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[PROSA_Oficina de textos_UFMG 2011] Salinha para resolução de questões abertas de Literatura (vestibular UFMG 2011) . Informações: emaildoaloisio@yahoo.com.br

2 de novembro de 2009

Laços de família-download:

http://www.4shared.com/file/47882862/d07a2434/Clarice_Lispector_-_Laos_de_Famlia__livro_.html?s=1

(Selecione o link acima e cole no seu navegador. Clique em "Download", espere a contagem regressiva que aparecerá e baixe.)

ENTREVISTA de Clarice Lispector com Lygia Fgundes Telles:

http://comunidadelft.blogspot.com/2008/09/clarice-lispector-entrevista-lygia.html

ENTREVISTA clássica com Clarice Lispector (1977)

Cuidado ! Avisei em sala que não é para ver...


(Primeira parte)
http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok

27 de maio de 2009

Nove Noites (Bernardo Carvalho)_material da aula_CEFET

Nove noites (Bernardo Carvalho)

· Suicídio do antropólogo Buell Quain: fato histórico

Quain se suicidou no dia 02 de agosto de 1939, aos 27 anos, um ano e cinco meses depois de ter chegado ao Brasil, e depois de ter ficado cinco meses sozinho com os índios Krahô.

Relato de Manoel Perna

1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergun­te aos índios.

Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia re­ceberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela supo­sição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antro­pólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanha­vam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desapare­cer comigo o que confiei à memória.

Também não posso confiar a mãos alheias o que lhe pertence e durante todos estes anos de tristezas e de­silusões guardei a sete chaves, à sua espera. Me perdoe. Não posso me arriscar. Já não estou em condições ou idade de desafiar a morte. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este testa­mento para quando você vier e deparar com a incerteza mais absoluta. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e ines­perado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando. Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de inter­pretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para acreditar.

Estarei abusando da sua paciência e boa vonta­de, seja você quem for, se lembrar que morremos todos?

(...)

Era preciso que ninguém achasse um sentido. É preciso não deixar os mortos tomarem conta dos que ficaram.

Desde o início, embora não pudesse prever a tragédia, fui o único a ver nos olhos dele o desespero que tentava dissimular mas nem sempre conseguia, e cuja razão, que cheguei a intuir antes mesmo que ela me fosse revelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que fosse só para aliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. Tendo presenciado os poucos momentos em que não conseguiu se conter, eu sa­bia, e o meu silêncio era para ele a prova da minha amizade. Assim são os homens. Ou você acha que quando nos olhamos não reconhece­mos no próximo o que em nós mesmos tentamos esconder? Não há nada mais valioso do que a confiança de um amigo. Por isso aprecio os índios, com os quais convivo desde criança, desde o tempo em que o meu avô os amansou. Sempre os recebi na minha casa. Sempre soube o que diziam de mim pelas costas, que me consideravam um pouco louco, aliás como a todos os brancos.

Mas a mim importava apenas que pudessem contar comigo. E que soubessem que eu não esperava nada em troca. De mim teriam tudo o que pedissem, e Deus sabe que seus pedidos não têm fim. Fiz tudo o que pude por eles. E também pelo dr. Buell. Dei a ele o mes­mo que aos índios. A mesma amizade. Porque, como os índios, ele es­tava só e desamparado. E, a despeito do que pensou ou escreveu, não passava de um menino.

(...)

Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que, por segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia compreender o que ali estava escrito (...).

Guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei que ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete no lugar da car­ta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o professor Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me dirigia ou com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do morto, uma vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever uma carta de pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me certificar de que você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha compreendido, já que não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes dei­xo este testamento para quando você vier.


Relato do Narrador-jornalista:

2. Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nun­ca precisei responder.

Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor idéia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num ar­tigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Se­gunda Guerra.

(...)

