se num penitente, num pecador em busca de ascese, da conversão ao mundo de Deus.

Um dia, passa o bando do destemido jagunço Joãozinho Bem- Bem, que é hospedado por Matraga com grande dedicação. Quando o chefe dos jagunços lhe faz a proposta de integrar-se à tropa e receber ajuda deles, Matraga vence a tentação e recusa. Quer ir para o céu, "nem que seja a porrete", e sonha com um "Deus valentão".

Depois de se dedicar durante muito tempo ao trabalho, sem conforto ou diversão, Augusto decide voltar, ao saber que a mulher estava feliz com Ovídio, mas a filha havia se prostituído.

Na viagem, reencontra o chefe jagunço Joãozinho Bem-Bem, que havia hospedado em sua casa, e com quem fizera amizade.

Mas Augusto e o chefe jagunço se desentendem, pois este queria vingar a morte de um capanga e, na ausência do assassino, pretendia matar alguém de sua família. Matraga acha isso injusto e enfrenta o “parente” Joãozinho Bem-Bem.

No final do conto, ambos morrem, mas Augusto tem a sensação do dever cumprido: sua hora e sua vez haviam chegado.

Trecho do diálogo entre o padre e Nhô Augusto, quando este resolve buscar a absolvição de seus pecados:
“- Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um potro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com seta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei seu coração semelhante ao vosso...”(...) Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.
- Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...”

Augusto Esteves, Nhô Augusto e Augusto Matraga são os passos da travessia de um homem ao encontro de seu destino – buscado e construído na dor, mas também na alegria, no encontro com o sagrado e no desfrute dos prazeres mundanos.

1 de novembro de 2006

eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

1) Sobre o título:
RuffatoTalvez eu não seja o mais indicado para responder a questão. Mas, tentarei. O trecho do poema da Cecília Meireles, que serve de epígrafe ao livro, indica uma possível leitura: "eles eram muitos cavalos / mas ninguém mais lembra / de sua pelagem, de sua cor, de sua origem". Assim como ninguém mais lembra daqueles personagens que busquei retratar ao longo dos fragmentos do livro.

↔ A primeira epígrafe relaciona-se à despersonalização que ocorre nos grandes centros urbanos: o indivíduo se transforma em “multidão”.

↔ A segunda epígrafe, “Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios”, extraída do Salmo 82, indica a falta de juízos de valor por parte do “narrador”. Há uma preocupação em descrever, não em julgar, por isso muitas vezes a enumeração substitui a narração.
2) Sobre o livro:
RuffatoQuando escrevo, antes de se tornarem palavras, sirvo-me de imagens. Tento captar o ângulo e a luz para expressar exatamente o que gostaria. Daí a influência da fotografia: o olhar é o olhar de quem tenta ir além da cena que se desenvolve à sua frente. Mas o Eles eram muitos cavalos está muito impregnado também de outras linguagens não-literárias: artes plásticas, cinema, teatro, jornalismo, propaganda, música.

3) Sobre o processo de escrita do livro:
Ruffato
Comecei a pensar o que poderia oferecer como imigrante; eu falei "que contribuição posso dar para São Paulo? Como poderia tentar entender São Paulo?". Então, comecei, durante praticamente uns oito, nove meses, a fazer um monte de experiência. Por exemplo, não há uma coisa escrita que seja só fruto da imaginação. Para a cena da luta de boxe, eu fui ver uma luta de boxe; o estádio de futebol, a marcha das diretas...
Enfim, eu pensei: como a cidade se comporta o dia inteiro? Então, peguei um dia da cidade, não me lembro exatamente qual, e comprei os jornais todos daquele dia e mais aquele monte de informações e guardei. Quando foi julho de 2000, fui para Cataguases e fiquei de férias um mês, enfiado na casa de minha mãe, sozinho. Peguei cola, tesoura, lápis, papel, comecei a escrever à mão, pegava uma notícia de jornal, tentava entender o que tinha por trás daquela notícia, contando experiência pessoal também, e tal. Montava alguma coisa, mas sempre com esse dado da realidade. Depois que fiz isso tudo, deixei de lado, peguei o computador, sentei e fui escrever. Foi um exercício muito interessante. Demorei pra caramba para escrever porque eu não escrevo, reescrevo, então, escrevo, escrevo, escrevo, escrevo até chegar... O resultado foi muito grande, fui descartando um monte de coisas que não se encaixava bem no que eu queria, ou que não conseguia encaixar cronologicamente ou no qual a história não fazia parte.

