A MORTE DE DJ EM PARIS
(Roberto Drummond)
Epígrafe:
Os grandes livros foram escritos
os grandes ditos foram ditos
e eu só quero tentar pintar um quadro
do que acontece por aqui de vez em quando
ainda que não entenda bem o que se passa
sei que morreremos algum dia,
e que nenhuma morte deterá o mundo.
Bob Dylan (no lp Bringing it all back home)
TRECHOS DOS CONTOS
A morte de DJ em Paris
ATO N° 2
Entressonho: fragmento do monólogo do “Diário de Paris”, escrito por DJ (...)
Imaginava a conversa com o Senhor Diretor do Colégio Dom Bosco que tinha voz de locutor o de galã de radionovela.
Você: — “Sabe o que eu quero, Senhor Diretor?”
Senhor Diretor: —“Suponho que sim, mas...”
Você: —“Não tem mas: quero um aumento, quase todos ganharam, só eu e mais dois que não, exijo um aumento...”
Senhor Diretor:—“ Calma, DJ, você se esquece que está substituindo o professor Valle na cadeira de geografia, esquece que está ganhando o salário dele...”
Você: —“Perdão, Senhor diretor, mas o professor Valle foi a Guarujá e daqui a cinco ou seis dias está de volta, exijo o aumento, senão vou para Paris e...”
Senhor Diretor: —“Paris, Paris, é ilusão, DJ, um pedaço de papel colorido, puro pedaço de papel...”
(...)
E de noite você ia ao bar “Flor de Minas”, e os trens apitavam e você falava na “femme bleue”, depois ia para casa, virava na cama, com a “femme bleue” engasgada na garganta. Até que você transformou o sótão do sobrado onde morava numa Paris de papel. Deixou aberta uma janela no teto, para as estrelas de Paris, e foi pregando cartazes turísticos e pôsteres do Quartier Latin. Nm biombo que fazia curvas, o Sena veio andando, trazia num “bateau-mouche” um casal de namorados acenando numa página dupla do Paris Match, e o Sena foi cortando sua Paris ao meio(...).
ATO N° 5
Entrevinda: narra o encontro de DJ com a mulher Azul em Paris, segundo o depoimento de um homem meio grisalho (...) “vindo de Paris só para depor”, ele declarou aos jornalistas no galeão. “Fui o confidente predileto de DJ...”
(...)
Ao acabar de passar a loção Lacoste, de Jean Patou, e estando no seu quarto no Hotel St. Michel, 19, rue Cujas, DJ ouviu um violão tocar, era um violão, não uma guitarra, e uma voz começou a cantar, primeiro longe, como se cantasse no Brasil, depois mais perto, cantava lindo:
“É, só eu sei,
Quanto amor eu guardei
Sem saber que era só pra você...”
DJ sentiu um arrepio na pele, abriua porta do quarto e foi andando pelo corredor do Hotel St. Michel, escutando a voz:
“É, só tinha de ser com você
Havia de ser com você
Senão era só uma dor...”
DJ encostava o ouvido na fechadura de cada porta: não, não é aqui — lembro dele me contando — e a voz de frevo cantando: “senão não seria o amor/ aquele em que a gente crê/ amor que chegou para dar/ o que ninguém deu pra você”, então DJ bateu na porta do quarto 6: era ela, a Mulher Azul.
Meia hora depois, ele passou cinco ou seis telegramas urgentes para os amigos brasileiros, mudando apenas o nome e o endereço de cada um. Diziam a mesma coisa:
“Encontrei Femme Bleue PT Nome dela é LU pt abraços DJ”
Lu, que era mesmo azul, trabalhava à tarde como “Baby sitter” numa casa na Etoile e, à noitinha, DJ ia buscá-la. Era bom ficar esperando na esquina da rue de L´Etoile com Montenotte, fumando um Gauloises. Ela vinha andando com seu ar de nuvem queimada pelo sol do Rio de Janeiro e entregava a DJ suas duas mãos. Às vezes usava um vestido amarelo, decotado atrás, e os dois vinham andando a pé, porque nunca tinham pressa.
ATO N° 7
Epílogo: da entrevista que a Mulher Azul deu à France Presse em Paris e que foi anexada ao processo de DJ, depois de publicada (...).