[Ao procurar a antropóloga que havia escrito o artigono jornal:]

Supôs que eu quisesse escrever um romance, que meu interesse fosse literário, e eu não a contrariei. A história era realmente in­crível. Aos poucos, conforme me embrenhava naquele caso com as minhas perguntas, passou a achar natural a curiosidade que eu demonstrava pelo etnólogo suicida. (...)Fiz algumas viagens, alguns contatos, e aos pou­cos fui montando um quebra-cabeça e criando a imagem de quem eu procurava. Muita gente me ajudou. Nada dependeu de mim, mas de uma combinação de acasos e esforços que teve iní­cio no dia em que li, para o meu espanto, o artigo da antropó­loga no jornal e, ao pronunciar aquele nome em voz alta, ouvi-o pela primeira vez na minha própria voz.

Sete cartas deixadas por Buell Quain:

1. Ruth Benedict, orientadora

2. D.Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional

3. Manoel Perna, engenheiro de Carolina

4. Capitão Ângelo Sampaio, delegado

5. Dr. Eric P. Quain, seu pai

6. reverendo Thomas Young, missionário instalado em Mato Grosso

7. Charles Kaiser, cunhado.

SUPOSIÇÃO DA 8ª CARTA:

(...) talvez ele tivesse sido compelido ao suicídio, talvez tivesse se matado, em pânico, ao entender que não conseguiria escapar não só da culpa, mas de uma ameaça real, antes que fosse assas­sinado. Talvez houvesse razões para ele ser assassinado. Talvez não quisesse que essas razões viessem à tona. "Os índios estão a salvo, pelo que fico muito feliz." Talvez preferisse se matar. Tudo dependia do que tivesse feito na aldeia. Para mim, a res­posta só podia estar numa das cartas que escreveu antes de mor­rer, as quais desapareceram com os seus destinatários. Ainda as­sim, me parecia pouco provável que, se houvesse uma explicação numa das cartas que o etnólogo deixou ao pai, ao cunhado ou ao missionário Thomas Young, ela pudesse não ter vindo a públi­co. Foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia ha­ver (ou ter havido) uma oitava carta.

Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê.

Relato de Manoel Perna: suicídio de Quain

3. Isto é para quando você vier. Foram apenas nove noites. (...)Teria ido eu mesmo, se soubesse que, entre aquelas cartas, eu lhe enviava a sentença de morte, teria ido sozinho e a pé se fosse pre­ciso, para trazê-lo de volta em segurança para a cidade. Ele me fize­ra prometer que lhe remeteria as cartas por um portador assim que chegassem.

Peço que me desculpe. Sei que o deixei com a dúvida, mas posso lhe garantir que ele a recebeu. Antes de entregá-los ao meu irmão, li entre os envelopes do último correio, que chegou no início de julho pelo avião da Condor, o nome de um remetente que depois eu iria reconhecer entre os destina­tários das cartas que ele escreveu nas horas que antecederam a sua morte, justamente aquela carta entre todas as outras que decidi guar­dar comigo, a despeito do que você possa pensar, em nome da memória do dr. Buell, e para proteger os índios, a carta que ele lhe deixara. Os índios disseram que ele passou a viver num estado de absorção terrível depois de receber a última correspondência que eu havia mandado pelo meu irmão, um retraimento desconhecido durante a sua vida pregressa na aldeia. Foram as cartas que ele queimou na sua última jornada de volta a Carolina e com as quais obteve o fogo e a luz de que preci­sava para escrever as que deixou, chorando copiosamente, antes de se suicidar no meio da noite. Da sua carta, todavia, ninguém nunca sou­be nada.

Relato do Narrador-jornalista: suposição da existência da oitava carta

4. Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei responder. Todo mundo quer saber o que sabem os sui­cidas. No início, deixei-me levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma morte passional e concentrei a mi­nha busca nesses vestígios. Devia haver outra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos e sentimentos.

· Personalidade de Buell Quain:

1. não gostava de mostrar o quão rico era na verdade

2. tinha fama de ser instável, pessoa solitária e fechada, sem muito interesse pelo mundo

3. trancou a matrícula na faculdade e embarcou como marinheiro pra Xangai

4. crítico quanto ao comportamento dos índios Trumai, para cuja aldeia vai quando chega ao Brasil:

