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13 de agosto de 2006

O GRANDE MENTECAPTO - Fernando Sabino
(Trechos de materiais retirados de vários sites da internet)

Fernando Sabino é autor contemporâneo dos mais importantes. Dono de um estilo inconfundível em que ressalta o extremo cuidado com a linguagem, é um especialista em criar situações cômicas de profunda beleza plástica. Sua capacidade descritiva faz com que o leitor, além de se deleitar com a complicação da trama, consiga visualizar a cena criada pelo narrado. Sua obra é extensa e inclui principalmente crônicas e contos. Seus romances - O Encontro Marcado; O Menino no Espelho; O Grande Mentecapto - são fruto de profunda preparação e artesanato impecável. Por isso mesmo cresce a cada dia a importância de sua obra no panorama da atual Literatura Brasileira.
Nesse romance de 1979, o Autor elabora uma trama com a nítida intenção de homenagear as pessoas humildes, simples e puras. Já na epígrafe da narrativa, "Todo aquele, pois, que se fizer pequeno como este menino, este será o maior no reino dos céus.". nota-se a vontade de elevar os puros, os inocentes e os ingênuos.
Na linha da novela picaresca - vide o Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes -, em que o personagem desloca-se por um espaço indefinido, à cata dos conflitos, para resolvê-los heroicamente, Viramundo vive uma seqüência de peripécias acontecidas no Estado de Minas Gerais, contracenando com personagens dos mais variados matizes e comportando-se sempre como o bem-intencionado, o puro, o ingênuo submetido às artimanhas e maldades de um mundo que ainda não está de todo resolvido. Andarilho, louco, despossuído, vagabundo, idealista. Marginal em uma sociedade que não entende e em que não se enquadra, o Viramundo instaura um sentimento de ternura e de pena por todos aqueles que, em sua simplicidade, sofrem o descaso, a ironia, a opressão e a prepotência.
Como o Quixote, com a sua amada Dulcinéia, e como Dirceu, com a sua adorada Marília, Viramundo põe em suas ações tresvariadas a esperança de realizar-se emocionalmente com a sua idealizada e inalcançável Marília, filha do governador de Minas Gerais. Sua ilusão alucinada é reforçada pelos pseudo amigos que o enganam com falsas cartas de amor e incentivam sua loucura mansa e seu sonho impossível.
A pureza deste aventureiro é a crítica à hipocrisia das relações humanas em um mundo que perdeu o sentido da solidariedade e da fraternidade. Sua alegria ingênua e desinteressada opõe-se ao jogo bruto dos interesses malferidos, ao conservadorismo e à arrogância. Porta-voz dos loucos, dos mendigos, das prostitutas, o Viramundo conhece os meandros da enganação e da falsidade dos políticos e dos poderosos.
Viramundo não era conhecido, mas termina por criar fama em razão dos casos incríveis em que se envolve. Sob a aparência imunda de um mendigo está um sujeito com cultura geral incomum. Sua fala de homem conhecedor surpreende e sua experiência de ex-seminarista e ex-militar confunde e admira aqueles com quem convive. Sua esquisitice e suas respostas prontas a todas as indagações fazem com se acredite tratar-se de um louco manso e inofensivo.
Outro aspecto interessante é a exploração da temática da loucura. O Autor parece convidar o leitor a uma reflexão sobre a origem e o convívio com a idéia da excentricidade do comportamento humano. Viramundo pode ser considerado um louco, mas quem não o é? O que a sociedade considera loucura? Como classificar e tratar os indivíduos que atuam em dissonância com aquilo que se considera normalidade? A sociedade mostrada no romance está povoada de tipos que comumente chamamos de loucos: os habitantes de Mariana agem desvairadamente ao tentar linchar Dª. Peidolina; o diretor do hospício é mais estranho que os próprios internos do manicômio; o capitão Batatinhas é absolutamente alienado. Há no decorrer de toda a narrativa o questionamento da fragilidade dos limites entre a sanidade e a loucura.
No limiar da consumação de sua caminhada, Viramundo mudou. No começo era idealista e cheio dos cometimentos da paixão. Manteve-se assim durante muito tempo até encarar a dura realidade da convivência humana. A série de acontecimentos em que figura como perdedor física e emocionalmente faz com que se desiluda. Descobre que as cartas de amor eram falsas; os amigos eram falsos; sua crença era falsa. Por todo lado só encontra sofrimento, opressão, hipocrisia. Está só, absolutamente só, e a solidão é tudo que lhe resta.
Seu fim é emblemático. Morre vitimado pelo próprio irmão. Paga por um crime que não cometeu. A intertextualidade bíblica é evidente: compara a trajetória e o comportamento de Viramundo com a Via-Sacra do Cristo, em todos os sentidos, inclusive no sacrifício final.

(...)

