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[PROSA_Oficina de textos_UFMG 2011] Salinha para resolução de questões abertas de Literatura (vestibular UFMG 2011) . Informações: emaildoaloisio@yahoo.com.br

19 de maio de 2008

Maíra (Darcy Ribeiro)_trechos selecionados

Maíra (Darcy Ribeiro)

Morte de Anacã:

“No vasto mundo dos poucos mairuns viventes e dos muitos que viveram e morreram, corre a notícia. O tuxaua Anacã decidiu que nesta noite dos vivos ele deitará para dormir, como sempre, mas só acordará de madrugada, morto-vivo, no fim do dia dos mortos, para ver a luz do sol negro iluminando”. (p.38)

“As rajadas de vento não lavam o ar, apenas revolvem a catinga e a devolvem concentrada. Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e dominador”.(p.67)

“Anacã morre para que os mairuns renasçam. Simultaneamente se vão dissolvendo na morte suas carnes regadas cada dia e renascendo seu povo nos ritos que reacendem em cada um o gosto de comer, a alegria de cantar, o prazer de dançar, a coragem de ousar, o gozo de foder”(p.99)

Major Nonato dos Anjos sobre Alma e os índios:

“Habituados com suas mulheres que parem como cachorros ou animais selvagens, não deram qualquer atenção especial ao parto dessa mulher branca e civilizada (apesar de extravagante) que estava no meio deles. Ela, vendo-se sozinha, numa praia, com as dores do parto que podem ter sobrevindo de repente, não teria resistido. Foi vítima de sua própria afoiteza em meter-se, aventurosamente, por essas matas e aqui deixar-se prenhar” (p.226)

Alma sobre Isaías:

“Ele é triste, feio e triste, coitado. Nunca pensaria que fosse índio. Nem imaginava um índio assim de franzino. A única coisa viva nele é o olhar aceso. Parece calmo, quando fala, mas é controle. É defesa. Na verdade é um desesperado que nem eu. Não, é um desenganado. E daí? Desenganado ou desesperado, dá no mesmo.”(p.137)

Isaías:

“A verdade está, porém, com o padre Ceschiatti: minha virtude é negativa. Mais filha da fraqueza que da força. (...) Não sou, nunca fui nem serei jamais Isaías. A única palavra de Deus que sairá de mim, queimando a minha boca, é que sou Avá, o tuxauarã [herdeiro da chefia de guerra dos mairuns por via matrilinear], e que só me devo a minha gente Jaguar da minha nação Mairum”. (p.43-45)

“Não sou inocente. Não sou culpado. Sou um equívoco.(...) Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glória sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada”. (p.76)

“Sou o outro em busca do um. Sou o que resulto ser, ainda, nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram”.(p.107)

“Estou seco, meu Pai, como a fonte que secou sozinha no deserto, sem matar nenhuma sede. Tu renunciaste a mim. Eu também renuncio a ti. Minha vergonha, antes, era meu orgulho: pensava que conduzia no peito, como um luzeiro, a Tua marca. Sabia que a conduzia. Meu orgulho agora é minha vergonha: é saber que sempre estive vazio de ti, porque esta é a Tua vontade. (...) Eu era a minha obra. Agora sei que era uma moeda falsa. Minha santidade era uma vaidade.

Maíra : Remui

“O Avá veio e não veio. Este que veio é e não é o verdadeiro Avá. (...) Este é o que restou de meu filho Avá, depois que os pajés-sacacas mais poderosos dos caraíbas roubaram sua alma. Ele anda por aí, meio dormindo, perdido para si, perdido para nós. Atrás dos seus olhos está a névoa, a cegueira dos que já não têm alma para morrer. Ele não é mais um vivente mortal, como nós. (...)

Nós, os mairuns, estamos acabando. Conosco acaba Maíra-Monan, Mairahú, Maíra-Ambir o nosso Criador. Quem começou tudo isso foi mesmo Maíra-Coraci.(...) Quem sabe o Velho, o Sem-nome, manda outro arroto dele, para entrar em alguma Mosaingar? Aí, nasceriam outra vez os filhos gêmeos do Senhor, para começar tudo de novo”(p.258).”