[O fato é que no começo Quain achou os Trumai "chatos e sujos" ("Essa gente está entediada e não sabe"), o contrário dos nativos com quem convivera em Fiji e que transformara num modelo de reserva e dignidade. Julgava os Trumai por oposição a sua única outra experiência de campo: "Dormem cerca de onze horas por noite (um sono atormentado pelo medo) e duas horas por dia. Não têm nada mais importante a fazer além de me vi­giar. Uma criança de oito ou nove anos parece já saber tudo o que precisa na vida. Os adultos são irrefreáveis nos seus pedidos. Não gosto deles. Não há nenhuma cerimônia em relação ao con­tato físico e, assim, passo por desagradável ao evitar ser acaricia­do. Não gosto de ser besuntado com pintura corporal. Se essas pessoas fossem bonitas, não me incomodaria tanto, mas são as mais feias do Coliseu". O etnólogo comparava os mirrados Tru­mai aos homens musculosos de Fiji, que ele havia retratado em seus desenhos e fotografias. Ainda na carta a Benedict, ele diz: "Minha doença me deixa especialmente angustiado e inseguro em relação ao futuro", sem especificar do que está falando.]

5. "Cãmtwyon" passou a ser, para mim, ao mesmo tempo a casa do caracol e o seu far­do no mundo, a casca que ele carrega onde quer que esteja e que também lhe serve de abrigo, o próprio corpo, do qual não pode se livrar a não ser com a morte, o seu aqui e o seu agora para sempre. "Cãmtwyon" passou a ser para mim o rastro do caracol: não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre aqui.

Relato de Manoel Perna: título da obra

8. Isto é para quando você vier. Se é que realmente quer saber. (...)Bebemos e conversamos. Era pre­ciso que nos conhecêssemos. Foi a primeira noite. (...)Se faço as contas, vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho, quando vinha à minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanhei pelo primeiro trecho de sua volta à al­deia, quando pernoitamos no mato, debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não havia requisitado a minha com­panhia, mas senti que devia acompanhá-lo a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que nunca mais o veria. O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da mi­nha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno.

Relato do Narrador-jornalista: identificação com Buell, crítica ao desamparo dos índios por parte da civilização

Ninguém nunca me perguntou, e por isso nunca precisei responder que a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava, no Xingu da minha infância. (...) Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo associado a uma espécie de pa­raíso, à diferença e à possibilidade de escapar ao seu próprio meio e aos limites que lhe haviam sido impostos por nascimen­to, para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno.

(...)

O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos ín­dios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice in­crível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: "Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empur­rados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobre­vivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou".

· Narrador-jornalista vai à aldeia à procura de um índio Krahô que, quando criança, teria convivido com Quain:

Aquela altura, eu já estava completamente obcecado, não conseguia pensar em outra coisa, e como todos os que eu havia procurado antes, eles também não quiseram saber por quê. Nin­guém me perguntava a razão. Eu dizia que queria escrever um romance. (...)

Foi na casa de Manoel Perna que Buell Quain encontrou um interlocutor atento nas noites que passou em Carolina ao desembarcar em março, e depois em sua passagem pela cidade no final de maio e início de junho, quan­do veio buscar cartas, dinheiro e mantimentos, e comemorar o seu aniversário. Foi para lá que a comitiva de índios se encami­nhou dois meses depois, para anunciar a tragédia e entregar os pertences do morto ao engenheiro.

· METALINGUAGEM: explicação do romance para os índios

Os velhos [índios] estavam preocupados, queriam sa­ber por que eu vinha remexer no passado, e ele [o índio que interpelava o narrador] não gostava quando os velhos ficavam preocupados. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo o que eu que­ria saber já era conhecido. E ele me perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?".

Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma conseqüência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. Eu estava entre irritado e amedrontado. Tinha vontade de mandar o índio à puta que o pariu, mas não podia me indispor com a aldeia. Se é que havia alguma coisa a descobrir (...) era preciso ser diplomático. Ele queria por­que queria saber a razão da minha presença na aldeia. (...)

Não sorria, não demonstrava nenhum gesto ou expressão de simpatia. Tinha um olhar impassível e determinado. O motivo da sua visita era me encurralar. Repetia: "Os velhos estão preo­cupados". E eu pensava comigo: "O idiota deve ter ouvido algu­ma coisa e resolveu tomar a iniciativa de me pedir satisfação". As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tenta­va dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a fic­ção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua per­gunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fun­do, ele não estava interessado), nem convencê-lo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final se­ria tudo inventado.