Como seus contos e crônicas prenunciavam, com seu humorismo, suas situações cômicas, suas ironias, suas sátiras, o novo livro compreendia tudo isto nas páginas deste romance picaresco em que o herói ou o anti-herói é como a criação imortal de Cervantes. Mas com seu imortal antecessor sempre teve um ideal de proteção dos fracos e dos humilhados, de consertar “Los tuertos” de que a vida está cheia. E mais, e um pícaro sem picarice, não é amoral, traiçoeiro, malandro, vigarista. Suas aventuras e desventuras lhe advêm da sua honestidade, do seu ideal, de seu senso da liberdade e da justiça. Por isso, como D. Quixote, sofre, apanha, é ridicularizado e morre defendendo um ideal de justiça e liberdade, ao se fazer o chefe duma revolta de presos, de loucos, de mendigos e de prostitutas.

– ENREDO & PERSONAGENS
Como é norma do romance picaresco, tudo gira em redor do herói, isto é, do pícaro. Em torno de Geraldo Viramundo e seus inumeráveis apelidos. Filho de um português, o Boaventura e de D. Nina, italiana. Seu nome de batismo: Geraldo Boaventura. Seu nome de nobreza: José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva. Sua glória e imortalidade: Viramundo. Um doido manso (doido de seguirmos os padrões tradicionais com que nossa sociedade mede normalidade e anormalidade) que saiu pelo mundo (das Minas Gerais), vivendo e sofrendo, em procura da liberdade. Uma liberdade natural, humana, total.
Nasceu e viveu sua infância em Rio Acima: fez tudo que os meninos, da idade, costumam fazer. Brincou muito no rio de sua terra. Fez para o trem que não parava nunca na sua cidade. Apostou que faria para o trem e ganhou a aposta de quinze amigos, treze meninos e duas meninas. (A Cremilda, filha da professora e amada de todos e a pretinha Salomé...) Com a façanha começa a virar herói. (Para parar o trem, ficou no meio da linha. O maquinista não teve outro recurso. Freou a composição. E xingou muito...) Um dia, de conversa com o Pe. Limeira, manifestou vontade de ser padre. Houve choradeira geral em casa. E ele foi para Mariana. Nada ou quase nada se sabe de sua vida seminarística. O certo é que um dia se meteu num confessionário e ouviu as inconfidências da viúva Correia Lopes, D. Pretolina, D. Lina, vulgarmente chama de Peidolina. Descoberta a malandragem, o seminarista Geraldo Boaventura foi expulso da casa sagrada do seminário... Mais tarde se põe em defesa da viúva, leva uma pedrada e é expulso aos gritos e empurrões. E começou a palmilhar os caminhos da vida: tinha 18 anos e se chamou Viramundo.
Suas andanças abrangem numerosíssimas cidade mineiras, de todos os cantos e tamanhos, até chegar a Belo Horizonte. Sempre metido em aventuras e desventuras... Foi em Ouro Preto que conheceu a amada do seu coração – Marília Ladisbão, filha de Clarismundo Ladisbão, Governador Geral das Minhas Gerais. (Viramundo, como D. Quixote, se apaixonou por essa Dulcinéia...) E o amor lhe trouxe muitas amolações. No meio dos estudantes que vão representar para o Governador, atrapalha tudo, erra o seu papel, é surrado e acaba num hospital. Numa festa ao Governador, o herói se mete em comilanças e acaba com uma irresistível dor de barriga. O toalete estava ocupado. Não podia esperar. Subiu uma escada, encontrou um cano, certamente do esgoto, e o jeito foi descarregar no dito cano. O cano descia livre, condutor de ar, em cima dum ventilador... A festa acabou, o Governador se foi... Sem a presença da amada, Viramundo deixa Ouro Preto. Esteve em Barcelona, acabou num hospício e candidato a prefeito. Na cidade, gastou o seu francês com o grande escritor Bernanos. Depois foi servir à Pátria num quartel. Foram tantas e tamanhas as suas atrapalhadas que foi devolvido à simples vida civil. Esteve em São João Del Rei, andou preso em Tiradentes, onde conheceu o João Toco que contou sua própria vida.
(Giramundo, Viramundo, Rolamundo... e o tempo, e a vida vão passando...) Até os profetas do Aleijadinho, em Congonhas, conheceram o grande metencapto.
Em Uberaba pegou touro à unha. Andou de ceca em Meca, cumprindo o seu destino de andejo. Em Cataguases, segundo dizem, foi confundido com o escritor Rosário Fusco, outro grande pícaro.
(Leitor, veja nas pág. 185 a 188 alguns lugares dos muitíssimos que o nosso herói conheceu. De agora em diante eles ficarão imortalizados pelo seu nome, isto é, apelido, e pela sua glória imortal...)
Em Belo Horizonte, metido com uma multidão de gente miúda, mendigos, prostitutas, vagabundos, desocupados, injustiçados, arraia-miúda... faz uma revolução. E com apoio de muitos políticos da oposição, parlamenta com o governador, mas nada resolve. A polícia cercou a Praça da Liberdade, dissolveu a multidão, acabou com a revolução do herói Viramundo. E ele sozinho, ou quase, com dois companheiros amigos fiéis, o Capitão Batatinhas e Barbeca (vendedor de esterco), se meteu em direção do Rio de Janeiro. Em protesto cívico, diante do Presidente, iam reivindicar os direitos de todos os injustiçados. Não chegou lá. No meio do caminho, perto de sua terra, foi amarrado, espancado e, com uma estocada no peito, fechou os olhos para este vale de lágrimas.