4) Sobre a escrita:
Ruffato
São inegáveis as mudanças provocadas pelo aparecimento do cinema, da tevê e da internet. No meu caso específico, essas mudanças, principalmente na maneira de descrever a realidade, foram incorporadas antropofagicamente à minha própria linguagem. Eu transformo tudo em linguagem.

5) Sobre literatura e realidade:
Ruffato
Toda literatura está perto da realidade, pois se nutre dela. Há graus de proximidade diferentes. Mesmo quando se trata de uma literatura escapista, a realidade é a referência. No meu caso, a realidade que me interessa é a física - cheiros, sons, volumes, cores e sabores - que informam a realidade metafísica - sentimentos, desejos, angústias, culpas, remorsos, vinganças etc etc. Minha tentativa é a de reproduzir seres de carne e osso em papel. Daí ser tão real. Daí ser tão ficcional. Porque, entre a realidade e a ficção - a poesia.

↔ O uso de referências urbanas contemporâneas e a utilização de uma linguagem marcada pela rapidez, por expressões atuais, por cortes bruscos na narrativa e pelo excesso de informação dão uma sensação de realidade à escrita.

folhetos de simpatias, classificados de jornal (emprego, relacionamentos, eróticos), boletim de previsão do tempo, horóscopo, numerologia
gírias, utilização da linguagem coloquial e de termos chulos
retratos de “personagens” que habitam o grande centro urbano, como, por exemplo, o porteiro, o evangélico, o playboy, o adolescente problemático, casais separados, um taxista, um índio marginalizado e bêbado, uma roda de amigos, um médico, o mendigo, um desempregado, o morador de rua, uma atriz decadente, um casal numa casa de swing, o traficante, a prostituta, um pastor de rua, o acessor político,o corrupto engravatado, um internauta, o torcedor de futebol.
presença de referências de todas as classes sociais e retratação de diversas situações comuns numa grande cidade
Ex: diálogos burgueses sobre viagens ao exterior, expressão de desespero diante da falta de dinheiro para comprar comida para o filho recém-nascido, contraste entre um operário morto e os clientes de um restaurante elegante, cotidiano asfixiante de trabalhadores sem perspectiva de melhora, medo de ser assaltado no trânsito e ser assassinado, dificuldades no relacionamento conjugal ligadas à opressão causada pela vida na periferia, angústia diante da impossibilidade de ajudar crianças que trabalham como ambulantes, agressão de jovem de classe média alta contra porteiro, família de miseráveis e marginalizados se espremendo em um barracão imundo, depredação de uma escola pública por usuários de drogas, relacionamentos entre pais divorciados e seus filhos, preocupação das famílias com tiroteios freqüentes, pastor que vai até o centro pregar aos berros o evangelho e expor sua regeneração, prostituta prestes a ser agredida que se lembra de um antigo cliente, rico e gentil

↔ As situações, as emoções e as reflexões são descritas tanto pelas próprias “personagens” quanto por um observador que não se preocupa em julgar, mas retratar. Muitas vezes, a voz da “personagem” invade a narrativa e a estruturação do texto, marcado pela falta de pontuação constante ou montado a partir de fragmentos aleatórios de frases – é comum que muitos dos “contos/fragmentos/capítulos” terminem bruscamente, como se a frase tivesse sido abandonada. Esse entrecruzamento de vozes narrativas contribui para formar uma composição sólida da realidade urbana brasileira, pois toda ela é marcada pela diversidade mas, ao mesmo tempo, pela exclusão e pelas desigualdades sociais.

↔ A polifonia, a variedade de vozes na narrativa, deve-se à diversidade de “personagens” anônimas que desfilam pelas páginas, surpreendidas nos dramas do seu cotidiano e nos flagrantes da sua existência por um narrador-fotógrafo. São Paulo se tona uma cidade-personagem, e na verdade é ela que nos está sendo narrada, a partir de todas as histórias que se atropelam para formar um grande mosaico. A página negra no final é um negativo queimado, um blecaute, um cochilo ligeiro sem sonhos, a própria noite densa e silenciosa, perturbada pelo gemido de alguém lá fora que acorda um casal amedrontado com a violência urbana, que, por precaução, resolve ficar quieto, pois não há nada a ser feito – “Amanhã a gente fica sabendo”.