Vinha voltando pelo corredor do St. Michel quando, ao pegar a maçaneta pra abrir a porta que eu esqueci sem fechar à chave, escutei uma voz — pensei: quem será? Era uma voz de mulher que eu nunca tinha escutado, parei na porta sem entrar, fiquei ouvindo aquela voz falando em português:
“Acorda, DJ, acorda!”
Houve um ruído na nossa cama, senti que DJ acordava, ouvi a voz dele:
“Cadê a Lu? Onde foi a Lu?”
E a tal voz falou:
“Lu? Não existe Lu, DJ, você está delirando: se não sair daqui, se você não voltar, será considerado morto...”
“Onde foi a Lu? Luuuuuuuuuuuuu !!!!”
Eu calada, minha pele arrepia ao lembrar, ouvindo a tal voz:
“Não tem Lu, DJ, não tem paris: é tudo sonho, tentação, pecado; é invenção, DJ, não existem mulheres azuis! ...”
Escutei um barulho de fósforo sendo riscado, era DJ acendendo um Gauloises, e aquela voz dizendo:
“Se você continuar nesta Paris de papel, DJ, é a morte: ainda há tempo pra você se salvar”; na hora DJ sentiu um gosto de Minsiter no seu Gauloises, sua Paris virou uma capa do Paris Match: era de papel.
“Lu é invenção, mulher azul é invenção: te enganaram DJ, você ainda pode se salvar, você quer ser um morto-vivo, DJ ?”
(...)
Então o Minister e DJ virou Gauloises, Paris era Paris, e DJ me viu: eu com a toalha de banho na mão, gritou: “Morrer, Lu, é uma forma de viver”, e a beata remoçou, remoçou, e eu a olhei e falei: “Era você, Marimá?”, ela disse: “Era”, e me abraçou e chorava, coitadinha, tinha crises de vacilação. DJ já estava calmo, mas tremia, foi o que aconteceu. Agora você me pergunta se DJ está morto; respondo: alguns hão de querer que DJ esteja vivo, outros não. os que quiserem podem matara DJ, mas ele voltará no primeiro samba, nm frevo tocando e, até mesmo, quem sabe?, num grito de gol.
Dôia na janela
Dôia ficava olhando da janela. Como Dôia podia voar, puseram grades na janela, não eram grades como as das cadeias, eram pintadas de verde. Com a ponta da unha, Dôia arranhava as grades, a cada manhã, para nunca perder a conta dos dias que estava ali. Já havia 38 arranhões, como esmalte descascando da unha, nas grades verdes.
À noite, a vista era mais bonita da janela e Dôia via as luzes da cidade. Lá longe, onde a cidade acabava, parecia haver um mar, com navios chegando. Dôia gostava de olhar o anúncio luminoso da Coca-Cola e certas noites o único consolo de Doía era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se imaginava usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca num barzinho ao ar livre, onde cresciam samambaias longas como os cabelos de Dôia.
À tarde Dôia ligava o toca-fitas que a irmã trouxe. Eram as vozes e os barulhos da sua casa. Dôia ouvia o pigarro do pai, com o canto do sabiá ao fundo. Às vezes a mãe de Dôia cantava e os irmãos mandavam recado para Dôia. Dôia escutava os latidos da cachorra Laika e prometia ser boa para Laika quando voltasse para casa.
O quarto onde Dôia ficava era pintado de branco. Na cabeceira da cama penduraram um crucifixo e Dôia foi se tornando amiga daquele Jesus Cristo esquálido.
(...)
Era noite de lua cheia e Dôia viu três jipes parando onde iam fazer uma praça ou uma quadra de basquete. Uns homens desceram dos jipes e Dôia os viu sumir debaixo de umas árvores. Dôia ajustou a luneta e os homens voltaram, carregando uma cruz, como as usadas na encenação da Semana Santa. Puseram a cruz no chão e Dôia os viu arrastar um homem de dentro de um jipe. O homem estava com as mãos amarradas atrás, com uma corda de bacalhau, e usava uma calça Lee desbotada e um quedes azul, sem meia. Sua blusa Dôia imaginou como sendo “Adidas”, comprada
(...)