Geraldo Boaventura, 33 anos, sem profissão, natural de Rio Acima, foi enterrado como indigente numa cova rasa do cemitério local. Causa mortis: ignorada. Descanse em paz.
Foi assim que Geraldo Viramundo e todos os outros seus numerosos apelidos deixou o anonimato em que vivera, sofrera e morrera, para entrar na imortalidade.
Quem quiser saber do destino de muitos outros personagens dessas estórias, leia o epílogo do livro. O autor imortalizou ainda o último sorriso do pobre e grande herói.
“De viramundo, fica apenas o sorriso que se eternizou na sua face.”
(...)
1) A narrativa é, predominadamente, linear e segue (costume de novela picaresca) a ordem cronológica dos acontecimentos: nascimento, origens, família, as peripécias, aventuras e desventuras, até a morte do nosso vagabundo. No miolo do romance se encadeiam os episódios, as façanhas, os incidentes, o que serve para “engordar” a narrativa. Tudo gira em torno de Viramundo.
2) Para criar os personagens da novela picaresca, o autor usa e abusa dos traços caricaturais. E, assim, o herói e o seu pequeno mundo adquirem, pelos exageros caricaturais, traços e elementos capazes de levar ao riso e à sátira. Os apelidos também entram na jogada, principalmente aqueles que têm características depreciativas. Geraldo Boaventura (é o herói) tem 53 apelidos citados nas páginas 54 e 56. “Além desses, centenas de outros apelidos, epítetos, alcunhas, cognomes, ápodos e aliases...”
3) Há, no romance, algumas notas explicativas, muitas referências e acontecimentos e pessoas reais: Napoleão, D. Pedro, Tiradentes: Shakespeare, Maiakovski, Beethoven, Freud, Jung, Albalat, Umberto Eco; muitos escritores brasileiros, gente viva e morta;
4) O autor usou também do recurso de inserir uma estória ou estórias dentro da estória maior. João Toco conta sua estória para o Viramundo. (152 e segs.);
5) Fazem-se citações em francês, espanhol, inglês, latim, mostrando a erudição do pesquisador ou os conhecimentos do próprio ex-seminarista, transformado no herói Viramundo;
(...)
A palavra pícaro tem origem incerta e aparece como “sujeto ruin y de mala vida” desde o século XVI.
Na Idade Média, as fábulas criaram pícaros no reino animal: a raposa, por exemplo.
A literatura espanhola (séc. XVI) o fixou, definitivamente, com “La vida de Lazarillo de Tormes y sus fortunas e adversidades”. (Note-se o subtítulo de O Grande Mentecapto: “relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações”).
“Pícaro: tipo de persona descarada, traviesa, bufona y de no muy cristiano vivir... El pícaro, según creo, es el resultado de la comobinación de un estóico y de un cínico.
(Bonilla y San Martín – apud Manual de Literatura Española – Rodolfo M. Ragucci – Editorial Dom Bosco – Buenos Aires – 3ª ed. s.d. pág. 237).
“Añadase a todo que, aunque vicioso, el pícaro no es criminal y, a fuer de español, lleva siempre um sedimento religioso y cierta nobleza de corazón.” (Ragucci – ib. Pág. 237)
(...)
Há a predominância da sátira, clara ou escondida, que se revela no tom e nos traços caricaturais. Nenhum personagem escapa das linhas caricaturais e a figura mais caricatural é o Geraldo Viramundo, nosso herói.
O pícaro adota condutas conflitantes com os padrões sociais, voluntariamente ou não, contestando o que está estabelecido para a vida em grupo. Aparece como um doido, mas lúcido através de quem se vê um mundo diferente e se criticam os costumes. O pícaro é também um “gauche”.

"Fernando Sabino explora de maneira não agressiva o humor recôndito no mecanismo das coisas e dos homens: seu humor poderia receber a qualificação genérica de um desmonte progressivo da realidade, no sentido a nosso ver socrático: questiona a natureza das coisas, quer saber os limites das definições, toma a palavra do outro e a decompõe em seus próprios termos, como quem nada sabe da realidade examinada, e coloca aí o dinamismo das contradições e muitas vezes do ridículo de terceiros e dele próprio. Sabe rir de si mesmo, que é a suprema forma de humor. Desmonta a realidade por muito amar - toma a palavra do interlocutor como verdade inabalável para, em seguida, por um processo de desintegração mental e conceitual, ir mostrando que a pessoa não sabia bem o que estava dizendo..."
Matos, Marco Aurélio. Fernando Sabino: o verbo como aventura. In: SABINO, Fernando. Obra reunida. v.1, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.39. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira).