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13 de julho de 2008

Poemas de Carlos Drummond de Andrade (UNIFEI) com comentários

Poemas de Carlos Drummond de Andrade - UNIFEI

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.


A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.


De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:

este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

este orgulho, esta cabeça baixa...


Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

Comentário:

Para a interpretação desse poema, valem aquelas idéias discutidas em sala, em relação a como a voz poética da poesia drummondiana reflete sobre suas origens. O “ferro” representa uma idéia de dureza física e emocional, por isso a ironia da voz poética em falar que o hábito de sofrer é doce herança itabirana. A última estrofe demonstra, ao mesmo tempo, amargura e alívio, por não “herdar” gado, ouro e fazendas, e ser um reles funcionário público. Notem o ar de nostalgia do poema, mesclado à fina ironia de Drummond, quando confere uma dimensão metafísica para a fotografia: algo inerte, paralisado, mas movediço dentro do ser — ela simboliza a memória. Na verdade, não é a fotografia que dói, mas essa mesma nostalgia, e o sentimento de saber-se fechado, recluso e alheio ao mundo, orgulhoso, mas de ter a certeza de pertencer a ele. Por isso o tom irônico é fundamental para a composição do poema.

JOSÉ
E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama protesta,

e agora, José?


Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?


E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,


seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio - e agora?


Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?


Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse…

Mas você não morre,

você é duro, José!


Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, pra onde?

Comentário:

Esse poema levaria uma aula inteira para ser discutido, mas brevemente falando, “José” é a metonímia do ser humano comum, que marcha pela vida sem encontrar destino e sentido para tal marcha. Esse é um poema exemplar que revela a preocupação metafísica da poesia de Drummond. Notem que há uma gradação no poema: à medida que a leitura avança, a marcha e a procura de José tornam-se mais sem sentido. A idéia da negação percorre os versos, e a pergunta “e agora, José?” serve precisamente para acentuar a falta de respostas para qualquer indagação sobre a existência. Reparem como há um sentimento de solidão enorme que deixa José isolado e, aparentemente, sem alternativas. Destacam-se a noite, a escuridão, a falta, o fim, e os versos “quer ir para Minas,/Minas não há mais./ José, e agora? ” demonstram novamente a idéia da origem perdida e da dificuldade de lidar com a falta de sentido aparente para a existência absurda, recorrentes na obra de Drummond.

Hino nacional

Precisamos descobrir o Brasil!

Escondido atrás as florestas,

com a água dos rios no meio,

o Brasil está dormindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.


O que faremos importando francesas

muito louras, de pele macia,

alemãs gordas, russas nostálgicas para

garçonetes dos restaurantes noturnos.

E virão sírias fidelíssimas.

Não convém desprezar as japonesas...


Precisamos educar o Brasil.

Compraremos professores e livros,

assimilaremos finas culturas,

abriremos dancings e subvencionaremos as elites.


Cada brasileiro terá sua casa

com fogão e aquecedor elétricos, piscina,

salão para conferências científicas.

E cuidaremos do Estado Técnico.


Precisamos louvar o Brasil.

Não é só um país sem igual.

Nossas revoluções são bem maiores

do que quaisquer outras; nossos erros também.

E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...

os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...


Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,

por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão

de seus sofrimentos.


Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,

ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.

O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Eduardo Alves da Costa

Quanto a mim, sonharei com Portugal

Às vezes, quando

estou triste e há silêncio

nos corredores e nas veias,

vem-me um desejo de voltar

a Portugal. Nunca lá estive,

é certo, como também

é certo meu coração, em dias tais,

ser um deserto.

Comentário:

Para analisar esse poema, basta lê-lo percebendo a ironia dos versos. Portugal representa a origem colonial, e o poema nada mais é do que uma sátira à dependência cultural e econômica nacional. Os versos “o Brasil está dormindo, coitado./Precisamos colonizar o Brasil”sugerem uma riqueza ainda inexplorada, latente, adormecida em nosso país. Numa questão de redação, esse poema pode muito bem ser relacionado a um texto que aborda as peculiaridades brasileiras, ou críticas à economia e à sociedade.

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.


O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos , raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.


Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo,

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Comentário:

Outro poema que levaria tempo para analisar, de tão fundamental que é na obra de Drummond. Ele começa com a predestinação da voz poética a ser “gauche”, diferente, avesso às normas do mundo, estranho e socialmente desconexo. O anjo responsável pelo anúncio é ironicamente um anjo das trevas (temam!), torto, assim como a voz poética. Cada uma das sete estrofes revela uma das faces do poeta, que se sente totalmente fragmentado no mundo. A intertextualidade com a passagem bíblica da crucificação de Cristo, presente nos versos “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco”, demonstra um relativo deboche em relação à própria solidão, segundo sugere a última estrofe, em que se atribui a comoção e o sentimentalismo ao conhaque e à lua. Da mesma forma, a conhecida estrofe “Mundo mundo vasto mundo/se eu me chamasse Raimundo,/seria uma rima, não seria uma solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração” mostra como a poesia não é uma solução final para a vida, mas é imprescindível, uma vez que o coração, o sentimento, é maior que a materialidade do mundo.

Infância

A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras.

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

- Psiu...Não acorde o menino.

- Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Comentário:

Mais uma vez o sentimento de origem e a nostalgia, mostradas em “E eu não sabia que minha história/era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Notem a descrição do passado rural e do provincianismo brasileiros, através da retratação do cotidiano da própria família, que podem ser contrastados com a modernização imposta pelo trem de ferro que virá mais à frente.

Hipótese

E se Deus é canhoto

e criou com a mão esquerda?

Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.

Comentário:

Um pequeno poema irônico sobre a idéia do “gauche”, que pode ser traduzido também por “esquerdo”. Notem o destaque dado para o descompasso das “coisas deste mundo”, um mundo errado, confuso e estranho para a voz poética. Pode-se fazer diversas abordagens com esse poema também numa questão aberta ou fechada: a recorrência do “gauchismo”, a crítica social e a aparente impossibilidade de adequar a existência “torta” da voz poética ao mundo.

Homem livre

Atanásio nasceu com seis dedos em cada mão.

Cortaram-lhe os excedentes.

Cortassem mais dois, seria o mesmo

admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro.

Lombilho que ele faz, quem mais faria?

Tem prática de animais, grande ferreiro.

Sendo tanta coisa, nasce escravo,

o que não é bom para Atanásio e para ninguém.

Então foge do Rio Doce.

Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,

onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.

Meu parente Manuel Chassim não se conforma.

Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:

Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.

Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?

Comentário:

Poema de forte conotação social, que critica ao mesmo tempo a escravidão e a atitude do parente em tentar reaver o escravo fugido, para sugerir a ligação que a sociedade brasileira ainda mantém com a idéia da obrigação ao servilismo por parte dos menos favorecidos.

Prece do brasileiro

Meu Deus,

só me lembro de vós para pedir,

mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.

Desculpai vosso filho, que se veste

de humildade e esperança

e vos suplica: Olhai para o Nordeste

onde há fome, Senhor, e desespero

rodando nas estradas

entre esqueletos de animais.

Em Iguatu, Parambu, Baturité,

Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?)

vede as espectrais

procissões de braços estendidos,

assaltos, sobressaltos, armazéns

arrombados e – o que é pior – não tinham nada.

Fazei, Senhor, chover a chuva boa,

aquela que, florindo e reflorindo, soa

qual cantata de Bach em vossa glória

e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,

ao pobre sertanejo destruído

no que tem de mais doce e mais cruel:

a terra estorricada sempre amada.

Fazei chover, Senhor, e já! numa certeira

ordem às nuvens. Ou desobedecem

a vosso mando, as revoltosas? Fosse eu Vieira

(o padre) e vos diria, malcriado,

muitas e boas... mas sou vosso fã

omisso, pecador, bem brasileiro.

Comigo é na macia, no veludo/lã

e matreiro, rogo, não

ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre)

mas ao Deus que Bandeira, com carinho

botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.

E mudo até o tratamento: por que vós,

tão gravata-e-colarinho, tão

vossa excelência?

O você comunica muito mais

e se agora o trato de você,

ficamos perto, vamos papeando

como dois camaradas bem legais,

um, puro; o outro, aquela coisa,

quase que maldito

mas amizade é isso mesmo: salta

o vale, o muro, o abismo do infinito.

Meu querido Jesus, que é que há?

Faz sentido deixar o Ceará

sofrer em ciclo a mesma eterna pena?

E você me responde suavemente:

Escute, meu cronista e meu cristão:

essa cantiga é antiga

e de tão velha não entoa não.

Você tem a Sudene abrindo frentes

de trabalho de emergência, antes fechadas.

Tem a ONU, que manda toneladas

de pacotes à espera de haver fome.

Tudo está preparado para a cena

dolorosamente repetida

no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.

No entanto, você sabe,

você lê os jornais, vai ao cinema,

até um livro de vez em quando lê

se o Buzaid não criar problema:

Em Israel, minha primeira pátria

(a segunda é a Bahia)

desertos se transformam em jardins

em pomares, em fontes, em riquezas.

E não é por milagre:

obra do homem e da tecnologia.