Alma :

“Que será este meu filho ou esta minha filha? Será mairum como eu quero que seja? Será um branco, um caraíba, no sentido de civilizado e de cristão, como eu fui, como eu era, como ainda sou, apesar de mim? (...) Aqui um filho pertence à mãe. É do clã da mãe. Respeitará ao tio, nunca ao pai. Este meu filho, por isso, apesar de tão mairum que é, é um filho meu, do clã que não tenho. (...) Mas é muito ruim para uma pessoa ser apenas um pouco alguma coisa. Fica dependurada entre dois mundos, como este pobre Isaías, ou como eu mesma” (p.328)

“O mal de Isaías é ser ambíguo. Ser e não ser. Não é índio, nem cristão. Não é homem, nem deixa de ser, coitado. Ser dois é não ser nenhum, ninguém”. (p.346)

Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto_Anotações

Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto

O livro Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto, publicado em 2004, título poético, por remeter aos Paraísos artificiais (escritos sobre o ópio, o haxixe e o vinho) de Charles Baudelaire, reúne nove contos, a maior parte escrita nos anos 70 e reescrita ao longo das últimas décadas. A obra é resultado de obsessão e, também, depuração. Britto diz ter escrito cerca de 30 contos durante o ano e meio (entre 1972 e 73) que passou em San Francisco, na Califórnia, estudando cinema. Quando relidos, mais tarde, quase todos foram jogados fora. Os restantes começaram a ser burilados.

“- Como nasceu o seu primeiro livro de contos, Paraísos artificiais (a ser lançado até o fim do ano pela Companhia das Letras)?

- No início dos anos 70, fui estudar cinema na Califórnia, mas o que mais fiz foi escrever contos. Larguei o curso, voltei ao Brasil e continuei a trabalhar naqueles contos. Desde então, escrevi mais três, o último no ano passado. É o mais longo do livro. Não há fio condutor, unidade temática ou estilística.”(BRITTO) (?)

Os contos contidos neste livro capturam sempre situações extremas - que podem ser uma doença sem nome ou um mero ônibus errado - e encontros embaraçosos, quase sempre do protagonista consigo mesmo. As narrativas conduzem seus protagonistas e narradores a visões nuas e dolorosas de si mesmos: mais alheios, mais tortuosos, mais covardes do que gostariam de ser.

Possíveis influências literárias

  1. Samuel Beckett: a solidão do homem, o teatro do absurdo, a imobilidade tipicamente beckettiana
  2. Franz Kafka: clima sufocante dos contos, conseqüências inesperadas e absurdas, o próprio absurdo da existência
  • Contos solipsistas: vida ou conjunto dos hábitos de um indivíduo solitário
  • A escrita dos narradores como saída para a inércia
  • A convivência nitidamente desconfortável entre as personagens
  • Vários personagens dos contos recorrem ao ato da escrita para encontrar seus supostos “paraísos artificiais”
  • Diálogos verossímeis e prosaicos, através do uso da coloquialidade, aliada a presença constante da ironia e da auto-crítica
  • Os contos são repletos de tensão narrativa, mas o clímax muitas vezes não se encontra no final, já que os desfechos são frequentemente prosaicos e propositalmente frustrantes: cabe ao leitor, muitas vezes, “completar” o final das narrativas
  • Os finais sempre ficam em aberto, pois não há uma solução definida e definitiva para os conflitos, tramas e obsessões das personagens expostos nas narrativas
  • A narração em 1ª pessoa, presente em 8 dos 9 contos do livro, auxilia esse caráter parcial, limitado e incompleto dos textos, que propositalmente “frusta” as expectativas do leitor. Esse “jogo” com o interlocutor é característico da literatura contemporânea, que questiona as verdades totalizantes e a definição clara e exata da realidade.
  • Situações kafkianas: as personagens encontram-se em situações desesperadoras ou inquietantes, ficam perturbadas pela falta de motivos aparentes para elas e não possuem saída ou escape. Fazem questionamentos e cogitações sem, no entanto, chegar a conclusão alguma.

Os paraísos artificiais

  • Percepção e sensibilidade para apurar a existência através da reflexão literária
  • Modificação das percepções = artificial, mas verdadeira e verossímil
  • Paraíso: o escritor como um demiurgo
  • Finitude do ser X perenidade do texto literário
  • Reflexões prosaicas sobre o incômodo e o desprazer, e a busca do alívio momentâneo = Literatura

Uma doença

  • Desenho de mapas que representassem todas as superfícies ao alcance da vista do narrador
  • O narrador passa todo o tempo deitado, analisando curvas, manchas, rachaduras e acidentes geográficos de paredes, tetos, chãos e até do seu lençol.
  • “Além disso, a rachadura estava me entediando, por ser um fenômeno demasiado previsível. Então resolvi escrever este breve relato”. Então = por isso ou portanto ? causa e conseqüência ou conclusão ?
  • Inevitabilidade da morte
  • Rachadura: decomposição, estilhaçamento, ruptura, quebra, desestruturação

Uma visita

  • Questão do duplo (POE):

1) narrador que está no 3° andar

2) narrador que está embaixo e pede a chave

Onde o narrador se encontra afinal?

  • Desencontro entre os iguais: ambos não se reconhecem, ambos inexistem em suas posições, ambos são sujeitos determinados, ambos desaparecem = ambos não conseguem se distinguir nitidamente, mas encontram no outro traços identificáveis

Um criminoso

  • Quem é afinal o criminoso? O voyer paranóico ou as pessoas de fora do apartamento que ele observa
  • “O copo escorrega da minha mão e se espatifa, à toa , à toa.” = a trana, a história frágil
  • Ditados: uso do senso comum, hipóteses falhas
  • Frustração das expectativas do narrador e do leitor

O companheiro de quarto

  • Através do discurso simplório, cruel e invejoso do narrador-personagem, percebe-se um mundo de transtornados: do sádico narrador ao inocente companheiro de quarto.
  • sexualidade ambígua? = a heterossexualidade de superfície provavelmente convivendo com, ou encobrindo, a homossexualidade de fundo
  • pintura da condição social de uma juventude de problemática inserção no mundo urbano, que divide apartamento e atrasa aluguel.
  • A planta representa o desconhecido, a fascinação e , ao mesmo tempo, o incômodo
  • O estoicismo do companheiro de quarto desconhecido remete à natureza da planta
  • A beleza do desconhecido e da planta fazem o narrador se lembrar de sua miséria e amargura íntimas
  • Dificuldade de lidar com o desabrochar e o perfume da flor: dificuldade da relação com o outro porque, especularmente, ele reflete a insegurança, o desamparo e a solidão do narrador

Coisa de família

  • Incômodo gerado num estrangeiro, longe de sua terra, ao passar o Natal com uma família calada, cujas falas são reticentes
  • Desconforto e constrangimento em estar junto aos problemas alheios, sem conseguir saber quais são
  • Título remete a uma generalização dos problemas familiares

O 921

  • clima policial que mostra um sujeito afogado em uma sucessão de equívocos = ônibus 488 e 921
  • o ônibus 921 e o Dr. Lustosa = “fantasmas” = ambos ao mesmo tempo existem e inexistem, são citados e vistos, mas não conhecidos
  • tanto o velho quanto os policiais levam o narrador para lugares distantes e afastados de seu destino desejado
  • tanto o velho quanto o narrador se utilizam da figura do Dr. Lustosa como “proteção”
  • o narrador é uma “vítima inocente” da ironia do destino = situação kafkiana