Dôia soltou um grito, que os outros internos pensaram que fosse alguém tendo um pesadelo, e o homem de calça Lee tirou o quedes azul, a calça Lee, a camisa Adidas e ficou nu, vestido apenas com uma cueca Zorba laranja. Os homens o agarram, houve gritos abafados, depois de um silêncio, com o rádio de um táxi tocando música, e Dôia começou a ouvir o barulho de martelo batendo prego. Dôia mudou de posição na janela, ajusto mais a luneta e viu os homens crucificando o homem de cueca Zorba laranja.
Dôia nunca soube quantos minutos se passaram. Os homens ergueram a cruz, fincando-a no chão, e Dôia viu um Cristo crucificado de cueca Zorba laranja. O cristo de cueca Zorba laranja. Falava alguma coisa que o vento levava à janela de Dôia e Dôia não conseguia ouvir. A última lembrança de Dôia foi a de um homem subindo uma escada com uma garrafa de Coca-Cola na mão, molhando um algodão com Coca-Cola e passando nos lábios do Cristo de cueca Zorba laranja.
(...)
— Sabe o que estavam fazendo de noite na praça onde ela viu a crucificação? — perguntou o dr. Garret, ajustando os óculos. — Estavam plantando rosas nuns canteiros...
Nos 385 dias que ainda ficou ajoelhada olhando da janela, Dôia nunca se esqueceu do Cristo de cueca Zorba laranja parecido com Alain Delon. Ele costumava aparecer nos sonhos de Dôia transformado numa rosa loura como os cabelos de Robert Redford.
Isabel numa 5ª feira
Isabel sempre foi estranha: colecionava receitas culinárias, recebia cartas com receitas de Hong Kong, era a favor dos Estados Unidos na América Latina e contra os Estados Unidos no Vietnã, chamava Fidel Castro de cortador de cana do Caribe e bastava falar
— Na sétima 5ª feira depois de Pentecostes...
(...)
... quando eu a beijava, ela dizia para eu esperar a sétima lua depois de Pentecostes, tomamos banho numa banheira como aquela dos anúncios do Sabonete Lever, Isabel apagou todas as luzes e acendeu velas e nós jantamos, ela me chamava de Philip e eu a chamava de Elizabeth, dançamos de rosto colado e apareceu a sétima lua depois de Pentecostes, navegamos num mar de lençol, pele e lua, as estrelas enfiadas nos cabelos dela, senti que as mulheres começavam a morrer e foi então que aconteceu.......se doeu?, na hora, não, depois eu engordei 20 quilos e fiquei assim, como você me vê, gordo como um bulldog, eu sou um bulldog e de noite eu não durmo: de noite eu converso com os pirilampos e se a lua é loura como Isabel eu fico uivando ..............................................................................................................................................................................................................................................................
Rosa, Rosa, Rosae
Rosa, Rosa, Rosae na aula de latinorum do Prof. Evagelistorum só as moscas voorum, ninguém piorum. Rosae, Rosa, Rosam por qualquer coisorum o Prof. José Evangelista relampeorum, trovejorum. A todos castigabus, gritava Violeta, Violetae, Violetorum
Rosa, Rosa, Rosae, na aula de latinorum do Prof. José Evangelistorum, só as moscas voorum, ninguém piorum. Rosae, Rosa, Rosam por qualquer coisorum o Prof. José Evangelista relampeorum, trovejorum. A todos castigabus, gritava Violeta, Violetae, Violetorum escrever mil vezes vezorum nunca mais hei de mascar chicles, chicletes, chicletorum na aula de latinorum. Paulo Paulus Paulu ficabus de joelho lá na frente frentorum e se outra vez eu te pegorum, dominus, domine, domini, o Prof. José Evangelistorum a mesa, esmurrorum na aula, aula, aulae de latinorum, como Joe Louisorum, a mesa, mesa, mesae nocauteorum.
Calca, calça, calçae, quase pega fragorum, cruz crudibus na lapela, o Prof. José Evangelista 12 anos passorum na soli, solidão, solidorum do seminário. Nunca ridibus, sempre serius e de meia preta, o colarinho da camisa encardido encardidae, as pontas viradas, nos olhos duas olheiras cor de uma 6ª feira da Paixãozorum. Só de entrar na sala, lá vem El Tigre Tigrorum, todos tremorum, aos alunos fuzilorum com seu olhar de lobisomem lobisomorum e todos tremiam peronia seculo seculorum.
(...)