Você, meu brasileiro,

não acha que já é tempo de aprender

e de atender àquela brava gente

fugindo à caridade de ocasião

e ao vício de esperar tudo da oração?

Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.

Fiquei, confesso, muito encabulado,

mas pedir, pedir sempre ao bom amigo

é balda que carrego aqui comigo.

Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.

Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar

noutro caso, mais sério, mais urgente.

Escute aqui, ó irmãozinho.

Meu coração, agora, tá no México

batendo pelos músculos de Gérson,

a unha de Tostão, a ronha de Pelé,

a cuca de Zagalo, a calma de Leão

e tudo mais que liga o meu país

e uma bola no campo e uma taça de ouro.

Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça

sem milagres ou com ele nos pertença

para sempre, assim seja... Do contrário

ficará a Nação tão malincônica,

tão roubada em seu sonho e seu ardor

que nem sei como feche a minha crônica.

Comentário:

Notem como os versos dessa prece profundamente sarcástica e delicada soam como prosa, como sugere o verso final, “que nem sei como feche a minha crônica”, que também indica a retratação, realizada pela voz poética, de aspectos sociais brasileiros. O crítica social e a ironia estão explícitas. O trecho “Você, meu brasileiro,/não acha/que já é tempo de aprender/e de atender àquela brava gente/fugindo à caridade de ocasião/e ao vício de esperar tudo da oração?/Jesus disse e sorriu. Fiquei calado” já diz tudo. Esse poema cairá na prova de redação.

O seu santo nome

Não facilite com a palavra amor.

Não a jogue no espaço, bolha de sabão.

Não se inebrie com o seu engalanado som.

Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).

Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão

de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra

que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.

Não a pronuncie.

Comentário:

O “santo nome”, no caso, é tão divino quanto o símbolo do sagrado, pois é o “amor”— e o santo nome não deve ser pronunciado em vão. A negação presente no poema, na verdade, é totalmente irônica. A voz poética adverte sobre os perigos do amor, mas acaba por incitar a sua procura, dentro do mundo sem sentido e insensível.

O maior trem do mundo

O maior trem do mundo

Leva minha terra

para Alemanha

leva a minha terra

para o Canadá

leva a minha terra

para o Japão.

O maior trem do mundo

puxado por cinco locomotivas à óleo diesel

engatadas geminadas desembestadas

leva o meu tempo, minha infância, minha vida

triturada em 163 vagões de minero e destruição.

O maior trem do mundo

transporta a coisa mínima do mundo

meu coração itabirano.

Lá vai o trem maior do mundo

vai serpenteando vai sumindo

e um dia, eu sei, não voltará.

Pois nem terra nem coração existem mais

Comentário:

Poema que aborda mais uma vez as raízes e as origens do poeta, mas com uma ácida crítica social e econômica, por causa do minério exportado, e ainda o sentimento de melancolia, porque a vida da voz poética fica “triturada em 163 vagões de minero e destruição”. A “terra” levada para longe é tanto o minério extraído quanto o local onde se estabelece a raiz cultural, que se perde, por não ter onde se fixar. Notem a idéia recorrente da sensação de pequenez da voz poética diante do mundo enorme, metaforizada pelo maior trem do mundo, símbolo de imponência econômica, de progresso inabalável, mas também instrumento de desumanização e um fator descaracterizador da região itabirana.Vai cair com certeza.

Ótima prova a todos, abração! Aloisio.

11 de julho de 2008

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Machado de Assis

Trechos escolhidos

Dedicatória:

AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS

METALINGUAGEM E INTERLOCUÇÃO COM O LEITOR

(...) Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja‑a e não esteja daí a torcer‑me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.

CAPÍTULO 71

O Senão do Livro

Começo a arrepender‑me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar‑vos‑ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de cemitério e carnaval.

CAPÍTULO 138

A Um Crítico

Meu caro crítico,

Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei: "Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias." Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo‑se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente. Valha‑me Deus! é preciso explicar tudo.

REALISMO x ROMANTISMO

CAPÍTULO 14

O Primeiro Beijo

Tinha dezessete anos; pungia‑me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá‑lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.

DEFUNTO AUTOR OU AUTOR DEFUNTO?

CAPÍTULO 24

Curto, Mas Alegre

E não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei‑lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei‑a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e politicas, para as despesas da conversação. Tratei‑os como tratei a História e a Jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a omamentação, que eram para o meu espírito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, são as conchas do mar e os dentes de pessoa morta.

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça‑se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa‑se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar‑se, despintar‑se, desafeitar‑se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.

Ao Leitor

Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê‑lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez, Dez? Talvez cinco. Trata‑se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Stern de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia‑a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago‑me da tarefa; se te não agradar, pago‑te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

Óbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‑feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!

METAFÍSICA DE UM DEFUNTO

CAPÍTULO 36

A Propósito de Botas

Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica‑os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro.

Enquanto esta idéia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder‑se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou‑as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.

CAPÍTULO 49

A Ponta do Nariz

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam‑se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica‑se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.

CAPÍTULO 51

É Minha

- E minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi‑se‑me a idéia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa.

- E minha! dizia eu ao chegar à porta de casa.

Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios, luziu‑me no chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei‑me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.

- E minha! repeti eu a rir‑me, e meti‑a no bolso.

Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê‑lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo‑lhe o achado, e rogando‑lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê‑lo às mãos do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.

- Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas?

E a boa dama sacou um espelho e abriu‑mo diante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante, nítida, multiplicando‑se por si mesma, - ser dez - depois trinta - depois quinhentas, - exprimindo assim o benefício que me daria na vida e na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contemplação daquele ato, revia‑me nele, achava‑me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um pouquinho mais.

Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o que ai fica; talvez queiras uma coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.

CAPÍTULO 68

O Vergalho

Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei‑lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo‑as a outro. Eu, em criança, montava‑o, punha‑lhe um freio na boca, e desancava‑o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia‑lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

CAPÍTULO 76

O Estrume

Súbito deu‑me a consciência um repelão, acusou‑me de ter feito capitular a probidade de Dona Plácida, obrigando‑a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha‑a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; e eu fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex‑costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de Dona Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê‑la. E repuxou‑me outra vez de um modo irritado e nervoso.

Concordei que assim era mas aleguei que a velhice de Dona Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. E raciocinei então que, se não fossem os meus amores, provavelmente Dona Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude, O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.

CAPÍTULO 119

Parêntesis

Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto:

Suporta‑se com paciência a cólica do próximo.

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá‑lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.

CAPÍTULO 151

Filosofia dos Epitáfios

Saí, afastando‑me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece‑lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.

EXPERIMENALISMOS LITERÁRIOS

CAPÍTULO 55

O Velho Diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas

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Virgília

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Brás Cubas

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Virgília

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Brás Cubas

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Virgília

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Brás Cubas

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Virgília

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Brás Cubas

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Virgília

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Brás Cubas

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Virgília

.....................!

CAPÍTULO 124

Vá de intermédio

Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio, pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro, senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pitoresca. E repito: não é meu.

CAPÍTULO 125

Epitáfio

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

AQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENA

DE BRITO MORTA

AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE

ORAI POR ELA!

‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑

CAPÍTULO 139

De Como Não Fui Ministro de Estado

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CAPÍTULO 2

O Emplasto

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou‑se‑me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Eu deixei‑me estar a contemplá‑la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra‑me ou devoro‑te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti‑hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá‑lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis; "...e eu era hábil." Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o públi‑ co, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: ‑‑ amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

“Reencontro com Virgília, à beira da morte”:

Creiam‑me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.

(...)

Virgília deixou‑se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar‑se de alguns fios de prata.

“O delírio”

‑ Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

‑ Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando‑me?

‑ Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou‑me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê‑la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, ‑‑ flagelos e delícias, ‑‑ desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí‑lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, ‑‑ nada menos que a quimera da felicidade, ‑‑ ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava‑se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia‑se, como uma ilusão.

CAPÍTULO 11

O Menino É Pai do Homem

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso.. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixas, à guisa de freio, eu trepava‑lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava‑o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca, besta!" - Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha‑me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia‑o por simples formalidade: em particular dava‑me beijos.

(...)

O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.

“Conselho do pai seguido de reflexão sobre o emplasto”

- Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá‑lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu‑se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida, - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.

CAPÍTULO 21

O Almocreve

O almocreve salvara‑me talvez a vida; era positivo; eu sentia‑o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar‑lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, - essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou‑lhe as três moedas.

(...)

Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei‑lhe a roupa; era um pobre‑diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, urna moeda. Tirei‑a, via‑a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha lhe voltado as costas; mas suspeitou‑o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava‑lhe conselhos, dizia‑lhe que tomasse juízo, que o "senhor doutor" podia castigá‑lo; um monólogo paternal. Valha‑me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.

- Olé! exclamei.

- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...

Ri‑me, hesitei, meti‑lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara‑lhe bem, pagara‑lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí‑lo simples instrumento de Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei‑me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos.

CAPÍTULO 27

Virgília?

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; e era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, - devoção, ou talvez medo; creio que medo.

Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, - tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.

- Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da memória a imagem do que fui, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi‑la depois de tantos anos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

“Eugênia”

CAPÍTULO 33

Bem‑Aventurados os que Não Descem

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, e não atinava com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi‑lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá‑lo.