O primo

  • Narrado em 3ª pessoa
  • Cachorro: Kafka
  • Ivan vem do interior para estudar num colégio interno de padres.
  • Seu incômodo deriva de sua resistência e de sua postura de defesa para com os amigos do primo Reginaldo, mal falado pela família = insegurança de Ivan ao chegar numa cidade desconhecida, em busca de liberdade
  • “Aqui ninguém é de ninguém, (...) E todo mundo é de todo mundo” / “Sei lá. Só sei que eu não sou de ninguém”.
  • Antipatia mútua: ambos eram os “rejeitados” pela família, arrogantes e pretensamente independentes
  • Início da nova vida no Rio: ao invés de apoio, Ivã encontra um ambiente sufocante, com regras próprias e situações embaraçosas

Os Sonetos Negros

Personagens:

  1. Tânia (narradora-personagem)
    Matilde Fortes: escritora dos “Sonetos Negros, objeto de estudo de Tânia
  2. Gastão Fortes: marido de Matilde, com quem Tânia travará contato,
  3. Clemenceau: técnico de informática da pequena São Dimas
  4. Dona Aspásia: empregada de Gastão
  5. Ercila: orientadora da tese de Doutorado de Tânia
  6. Leandra: protegida de Ercila, também escreve sobre Matilde, mas a partir de uma perspectiva feminista
  7. Sérgio: ex-namorado de Tânia, que lhe manda e-mails
  8. Olavo: gerente do hotel de São Dimas

  • pesquisa sobre “Os sonetos negros” de Matilde Fortes = Farsa literária, "diário" de uma viagem de iniciação, de um desencontro que põe em xeque as certezas do politicamente correto e expõe uma jovem doutoranda às surpresas que a vida e a literatura não param de tramar
  • Através da relação entre a narradora, Tânia, e sua orientadora, Ercila, e da menção à tese e à pessoa de Leandra, também protegida por sua orientadora, expõe-se cruelmente os vícios e as hostilidades, os aborrecimentos e as peculiaridades negativas típicos do mundo da pesquisa acadêmica literária, como o pedantismo da criação de termos analíticos para a literatura ("matildeana", "clitoricêntrica", “escritura”).
  • No início, o objetivo da narradora é apenas checar os manuscritos originais da Poesia Reunida de Matilde e, através do cotejamento entre as primeiras edições e as atuais, estabelecer uma edição crítica da grande poeta Matilde Fortes, na verdade, provavelmente uma poetisa fictícia.
  • Acaba tendo longas conversas com o viúvo de Matilde, Gastão Fortes, e descobre nos manuscritos que ele lhe entrega, por estar à beira da morte, algo que no início parece confirmar certas leituras feministas da obra: Matilde teria escrito os sonetos para uma mulher, pois as palavras estavam trocadas — ao invés de destinados a um homem, seriam destinados a uma mulher. Aparentemente, a poetisa se encaixaria numa “tradição” de poesia de poesia lésbica (verso sáfico: tônicas nas posições 4, 8 e 10).
  • há um desfecho inesperado: os poemas haviam sido escritos pelo marido, Gastão, não pela literariamente ambiciosa e arrogante Matilde. A novela, muito bem humorada, usa parodisticamente os mecanismos do conto policial, e é uma sátira aos costumes acadêmicos e literários nacionais.
  • Final : implicações acadêmicas e pessoais da “descoberta” da farsa literária = ironia e metalinguagem = FRAUDES LITERÁRIAS

  • Vargem dos Índios, São Dimas (lugares fictícios?): panorama desconsolado e crítico do interior brasileiro

  • São Dimas: padroeiro dos ladrões, estelionatários, falsários e criminosos em geral

· As Canções de Bilitis foi publicado em 1894 e causou um grande alvoroço na Europa. Os poemas do livro, de autoria de uma tal de Bilitis - que seria uma contemporânea de Safo, nascida na mesma Lesbos - fizeram um sucesso estrondoso. Para se ter uma idéia, Debussy chegou a musicar três dos poemas do livro. Helenistas de toda a Europa correram para estudar a grande descoberta feita pelo escritor Pierre Louÿs que, além de traduzir os poemas do grego, escreveu o prefácio que contava um pouco da história da poetisa lésbica.

O livro vendeu horrores na virada do século e continuou vendendo bem nos anos seguintes. Mas em 1925, um pouco antes de morrer, Louÿs fez uma revelação prá lá de bombástica: os poemas eram de autoria dele próprio e a tal de Bilitis nunca existira de fato. A polêmica estava instaurada - os helenistas que haviam autenticado a descoberta ficaram sem ter onde enfiar a cara e Louÿs, cuja carreira já não ia bem das pernas, foi completamente ridicularizado. A farsa que Louÿs conseguiu sustentar por quase 30 anos, uma brincadeira bastante espirituosa, não foi entendida pelo círculo literário francês. Uma pena pois, a despeito de seu caráter farsesco, As Canções de Bilitis reúne alguns dos poemas lésbicos mais sensuais jamais escritos por um homem (à maneira de Safo) e influenciaram várias gerações de escritoras. (http://mixbrasil.uol.com.br/cio/cio20000/bolacha.htm)

  • Paulo Henriques Britto, professor de pós-graduação da PUC do Rio de Janeiro, diz:

"O que me incomoda muito no meio acadêmico é a politização do fenômeno literário. Nada contra a correção política, mas por que ver os escritores como gays, negros, mulheres antes de vê-los como escritores? As pessoas importam discussões norte-americanas sem adaptá-las para cá".

“ (...)sem um pouco de ironia fica difícil conviver com qualquer ambiente de trabalho, não é? Creio que o mundo acadêmico, sob esse aspecto, não é melhor nem pior do que nenhum outro. (...)Não vejo a minha posição como contrária à academia, e sim como diferente da que é defendida por muitos (mas não todos) acadêmicos da área de tradução. Talvez essa minha oposição a autores muito influentes, como Fish e Derrida, e a uma tendência, difundida na área de Letras, a escrever de um modo um tanto, digamos, rebuscado (para não dizer ininteligível), tenha me levado a adotar uma visão irônica. Mas não tenho nenhum preconceito contra a academia, contra a crítica universitária. Temos um bom número de críticos universitários que fazem leituras interessantes de obras literárias, se bem que — verdade seja dita — muito mais no campo da ficção do que no da poesia.”

Paraísos artificiais (Paulo Henriques Britto)_Trechos

Paraísos artificiais (trechos dos contos)

Os paraísos artificiais

Você está sentado numa cadeira. Você está sentado nesta cadeira já faz bastante tempo. Você fica sentado nesta cadeira durante muito tempo, diariamente. Você não conseguiria ficar parado em pé por tanto tempo; logo você ficaria cansado, com dor nas pernas. Também não conseguiria permanecer tanto tempo assim deitado na cama, de cara para o teto; essa posição se tornaria cada vez mais incômoda com o passar do tempo, até fazê-lo virar-se para um lado(...).

(...) É bem verdade que tais trocas de posição não proporcionam a sensação quase orgástica que você experimenta quando, deitado na cama, depois de passar muito tempo voltado para um lado, cada célula de seu corpo é como uma boca clamando: "A melhor posição seria estar virado para o outro lado", e você finalmente se vira; na cadeira, tudo o que acontece é uma leve sensação de desconforto ser substituída por uma leve sensação de conforto. Porém tudo é uma questão de escolha, e entre, de um lado, uma situação em que breves períodos de intenso prazer se alternam com longos períodos de conflito entre inércia e desconforto crescente, e, de outro, uma situação em que perdura uma sensação mais ou menos constante de bem-estar, sem grandes variações, você prefere a segunda. É um direito seu; o corpo é seu.

(...)

Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira, você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores. Esses vestígios mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de sua existência no espaço; e é por isso que você não é eterno, não pode ser eterno, pelo mesmo motivo que um lápis ou uma borracha não podem ser eternos.

Mas há uma maneira simples de alterar essa situação - quer dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.

Uma doença

Agora só me restava examinar e documentar meu próprio corpo, as proporções entre os membros, as mudanças nele provocadas pelo progresso da doença; e foi o que fiz, ao mesmo tempo que reexaminava periodicamente cada um dos mapas já prontos, do teto, do chão, das paredes, da maça, do lençol, neles assinalando as mudanças sofridas pelas superfícies representadas. Foi então que tive uma idéia ambiciosa: ocorreu-me estudar as possíveis interrrelações entre os diferentes itens mapeados e catalogados. Assim, talvez eu viesse a constatar que, enquanto descruzara as pernas sob o lençol, uma nova mancha tinha surgido na casca da maçã ou na parede, ou uma rachadura no teto avançara um pouco; enfim, eram tantas variáveis que o número de combinações era — para uma inteligência humana, necessariamente limitada — infinito.

(...)

Durante algum tempo não fiz outra coisa a não ser observar a rachadura e meu corpo, tentando resolver o problema; por fim, cheguei à conclusão — óbvia, aliás — de que, com os dados de que eu dispunha, a questão era, a rigor, insolúvel. Além disso, a rachadura já estava me entediando, por seu um fenômeno demasiado previsível. Então resolvi escrever este breve relato.

Uma visita

Pois bem, pensa [o sujeito que está embaixo], eis meu amigo à janela do terceiro andar, como já o vi tantas vezes antes; sem nenhuma saudação introdutória, que a amizade que nos une dispensa essas formalidades, peço-lhe que me jogue a chave, como tantas vezes ele já fez, porque passa das dez e o porteiro foi dormir. (...) Começo a achar que alguma coisa terrível está acontecendo, embora não faça a menor idéia do que possa ser; na tentativa de compreender seus motivos, imagino-me em seu lugar, na exata posição em que ele se encontra à janela, as duas mãos pousadas no parapeito, a cabeça quase imóvel, o olhar fixo no amigo que três andares abaixo, no meio da rua, o encara com olhar tão fixo quanto o dele, e no entanto diferente, porque em seu olhar há uma súplica que não foi atendida, uma pergunta sem resposta; é um olhar que não contém mais surpresa, só uma interrogação, a expectativa de uma palavra ou gesto que explique tudo. (...)

Percebo que afinal ele compreendeu que minha imobilidade é voluntária, e não sinal de qualquer coisa de terrível que esteja acontecendo comigo; (...) minha hesitação momentânea converte-se numa decisão irrevogável; é tarde demais, ele já desce a ladeira escura sem olhar para trás, com o passo firme e ligeiramente apressado dos que não pretendem voltar jamais.

Um criminoso

Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso. (...)

Mas é preciso prestar atenção nos fatos, não nas hipóteses, e eu ia observando que o outro fato novo na rua é a presença de um rapaz tentando atravessar a rua (...) tudo está se encaixando nos devidos lugares, é preciso reequacionar tudo o problema, agora não se trata mais de (a) uma mulher solitária num apartamento vazio, de um lado, e (b) um casal de nordestinos excitadíssimos, do outro, porém há um terceiro elemento, a saber: (c) um rapaz tentando atravessar a rua. (...) ele não é um porteiro nordestino, está drogado mas está bem vestido, pode muito bem ser amigo da mulher sozinha, ou namorado dela, e quando a mulher for abrir a porta do apartamento para o rapaz, o casal que já está dentro do prédio pode entrar no apartamento junto com ele, (...) o rapaz tem que atravessar a rua depressa, é importantíssimo, antes que o vizinho repare que o nordestino tem uma navalha na mão (...) o homem prevenido vale por dois, o bom cabrito não berra.

O companheiro de quarto

Olhei pras folhas secas e comecei a achar que se e olhasse pra elas mais um pouco e fizesse um esforço eu ia sacar o que elas me lembravam. Mas não fiz esforço nenhum. Em vê disso, olhei os pros botões que já tinham brotado nos galhos mais de cima. Um dele estava quase abrindo. Logo ia virar uma flor incrível. A não ser que alguém arrancasse antes. Arranquei o botão. Depois arranquei outro. Arranquei todos eles. Aí comecei a arrancar as folhas, uma por uma, tentando não olhar direito pra elas. Aí quebrei o caule em três pedaços. Quebrou fácil, fácil, e um cheiro forte encheu o quarto inteiro, como se alguém tivesse quebrado um vidro de perfume.

Coisa de família

Nunca me sentira tão estrangeiro assim, tão fora de meu lugar natural; por um momento odiei o rapaz, todos os presentes naquela sala, a criança inclusive, o país inteiro onde eu teria de viver por alguns anos mais. (...) De repente ouvimos um ruído estridente no segundo andar, um barulho de vidro estilhaçando. Logo em seguida o barulho se repetiu, acompanhado de um palavrão gritado a plenos pulmões. (...) As mãos de meu vizinho, brancas, espalmadas sobre a toalha branca, tremiam. A cabeça estava baixa, os olhos voltados para algum ponto vago, na posição indecisa entre se levantar de vez e tornar a sentar-se. As vergonha era tamanha que acabei sendo contagiado por ela (...).Levantei os olhos e vi a menina sentada em sua cadeira, ainda com o rosto molhado de lágrimas, balançando as pernas e cantarolando baixinho.

O 921

Pensei no dr. Lustosa. Onde estaria ele agora? Sem dúvida, longe dali, absolutamente indiferente a mim, a todos nós, inclusive ao velho que havia morrido dentro do 921. Tentei pensar no velho, mas só consegui sentir uma vaga sensação de pena, uma tristeza besta, quase abstrata. O velho, o 921... tudo aquilo me parecia muito distante, talvez por efeito da penumbra, do sono, do ronco uniforme do carro, agora quase o único som que chegava aos meus ouvidos na estrada cada vez mais vazia, mais longe de tudo. Mas aquele não podia ser o caminho de casa. Virei-me para o Farias e perguntei: “Estamos muito longe da cidade?”

Ele olhou para mim e disse, em voz baixa: “cada vez mais longe”. (...)

“Vocês não estão me levando para casa”, protestei, mas sem muita ênfase, já de olhos fechados. “O 921...”, comecei.

“Uma puta casa. É ou não é, Bigode?”

Se o Bigode respondeu alguma coisa, não ouvi. Eu já dormia profundamente.

O primo

Não sabia de que modo aquela sua solidariedade inconfessável com o primo Reginaldo afetaria sua maneira de viver, suas opiniões e atitudes em relação à família, às coisas em geral. Certamente não o fizera defender o primo naquelas sessões de queixas acusações a que a família costumava se entregar, nas tardes de domingo, durante o cafezinho, ao redor da mesa do jantar; e essa lembrança de certo modo o incomodava; ua atitude lhe parecia hipócrita. (...)

Logo em seguida Reginaldo falou outra vez, agora num tom cheio de condescendência e desdém, enquanto se levantava da cadeira: “E esse ano, você vai criar vergonha e estudar direito?”. Ivan sentiu a confusão se dissipar na mesma hora; levantou-se também, e durante alguns instantes os dois se encararam. Agora não havia ambigüidade nenhuma, tudo estava perfeitamente claro, a antipatia era mútua, visceral, indestrutível; nada poderia alterá-la. Ivan queria dizer alguma coisa que ferisse, fazer um comentário inteligente, irônico. Mas quando deu por si já tinha respondido: “Talvez”. Na mesma hora se arrependeu de sua fraqueza, não havia dúvida de que Reginaldo tinha vencido.(...)

Os Sonetos Negros

E-mail de Tânia à orientadora:

Cara Ercila, (...) Não consigo ler a poesia de Matilde como um texto essencialmente feminino. Os “Sonetos negros” são um tanto atípicos na obra de Matilde: em quase todos os sonetos a voz lírica se dirige a um “tu”, o “estranho”, o “amado”, o “adversário”. Já o resto da poesia dela é de uma impessoalidade quase cabralina. (...) Ao que parece, a voz lírica se debate entre um amor e a renúncia a algo de enorme importância, e termina (ao que parece) optando pelo amor. (...) Realmente, a leitura de Leandra não me convence. Pelo contrário, teve o efeito de reforçar ainda mais a idéia que pretendo desenvolver na minha tese: que os “Sonetos negros” devem ser lidos não como um documento autobiográfico, e sim como uma ficção em versos, uma ficção em que deliberadamente as coisas não são de todo esclarecidas, como nos sonetos de Shakespeare.

Originais dos “Sonetos negros” dados por Gastão a Tânia:

“Ouve esta voz, estranha, tão contida...”

“Se te disser que não te quero, amada”

(...)

Não havia dúvida: em sua forma original, os “Sonetos negros” haviam sido dedicados a uma mulher.

(...)

Depois de conversar com Gastão no hospital:

Um sentimento menos nobre? Talvez depois de tantos anos de dedicação a uma pessoa egocêntrica e autocentrada, décadas depois da morte dela e perto de sua própria morte, ele tivesse sentido finalmente sentido necessidade de extravasar um pouco do que tivera de engolir em silêncio por tanto tempo. Aquela revelação do passado lésbico de Matilde podia muito bem ser uma espécie de acerto de contas — só que era para ser póstumo; ele certamente não imaginava que eu anunciaria seu segredo na internet na mesma hora.

Depois da pesquisa sobre Bilitis e de novo reexame nos originais:

“E se, indignado, volto contra ti”

“Eu não sou homem de dizer que amo”

Novo e-mail a orientadora Ercila:

Não tenho a menor dúvida de que eles são de autoria de Gastão Fortes. Nos originais, tudo o que está na primeira pessoa é masculino, e o que está na segunda é feminino. Ele escreveu os poemas, dirigidos a ela,e ao se dar conta de que Matilde ansiava mais do que tudo pela glória literária, renunciou a sua própria carreira literária por amor a ela — é essa a chave do famoso “tema da renúncia”. Está igualmente claro para mim que o resto da obra de Matilde foi também escrito por ele(...).

FINAL :

Olho para as águas lamacentas do rio enquanto espero a hora a hora de entrar no ônibus. Penso na reviravolta causada na minha vida pelo envelope de papel pardo — mudanças de planos, brigas pessoais, crises institucionais — e me sinto tentada a abrir a sacola discretamente, sem que ninguém perceba (o que não seria difícil, pois a rodoviária está às moscas), e jogá-lo no rio. Afinal, até agora ninguém viu os originais, a tentação é forte. Por outro lado, penso em Gastão Fortes, o segredo que guardou por tantos anos, para revelá-lo a uma desconhecida, movido por uma vaidade tardia e inesperada; penso também em todas as perguntas que me fariam depois, todas as explicações e desculpas que seria preciso dar. Bom, preciso tomar uma decisão depressa; acabam de ligar o motor do ônibus.

Nove noites (Bernardo Carvalho)_trechos selecionados

Nove noites (Bernardo Carvalho)

Relato de Manoel Perna

1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergun­te aos índios.

Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia re­ceberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela supo­sição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antro­pólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanha­vam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desapare­cer comigo o que confiei à memória.


(...)

As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de inter­pretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para acreditar.

Relato do Narrador-jornalista:

(...) O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos ín­dios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice in­crível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: "Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empur­rados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobre­vivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou".

(...)

As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tenta­va dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a fic­ção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua per­gunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fun­do, ele não estava interessado), nem convencê-lo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final se­ria tudo inventado.

Relato de Manoel Perna

Estou certo de que o que ele me contou aos poucos, ao longo daquelas nove noites, foi uma confissão, mas de alguma coisa além do que pare­cia confessar. Foi a preparação da sua morte. (...)

Isto é para quando você vier. E preciso que esteja preparado. Quando se sentir só e abandonado, quando achar que perdeu tudo, pense no dr. Buell, meu amigo. Em algum momento, todos se sentirão sozinhos e abandonados. (...)

No dia do seu vigésimo séti­mo aniversário, ele me disse que sabia o que era a morte: um excesso que se anula. E ficar mais cansado do que o cansaço permite, exceder as próprias condições, reduzir-se a menos que zero, ultrapassar as vin­te e quatro horas de um dia sem chegar ao dia seguinte. O diabo no caso dele foi não ter ninguém por perto para ampará-lo nessa malfa­dada hora. (...)

O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.