O Prof. José Evangelista perto de Rosa Rosa Rosae ficorum, morena perna pernae morenae olhorum, tremorum, só escutorum a sanfona de Violeta Violetae tocorum quando os verdes verdorum dos teus olhos olhorum. Quando Rosa, Rosa, Rosae a saia azul abaixorum, e a prova, prova, provae perfumada de latim entregorum, o Prof. José Evangelista na sala soli ficorum, uma gargalhada gargalhadorum soltorum que as moscas moscae em borboletas borboletae cotovias cotoviae se transformorum e pra longe longebus voorum, cantavam aleluia aleluiae.
A outra margem
Passearam pela cidade com a sirene desligada. Viu o bairro que mais amava. Pararam numa esquina que, ao olhar a lua, ele quis rever. Sentiu um arrepio caminhar na pele como dedos de mulher. Vigiaram de longe. Ficou muito só, olhando para o passeio: achou que via uma mulher frágil, de costas magras. Disse: é você, Ana Paula? Achou que ouviu uma voz rouca: sou eu, e a voz rouca foi falando: a gente ao é um, a gente é meio e tem que procurar a outra metade, senão a gente fica como um rio que só tivesse uma margem. Disse: ah, Ana Paula, por que eu nunca te abracei antes?
(...)
Escolheram um lugar muito bonito. Desceu quase feliz porque seus joelhos não tremiam: viu as árvores, a mata para lá das árvores, a la crescente — achou que o lugar era mesmo muito bonito. Andaram com ele até debaixo de uma árvore que era também muito bonita. Sentiu vontade de beber conhaque Dreher. Perguntaram se queria que vendassem seus olhos. Respondeu: não é preciso. Andaram com as botas pisando o cascalho da estrada. Disse baixinho: ah, Ana Paula, se eu soubesse!
Falaram lá atrás, nas costas dele:
“Atira você primeiro, minha cabeça está explodindo.”
“E eu estou ensopado de suar, atira você...”
“Com esta tosse eu não consigo...”
“Vamos atirar os quatro juntos” — era a voz do que tinha a mão muito branca e era o superior dos outros.
“De olhos fechados?” — perguntaram.
“É...”
Foi repetindo: tive que morrer, Ana Paula para saber: você, Ana Paula, minha outra margem: você.
Os sete palmos do paraíso
A mãe de Batman ficava no retrato pendurado na parede da sala. Seus cabelos eram escuros como os de Póla Negri e a boca pintada de batom. Batman tinha os mesmos negros olhos tristes de sua mãe.
(...)
O apartamento de Batman tinha dois quartos e cheirava a mofo. E era escuro. De tarde tinham de acender as luzes. O dono do apartamento vinha cobrar os aluguéis atrasados e o pai de Batman se escondia dentro do guarda-roupa. Saía de lá cheirando a naftalina.
Batman tinha uma irmã sardenta que tinha um cão pequinês. O pequinês da irmã de Batman latia quando via o pai de Batman.
O pai de Batman ficou 47 dias sem poder trabalhar. De noite a mãe de Batman deixava o retrato na parede da sala e ia ao quarto do pai de Batman. Ia descalça e soprava brisa do mar nas costas do pai de Batman.
Batman sofria de insônia e escutava o arrulho dos dois.
O pai de Batman contava à mãe Batman que estava ganhando muito pouco. E fazia contas com uma esferográfica nas pernas da mãe de Batman. Eram umas pernas bonitas como as de Betty Grable.
O pai de Batman falava com a mãe Batman sobre seus chefes. Contava que se espremia nas escadas para deixá-los passar. Nos elevadores respirava o hálito de cebola ou vinho deles. Elogiava a gravata que usavam e assoviava “Deus Salve a América” quando eles davam um tapinha no seu ombro.
(...)
O pai de Batman perguntou se não podia pagar em 12 prestações. O homem de terno escuro parou de rodar o chapéu e respondeu que não. Então o pai de Batman buscou a espingarda de dois canos. Fez pontaria e o homem de terno escuro se protegeu com o chapéu. Saiu um clarão azul da boca da espingarda e uma explosão e o homem de terno escuro caiu em cima do sofá. Ainda ficou de joelhos no sofá e escreveu com sangue na parede o nome de Madalena, conhecida também como Lena. E repetiu Lena Lena Lena até morrer numa ambulância.
(...)
Batman fico só no apartamento e resolveu voar. Pôs sua capa de Batman e trepou na janela. Chegou a bater as asas no ar.
Acenderam quatro vela sem volta do corpo de Batman.
Tocou uma sirene e a mãe de p apareceu. Tinha uma orquídea caindo nos olhos e pássaros nos cabelos. Seus pés morenos estavam descalços e ela se ajoelhou perto de Batman. E o olhou com seus negros olhos molhados. Depois foi andando carregando Batman nos braços. Batman parecia dormir e a orquídea caía nos olhos da mãe de Batman. Ela sacudiu a cabeça de Pola Negri e andava.
Os pássaros na cabeça da mãe de Batman achavam que ainda ia haver uma festa. E cantavam.
O doce blues das hienas
Pegar a escova azul, pôr Kolynos na escova, não pôr muito Kolynos, pensar nas cáries, escovar com cuidado, fazer a barba com Platinum Plus, fazer devagar, olhar no espelho, descobrir uma ruga, pensar: preciso massagear o cabelo, lavar o rosto, passar Água Velva, pensar em Carla, pensar no maiô de Carla, vestir cueca, calçar a meia, vestir a calça cinza, pensar em Carla, lembrar de comprar um desodorante, lembrar de perguntar a Carla: qual é o melhor desodorante, Carla?, dar um nó na gravata, ajeitar a gravata, assoviar, sorrir diante do espelho, pôr o leite na xícara, misturar café, açúcar, passar manteiga no pão, mastigar com cuidado para não doer o dente, pôr o paletó, falar com a mãe: tchau, mãe, sair correndo, achar que a mãe está envelhecendo (...) pensar no pai de Carla, pensar em Carla, voltar pra máquina, sentir uma pontada no peito, ter medo de enfarte, ficar pensando: é ar preso, pensar na pobre da mãe de Carla, pensar em Carla sorrindo, estalar o dedo, escrever na máquina: Frigidaire é especialista em fabricar sorrisos como este, sai pro almoço, chegar em casa, rir por irmão, rir pra irmã (...) pensar em Carla, comer Carla com farinha, tomar água, comer goiabada, tomar café, beber Carla (...) pensar num filme pra televisão, pensar na marcha nupcial, pensar numa noiva andando de minissaia, de pernas brancas como as pernas de Carla, pensar na câmera seguindo a noiva andando, pensar no suspense: onde vai a noiva?, pensar na noiva abraçando a geladeira Frigidaire, pensar no locutor falando: Frigidaire sabe despertar explosivas paixões (...) lembrar que amanhã vai levantar, pegar a escova azul, pôr Kolynos, fechar os olhos, ver uma hiena, ver outra hiena, ver a terceira hiena, sentir na carne o dente das hienas, ouvir o rilhar das hienas, sentir que metade dele já é das hienas, falar com uma hiena: O coração, não, o coração é de Carla, ver uma hiena, ver duas hienas, ver três hienas fazendo uma flauta de seus ossos, escutar um blues, um doce blues, tocado na flauta dos sés ossos pelas hienas.
Um homem de cabelos cinza
Às primeiras horas da manhã de uma 2ª feira um homem de cabelos cinza começou a ser seguido no aeroporto Santos Dumont. Trajava um elegante terno Cardin e acariciava, por baixo do paletó, um misterioso objeto guardado exatamente em cima do coração. Um dos agentes que po espionavam, o gordo, careca, com cara de agente arrependido da ex-PIDE, conseguiu o eletrocardiograma do homem de cabelos cinza.
(...)
— O que será que ele olha tanto? — pergunta-se a aeromoça, fanática por James Bond. — Por que ele, mesmo de costas, parece tão feliz?
Quando enfim, graças a suas duas poderosas turboélices e a 839 ave-marias, 516 padre-nossos, 401 salve-rainhas, 191 creio em deus padre, 83 novenas poderosas ao menino Jesus de Praga, o Samurai pousou naquele chão que Marilyn Monroe jurou beijar, a aeromoça andou com as suas magras pernas de aeromoça, saltando os corpos caídos no chão molhado do Samurai, e parou ao lado do homem de cabelos cinza. Então ela viu o que nenhum dos 58 agentes tinha conseguido ver: viu o homem de cabelos cinza abrir uma caixa de fósforos Granada e fiar olhando um fio louro de cabelo de mulher.