· Narrador-jornalista faz uma leitura crítica da relação entre os índios e os brancos:

São os órfãos da civiliza­ção. Estão abandonados. Precisam de alianças no mundo dos brancos, um mundo que eles tentam entender com esforço e em geral em vão. O problema é que a relação de adoção mutua já nas­ce desequilibrada, uma vez que a freqüência com que os Krahô vêm aos brancos é muito maior do que a freqüência com que os brancos vão aos Krahô. Uma vez que o mundo é dos brancos. Há neles uma carência irreparável. Não querem ser esquecidos. Agarram-se como podem a todos os que passam pela aldeia, como se os visitantes fossem os pais há muito desaparecidos.

(...)

Estava apavorado com o que pudessem fazer comigo (nada além de me cobrir de penas e me dar um nome e uma família da qual nunca mais poderia me desvencilhar). O meu medo era visível. Fiz um papel pífio. E eles riram da minha covardia. Jurei que não me esqueceria deles. E os abandonei, como todos os brancos.

Relato de Manoel Perna: VOCÊ, o leitor, deve completar a narrativa?

16. Isto épara quando você vier. O que eu sei é o que ele me con­tou e o que imaginei. (...) Se as coisas que tenho a dizer estão todas pela metade, e podem soar insignificantes aos ouvidos de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história. Es­perei por alguns anos, mas já não posso contar com a sorte. O que eu tenho a dizer só pode fazer sentido junto com o que você já sabe.

(...) O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.

Relato do Narrador-jornalista:

· negação da existência do relato-testamento

19. Ninguém nunca me perguntou. Manoel Perna, o enge­nheiro de Carolina e ex-encarregado do posto indígena Ma­noel da Nóbrega, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, durante uma tempestade, quando tentava salvar a neta pequena.O Estado Novo e a guerra tinham acabado. Deixou sete filhos, três homens e quatro mulheres. (...)Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu ima­ginei a oitava carta.

· o SEGREDO é o livro

Foi só quando esgotei todos os meios de achar o que me faltava — o que chamei de a oitava carta, supondo que pudesse realmente existir, e que daria um sentido a toda a histó­ria e mais especificamente ao suicídio, depois de já ter encontra­do um vasto material que me aproximava em círculos de Buell Quain, sem nunca de fato decifrá-lo ou me deixar alcançar o centro do seu desespero — que decidi retomar a minha busca pelo filho do fotógrafo, dessa vez pessoalmente. (...)

Aquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado, com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando já fosse tarde, com a pes­quisa terminada e o livro publicado. Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me resta­va, à falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a ti­vesse visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a his­tória, o motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício risível.

AGRADECIMENTOS

Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação — como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.

A trama traiçoeira de "Nove Noites"
Por Flavio Moura

Trechos de entrevista com o autor Bernardo Carvalho

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1586,1.shl

O que é fato e o que é ficção em “Nove Noites”?

Bernardo Carvalho: A indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido em dizer o que é real e o que não é. Isso tem a ver com meus outros livros. Também neles há um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso isso fica mais nítido porque existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, é tudo ficção.

A idéia inicial era fazer uma biografia de Buell Quain?

Carvalho: Eu queria fazer um romance, não queria fazer um livro de jornalismo. Foi como se, retrospectivamente, a história de Buell Quain desse sentido ao que eu já tinha na cabeça. As coisas se encaixam. Conforme eu ia fazendo, percebia que talvez a história já estivesse pronta. Mas só tive certeza que seria ficção quando percebi que não encontraria a família dele. Ao longo do processo, porém, muitas cartas que eu tinha enviado começaram a ser respondidas. Então fiquei morrendo de medo: se a família aparecesse, ferrava com a minha história. Eu nunca tinha feito pesquisa desse jeito.

A relação entre o pai e esse narrador que por vezes parece indistinto do autor é central na narração. Você não se sentiu exposto por causa disso?

Carvalho: Quando eu entreguei o livro, as pessoas disseram que eu me expunha muito. Engraçado. Eu não me senti assim. Não acho confessional. Não me senti exposto em nada, me senti totalmente à vontade. De todos que escrevi, talvez esse seja o livro em que eu me sinto menos constrangido. Como se nesse tivesse menos verdade que nos outros. Os outros são mais eu do que “Nove Noites”. Tem também uma coisa que eu só percebi depois: o livro é sobre a paternidade.

Todo mundo está à procura de um pai. Os índios estão querendo um pai, pois de alguma maneira são órfãos da civilização. O Quain tinha uma relação complicadíssima com o pai, e ao mesmo tempo faz o papel de pai com os índios. O narrador, do mesmo modo, contrapõe a história do antropólogo com a do próprio pai. Tudo gira em torno da linhagem paternal. É curioso. É uma ficção que tem a ver com antropologia e que acaba sendo sobre as relações de parentesco.

Não teve medo que esse beletrismo [linguagem floreada] do Manoel Perna fosse confundido com um traço da sua escrita?

Esse personagem, o Manoel Perna, é uma espécie de desejo do autor de resolver as lacunas que não são resolvidas pela pesquisa. Várias pistas me induziam a certas conclusões, mas eu não tinha certeza. Precisava de um negócio que fechasse. E a única pessoa que podia ter visto era ele. Por isso logo no início percebi que ele seria um dos narradores. No livro ele aparece como engenheiro. Na verdade, ele era barbeiro. Mas achei que ia ficar muito inverossímil, ele escrevendo daquele jeito empolado com essa profissão. Foi a única coisa que eu mudei com relação a ele.

Por que Buell Quain veio para o Brasil?

Carvalho: O Franz Boas, diretor do departamento de antropologia de Columbia, estava interessado no Brasil. Era um território muito rico etnologicamente falando. Tinha muita coisa a ser explorada. Foi um desafio para o Quain, mas totalmente inconsciente. Ele tinha acabado de voltar das ilhas Fiji. Então pintou a oportunidade e ele topou. Ele estava vindo para estudar os Karajá. Quando chegou, percebeu que tinha uma tribo mais interessante, que eram os Trumai. Mas ele se ferrou.

Foi contra tudo e contra todos, e acabou sendo obrigado a voltar. Acho que tinha um lado um pouco ingênuo dele também, um pouco National Geographic, um pouco Jim das Selvas, um cara do interior dos Estados Unidos que de repente se acha o máximo. O Brasil pegou ele de surpresa. Tanto que, numa carta escrita pouco antes de morrer, ele diz que o país é ótimo para a antropologia, mas que ele não quer ficar aqui de jeito nenhum.

O Quain tinha orgulho de ser americano e uma noção de superioridade em relação ao Brasil que era muito irritante. Por incrível que pareça, mesmo querendo estudar antropologia, no fundo ele se achava superior. Por outro lado, as críticas que ele faz ao provincianismo, ao atraso brasileiro, são muito pertinentes. De alguma maneira, acho que isso torna a personalidade dele mais complexa.

29 de abril de 2009

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA_PADRE ANTÔNIO VIEIRA

{www.literatura2pontos.blogspot.com

Prof. Aloisio

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Padre Antônio Vieira

Pregado na Capela Real, no ano de 1655.

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.

"A semente é a palavra de Deus."

I

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que “saiu o pregador evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe [colheita] hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. [juízo final/morte/julgamento] O Mundo, aos que lavrais com ele [para os que nele vivem ou ‘trabalham’], nem vos satisfaz o que dispendeis [não lhe dá tudo o que você necessita], nem vos paga o que andais [nem oferece toda a recompensa]. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus [para quem vive/trabalha/anda com Deus e prega Sua palavra] até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto [até o que parece improdutivo, rende, frutifica]. Entre os semeadores do Evangelho [pregadores/evangelizadores] há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria [Portugal]. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara [campo de cultivo] em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos [idéia da recompensa que terá o semeador, o evangelizador]. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço [com mais lugar e reconhecimento na Corte portuguesa]; os de lá, com mais passos [mais trabalhos, mais percalços, que levarão ao reconhecimento no Céu]: Exiit seminare.

Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: “Uma vez que iam, não tornavam”. [ E cada qual caminhava para a frente; iam para o lado aonde os impelia o espírito; não se voltavam quando iam andando.] As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. “Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos”: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de umidade”: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. “Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves”: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira [plantação/evangelização]. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo [injúria, dano, prejuízo]. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: “Ide, e pregai a toda a criatura”. Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. [Brasil colônia] Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto [lamenta não pelo sofrimento dos evangelizadores, mas pelos possíveis fiéis perdidos] . Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados. [Valorização do sacrifício dos evangelizadores.]

Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? — Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, “quando iam não tornavam”: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que “aqueles animais tornavam, à semelhança de um raio ou corisco”: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum. [O pregador que assume a tarefa sem crer que a semeadura dará frutos, não persevera e desiste na primeira dificuldade. Aquele que insiste, verá um grão se multiplicar por cem.]

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão [darão certo] os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? —Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador [sem conhecimento do exercício da pregação]. Mas para que possais ir desenganados com o sermão [conscientes do poder das palavras do sermão], tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo [início, abertura, introdução] aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

II

Semen est verbum Dei.

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. [Exemplo de jogo de palavras, o cultismo.] Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora [se tornaria] santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? — Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria [o assunto] do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder [ser consequência] de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de [é necessário] haver três concursos: há-de concorrer [participar] o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister [é fundamental] luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? — A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. [Ao parafrasear a parábola do semeador, Vieira acrescenta sua argumentação.] Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? — Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. [... para que sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos.] Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? [Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu não lhe tenha feito? E como, esperando eu que desse uvas boas, veio a produzir uvas bravas?] — disse o mesmo Deus por Isaías. [A idéia é referente ao fato de Deus fazer tudo pelos seus filhos, porém há o livre-arbítrio.]

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte [por culpa] de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? — Os espinhos por agudos [sentido de pontiagudo], as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas [os espinhos] são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. [Então, Moisés levantou a sua mão e feriu a rocha duas vezes com a sua vara, e saíram muitas águas; e bebeu a congregação e os seus animais. Porém o coração do Faraó se endureceu, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito.] E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu [Jesus]; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem. [Referência à coroa de espinhos.]

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios [não se sobrepor à livre vontade] hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? — Por culpa nossa.

IV

Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? — No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? — Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja [luta]; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? – o conceito que de sua vida têm os ouvintes.

Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda [estilingue] de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. [E Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; e a pedra se lhe cravou na testa, e caiu sobre o seu rosto em terra.] As vozes da harpa de David lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. [E sucedia que, quando o espírito mau, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e tocava com a sua mão; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito mau se retirava dele.] Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? — Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? — Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. [E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória como a glória do Unigênito do Pai cheio de graça e de verdade.] De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Vissem os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.

Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos [lugar onde ele apresentou Cristo ao povo], conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a imagem do Ecce Homo [“Eis o homem”, Cristo coroado de espinhos e vestido de púrpura, conforme foi apresentado aos judeus]; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? — Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos, a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? — Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Batista tantos pecadores? — Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam. “Homens, fazei penitência” — e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam desapegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e veem outra, como se hão-de converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas [pecados], como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas [negadas] nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?

Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado, iracundo [irado], impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será? [A culpa não é da circunstância do pregador.]

V

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado [confuso, complicado], um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. [A arte de pregar tem algo mais de natural do que de artificial, ou seja, de técnica.] Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte; caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. “Caía o trigo nos espinhos e nascia” Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae “Caía o trigo nas pedras e nascia”: Aliud cecidit super petram, et ortum. “Caía o trigo na terra boa e nascia”: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim [chamar em minha defesa] o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? — O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum — diz David. [Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das Suas mãos.] Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. [Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes.] E quais são estes sermões e estas palavras do céu? — As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor [que pareça ornamentação]. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. [Crítica ao cultismo presente nos sermões.] Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos [instruções] nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: — estrelas que todos veem, e muito poucos as medem.

Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim [instruções vocabulares, dicionários], assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbatizados os santos, e cada autor que alegam [ao qual os pregadores recorrem] é um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Cetro Penitente dizem que é David, como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerônimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio [idiota]? Pois o que na conversação seria necedade como há de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo polido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. [A culpa não é do estilo.] Qual será logo a causa de nossa queixa?

VI

Será pela matéria ou matérias [assunto ou assuntos] que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos, e quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há de colher senão vento? O Batista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. [Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.] Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. [E começou Jonas a entrar pela cidade caminho de um dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida.] De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la, para que se conheça; há de dividi-la, para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto. [Trecho metalinguístico em que Vieira expõe o modo próprio de criar os sermões.]

Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo [para finalizar], há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. [é a verdadeira finalidade do sermão.] De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas [gravetos sem valor]. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas [folhas em geral]. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, a que podemos chamar “árvore da vida”, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito [não se surpreende] que se não faça fruto com eles.

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antônio de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco. [A culpa também não é do modo como são tratados os assuntos.]

VII

Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência [de sabedoria]. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides [sementes]? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há de deitar raízes, e o que não tem raízes, não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante [não creia que derrubará o gigante].

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: “Refazendo as redes suas”; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço [lançar a rede]. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.

As razões não hão de ser enxertadas [aplicadas à força], hão de ser nascidas [espontâneas]. O pregar não é recitar [decorar]. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.

Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca; há lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca para nos ouvidos; o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. [Apareceram-lhes então uma espécie de língus de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles.] E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras [evangelhos]; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos [entendidos], é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina [metáfora com a ideia da pena que serve à escrita]; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. [Quando clamou, os sete Trovões ressoaram.] Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; “suas, e não alheias”, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.

Contudo eu não me firmo de todo nesta razão [não me contento totalmente com essa ideia], porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. [Pregando o batismo de arrependimento para remissão dos pecados, como está escrito n livro dos sermões do profeta Isaías.] Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando [gritando], hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados [os gritos] que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. [Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!] Bradou o Senhor, e não arrazoou [discutiu] sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.

Perguntaram ao Batista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Batista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada [voz que argumenta e não que grita]. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa [nenhum delito] acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. [O governador tornou a perguntar: Que mal fez ele? E eles clamavam ainda mais forte: seja crucificado!] De maneira que Cristo tinha por si [ao seu favor] a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores “nuvens”: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? [Quem são estes que vêm voando como nuvens?] A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.

Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? [Não clamará, não se exaltará, nem fará ouvir sua voz na praça?] Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar [falar] familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma.

Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat; nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat.

Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salomão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. [Vieira finaliza as refutações à própria argumentação.] Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

IX

As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: “Quem semeia ventos, colhe tempestades”. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis [vocês perguntarão]: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. [O profeta que teve um sonho, que conte o sonho; e aquele em quem está minha palavra, que fale a minha palavra, com verdade.] As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio. Tentou o Demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei. [Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.] Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronômio. Vendo o Demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo noventa, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: “Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços para que te não faça mal.” De sorte que [de maneira que] Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo [do alto] do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derribado dela, senão a Cristo, a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-as alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! [Jogo de palavras: cabecear no sentido de concordar, dar com a cabeça pelas paredes tal qual se arrepender e se punir pelos pecados.] Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? [mas o que expôs?] Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?! Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. [Falava do templo do seu corpo.] Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos, pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, “em que os homens não sofrerão a doutrina sã”. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: “Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas”. Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso! [mais do que cristão, pertencente a uma ordem religiosa!]

Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa [peça cômica em que predomina o embuste e as situações ridículas]. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas) [Vieira faz referência à vestimenta do pregador]; a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio [referências à seriedade que o pregador deixa transparecer e do respeito do auditório]; e quando este se rompeu [quando o pregador começa a falar e rompe o silêncio], que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria [acreditaria] que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro [muita audácia], a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. [Trecho irônico.] Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister [a de que mais necessitam]. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Desses outros conceitos, desses outros pensamentos, dessas outras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos [ignoremos] nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, [Fomos entregues em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens] diz S. Paulo: O pregador há de saber pregar “com fama e sem fama”. Mas diz o Apóstolo: Há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado [famoso], isso é mundo; mas infamado [desacreditado], e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo. [Jogo de palavras.]

Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo [no final] fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.

Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se [discutiu-se] entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente [professor], que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: “Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.”

Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, [Porque, em suma, é a aprovação dos homens que eu procuro, ou a de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo.] dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: “Não mo disseram”. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.