(...)

Queria‑lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava‑nos, mas pouco; temperava a necessidade com a convivência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava‑me a alma em flor.

- O senhor desce amanhã? disse‑me ela no sábado.

- Pretendo.

- Não desça.

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: - Bem‑aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das damas. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem‑vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...

CAPÍTULO 35

O Caminho de Damasco

Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): "Levanta‑te, e entra na cidade." Essa voz saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá‑la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda‑feira, ao anunciar‑lhe que na seguinte manhã viria para baixo. - Adeus, suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade; faz bem. - E como eu nada dissesse, continuou: - Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia dizer‑lhe que não; ela retirou‑se lentamente, engolindo as lágrimas. Alcancei‑a a poucos passos, e jurei‑lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.

- Acredita‑me? perguntei eu no fim.

- Não, e digo‑lhe que faz bem.

Quis retê‑la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Eu desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito; e vinha dizendo a mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira política.., que a constituição... que a minha noiva.., que o meu cavalo...

ADULTÉRIO

CAPÍTULO 80

De Secretário

(...)

- O pior, disse‑me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei secretário.

- Não?

- Não, e tenho uma idéia.

-Ah!

- Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte?

Não sei o que lhe disse.

- Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar‑me, ia de secretário comigo.

Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo administrativo.

CAPÍTULO 82

Questão de Botânica

(...)

- Já sei, desta vez vai ler Cícero, disse‑me ele, ao saber da viagem.

- Cicero! exclamou Sabina.

- Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é Virgílio e não Virgília... não confunda...

E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina empalideceu e olhou para mim, receosa de alguma réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá‑lo. As outras pessoas olhavam‑me com um ar de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor. E entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso, - palreiro como as pegas de Sintra. Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu‑me sorrir, e continuei a fazê‑lo das outras vezes. Não sei se há aí algum Hobbes ou Spinosa que explique o fenômeno. Eu explico‑o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o tempo, desabotoou‑se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.

CAPÍTULO 85

O Cimo da Montanha

Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. E entrei a amar Virgília com muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela. Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga de Malabar, com que tomamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando‑

nos com abraços.

- Minha boa Virgília!

- Meu amor!

- Tu és minha, não?

- Tua, tua...

E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer...

CAPÍTULO 105

Equivalência das Janelas

Dona Plácida fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei dois passos para sair à rua, com o fim de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse, porque Dona Plácida deteve‑me por um braço. Tempo houve em que eu cheguei a supor que não dissera aquilo senão para que ela me detivesse; mas a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuíno e cordial não podia ser senão esse. E isto por aquela famosa lei da equivalência das janelas, que eu tive a satisfação de descobrir e formular, no capítulo 51. Era preciso arejar a consciência. A alcova foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei.

CAPÍTULO 115

O Almoço

Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar‑lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon...

(...)

Eram, e naquela manhã parece que o diabo do homem adivinhara a nossa catástrofe. jamais o engenho e a arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que ternura de carnes! que rebuscado de formas! Comia‑se com a boca, com os olhos, com o nariz. Não guardei a conta desse dia; do contrário, é mui provável que a deixasse nestas páginas; sei que foi cara. Ai dor! era‑me preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava‑me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava‑me para os não ver nunca mais, porque ela poderia tomar e tomou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?

CAPÍTULO 131

De Uma Calúnia

(...)

- Seu maganão! Recordações do passado, hem?

- Viva o passado!

- Você naturalmente foi reintegrado no emprego.

- Salta, pelintra! disse eu, ameaçando‑o com o dedo.

Confesso que este diálogo era uma indiscrição, - principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam; ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega‑se por amor, ou seja o amor‑paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante - o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro‑me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece‑lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo‑se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, - essa meiga fatuidade que é a transpiração luminosa do mérito.

Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta‑me deixar escrito nesta página, para uso dos óculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir‑se por força, mais tarde ou mais cedo: "Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir."

DESFECHO

CAPÍTULO 159

A Semidemência

Compreendi que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba partira seis meses antes para Minas Gerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses depois, e entrou‑me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou‑me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscrito todo e ia recomeçá‑lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro.

- Juras por Humanitas? perguntou‑me.

- Sabes que sim.

A voz mal podia sair‑me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel verdade. O Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia‑o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia‑me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara para as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele levantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica. Outras vezes amuava‑se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão, triste como uma lágrima...

Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.

CAPÍTULO 160

Das Negativas

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e ai vos ficais eternamente hipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube‑me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei‑me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:

- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.