Um pouco pra lá do Aconcágua
Ele usa óculos de tartaruga e é bom respirar o perfume dele e ele diz que está organizando uma expedição ao Aconcágua e ele não sabe que sou eu que mato os gatos e ele pergunta se eu quero fazer parte da expedição; ele é bem barbeado e ele fala que está me convidando porque sabe que eu sou vice-campeão brasileiro de tiro ao alvo e ele pergunta:
— Você aceita?
Eu respondo:
— Vou pensar.
(...)
Agora eu bebo vinho e fico achando que o vinho cheira a sangue, aí eu acho que é um sonho, deve ser um sonho, porque eu estou entrando numa farmácia e fico olhando a moça do anúncio do Sal de Andrews, fico olhando e pensando na Martine Carol, depois eu compro um sabonete Lifebuoy e vou pra casa e eu abro o chuveiro e sinto a água caindo nas minhas costas como dedos da Tê e fico pensando que ainda bem que o Dico não sabe que sou que mato os gatos.
(...)
Mas agora, toda noite, o Tyrone Power aparece pra mim: primeiro ele é um gato, depois ele ganha formas humanas e eu vejo ele e ele anda com seu andar de centerfor e começa a cantar um hino, aí me dá uma coisa, eu fico querendo voltar a ser como eu era antes destas coisas todas, mesmo que depois eu morra como o general venezuelano morreu, sentido as balas da metralhadora Ina me furando e me esmurrando como o Cassius Clay e eu vou olhar a estrela vespertina de Caracas e eu vou achar que tudo ta feliz como se tivesse bebido Gim Tônica e eu vou morrer pensando que minha alma é branca como a garça que voa mais pra lá do Aconcágua.
Objetos pertencentes a Fernando B, misteriosamente desaparecidos
— Uma escova dental marca Tek, cor azul, tendo a Sr. Íris D, proprietária da pensão onde morava Fernando B, declarado que o desaparecido tinha obsessão pela cor azul, recordando que ele se transformava, sempre que vestia a camisa azul, peça principal do presente inquérito .......................................................................................................................................................................................................................................................
Fotografia de Catherine D., lendo-se nas cotas esta dedicatória:
Fernando: me guarde dentro do coração. Ass. Catherine D.
adiantando o delegado Godofredo R que, em face das suspeitas, foi decretada a prisão preventiva, em todo território nacional, das sósias de Catherine D, sendo efetuadas dez prisões, nas primeiras diligências.
(...)
— O índio Lírio do V, valendo-se de um lamentável descuido da sentinela, seccionou a própria língua, atirando-a pela grade da cela, sendo a mesma devorada por um gato que passava pelo local.
— Edwaldo F se enforcou no pijama e seu corpo balançava ao sopro da doce brisa do mar e impedia que a lua entrasse na cela 82.
— As dez Catherine D foram personagens de misteriosas ocorrências, sendo que uma morreu do coração, outra de solidão, outra tossindo rosas de sangue, a quarta tossindo os espinhos, a quinta bebeu água sanitária, a sexta cortou s pulsos, a sétima bebe veneno, a oitava se suicidou, a nona chegou morta, a décima morre quando o rádio tocava a Hora de Angelus.
OS PAPÉIS DO INGLÊS
(Ruy Duarte de Carvalho)
ou
O GANGUELA DO COICE
narrativa breve e feita agora (1999/2000) da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo á sua volta segundo uma sucinta crônica de Henrique Galvão
A estória do Inglês, segundo Henrique Galvão
Um cidadão inglês retirado do mundo, de boas famílias e caçador de elefantes, Perkings (...) abate a essa altura, com arma de fogo, um obscuro Grego, companheiro de profissão com quem partilha o acampamento. Procura depois o posto administrativo mais próximo, a
(...) a motivação direta do crime, por ele atribuída a uma intempestivo reação do Inglês a insinuação torpes do Grego acerca da sua aversão a mulheres brancas. Da mesma forma, que eu, a deter-me agora nesta estória, haveria de introduzir muita perturbação e muita invenção minhas na versão das coisas. É isso que vai acontecer?... Depende... Tenho que ver primeiro o que estará a passar-se por aqui.
Destinatário fictício
E se e ensaiasse, então, um golpe de cintura mas à minha maneira e em vez de propor-me escrever para alguém, para muitos alguéns, me limitasse, singela e humildemente, a escrever a alguém? O que há-de ser preciso para escrever, em primeiro lugar, senão achar que vale a pena porque tem destinatário? E para contar uma estória, que outra e única e suficiente razão poderá haver senão vontade de a contar, de contar coisas? Então avante, tenho dez dias à minha frente, fará de conta agora que são e-mails(...).
Metalinguagem
E não te espantes nem penses que é tudo, afinal, invenção minha. Do que inventar dar-te-ei notícia explícita. E também não vou discorrer agora sobre o lugar do acaso, ou do lado oculto do acaso, quando agencia as pontas da vida. De qualquer forma, vais ver, à circunstância do Paulino ter tido um avô ocupado durante parte da juventude a servir um branco de quem, ao longo da vida, tinha guardado uns papéis — e este podia, muito bem, ter sido o Inglês do Galvão — viriam articular-se pelo menos mais duas que, surpreendentemente para mim, acabariam por conduzir a desfechos imprevistos.
(...)
Por essa altura eu já tinha inventado o tal enredo praticamente completo para minha estória de suicídio e crime que ia elaborando a partir dos elementos que Galvão tinha introduzido na sua crônica sobre o estranho caso do Inglês “que não suportava mulheres brancas”. Para mim o ponto de partida só podia ser esse, naturalmente, mas a exigüidade dos dados disponíveis, mesmo tendo em conta o que a tal respeito dissera também o médico Luiz Simões nos artigos de caça, de forma alguma me parecia à altura do potencial dramático da estória. Cenas, situações, encadeamentos e desenlaces, que vinham sobretudo preencher os vazios das verdades de que dispunha, passaram então a ocorrer-me com grande freqüência e nitidez.
(...)
Detenho-me para pensar se ao longo do me débito e à medida em que fui insinuando a estória do Inglês, não terei produzido uma expectativa a que o meu trabalho imaginativo acabou por não garantir provimento. E se tal ênfase não terá afinal traído também minha voluntariosa intenção de explorar as contigüidades que me pareciam interessantes, e evidentes, entre essa estória — e o tratamento de quem a protagonizava — e a minha própria busca dos papéis do Inglês e do meu pai. Um enredo único, portanto, que se desenvolveria através de vários leit-motifs, incluindo o dos tesouros.
Narrativa em abismo
A minha corrida atrás de uns papéis, do meu pai mas que podiam ser também os do Inglês da estória do Galvão, gera a ação de que há-de resultar uma segunda estória. Será da minha ação enquanto personagem, assim, que resulta essa outra estória que é, afinal, a da minha elaboração da própria estória do Galvão. Vou ter que contar-me, tratar-me, pois, enquanto personagem dessa estória. E essa então será, comigo a atuar lá dentro e a primeira inscrita nela, a tal estória que tenho para contar-te. E quem narra há-de ter, ele também, que dar-se a contar?
Tesouro
Só não sabia ainda, nessa altura, estar também no encalce de tesouros daqueles que não se procuram, vêm ao teu encontro, hei-de chamar-te a atenção para isso, e é desta forma que a procura e o achamento de tesouros se constitui como um dos “leit-motifs” do que tenho para contar-te. Parece remeter a climas de Indiana Jones, não é? Também isso me ocorreu na altura e, é claro, sorri. Para além do que, desastrado sou e entendo que o direito ao disparate é um dos direitos fundamentais do homem.
Independência e crise em Angola
O meu primo Kaluter fazia parte daquela avalanche dos que, tendo deixado Angola com a independência, para habitar sobretudo Portugal e a Namíbia, vinham agora depois das eleições, e mesmo com a guerra de novo a ferver, avaliar como é que as coisas estavam a correr cá pela terra. O fantasma do comunismo estava ultrapassado, havia lugar a iniciativa privada, as alianças com a burguesia nacional, que emergira desde que tinham partido e ocupavam agora um lugar incontornável nos corredores do mercado, constava com coisa fácil e propícia. A corrupção imperava, e isso e a própria guerra, mais o desconcerto institucional, favoreciam muito negócio, muito expediente.
(...)
O país agora está partido, a situação geral é um perfeito escândalo, a determinação que nos mobilizava, e justificativa, não resulto de maneira nenhuma, (...) as “diferenças” não se verificaram no sentido que perseguíamos, nem segundo a ideologia do “toca a dividir” que por pudor calávamos ou por oportunismo apregoávamos, já que dela, na prática, nunca vigorou senão uma caricatura institucional e burocrática, nem segundo um programa aferido ao país que afinal haveria de ser o que fizéssemos dele...
FINAL:
Deveria eu, perdido como estava no vazio da conclusão, das conclusões, a da estória e a da tarefa, a ponderar ainda assim que sim, o sábio sufi tem toda razão, mais que o achado vale sempre a busca (...) deveria eu contar-lhe [a Paulino] agora, e pô-lo a pensar em todo este enredo para o resto da vida, que seu avô tinha afinal sabido sempre de um tesouro que ele próprio enterrara, o do marfim do Inglês, e o tinha deixado para trás quando dali fugiu com os salvados do fogo(...) Que esse tesouro esteve ao alcance do meu pai, bastava ter lido aquilo tudo até o fim [as anotações e as indicações presentes nos papéis do Inglês] e procurado depois o homem que lhe vendera os papéis? Deveria dizer agora ao Paulino que se o seu avô e o meu pai se tivessem reencontrado poderíamos um dia, pelo menos uma breve vez na vida, ter ficado ricos os dois? Era esta a desprezível moral possível, a extrair desta estória, num mundo tão desprezível como este em que eu e o Paulino andávamos a viver? (...)
Bastava continuar a subverter S.Mateus (“Onde está o teu tesouro está também teu coração”) e achar que tesouro, a haver, há-de estar é onde o coração houver.
Vitivi, 31 de dezembro de 1999
Em Os papéis do Inglês, obra de ficção portuguesa publicada em 2000 e primeiro romance do antropólogo Ruy Duarte de Carvalho, o autor repete um procedimento romanesco que usou em sua obra anterior, Vou lá visitar pastores, ou seja, escrever a alguém. Esse procedimento simultaneamente extrapola e estrutura a prosa como pretexto de relato dirigido, neste caso, a uma destinatária que se insinua e instala no texto. São e-mails que servem de suporte a uma narrativa densa, povoada de referências, observações e reflexões pessoais: "Cada um de nós, aqui ao fim destes anos de perplexidade constante, transporta para onde vai as marcas do exercício pessoal da sua sobrevivência."
O autor embrenha-se na decifração do mistério dos documentos deixados por um caçador inglês, que andara pelo seu território de eleição nas primeiras décadas do século passado, e aos quais já se referira, incidentalmente em sua obra Vou lá visitar pastores.
Em primeira pessoa, conta uma história de ganância, violência e paixão. Um professor universitário decide viajar para a África para investigar o suicídio, ocorrido em 1923, de um caçador de elefantes. Este caçador, depois de matar um companheiro de profissão grego às margens do rio Kwando, na fronteira com a atual Zâmbia, e de se entregar às autoridades portuguesas que não lhe dão ouvidos, volta ao acampamento e abate a tiros tudo o que vê pela frente terminando por disparar a arma contra o próprio peito. Uma ficção hesitante que informada pela antropologia, preza o princípio de que a busca vale mais que o achado. As peripécias vividas pelo protagonista, o professor, ressoam numa dimensão individual. Ele desconfia que algo sobre sua personalidade pode ser descoberto na trajetória desse caçador inglês.
Por esse mesmo princípio, o caminho só pode ser visto pelo acúmulo e pela sobreposição de histórias. O que ocorre então é uma narrativa em permanente suspeita perante si mesma, a questionar-se, interrompendo-se para revelar, por um processo análogo ao relativismo antropológico.
Com uma prosa de sabor incomum, que explora toda a riqueza vocabular do português angolano, é uma obra que discute não apenas os limites do homem num ambiente hostil mas também as possibilidades da linguagem ficcional. É ela que pode redimir as desilusões do professor, crescentes à medida que sua investigação se aproxima do desfecho, e atenuar, quem sabe, a dureza de um mundo no qual os sonhos parecem estar para além da fronteira, para além de todas as fronteiras.
A impressão que se tem é que Ruy Duarte de Carvalho serve-se de uma estória angolana para fazer também a sua teoria da literatura, de dentro de um país em crise permanente, onde se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã.
Bernardo Carvalho, para o jornal Folha de S. Paulo