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1 de novembro de 2006

eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

1) Sobre o título:
RuffatoTalvez eu não seja o mais indicado para responder a questão. Mas, tentarei. O trecho do poema da Cecília Meireles, que serve de epígrafe ao livro, indica uma possível leitura: "eles eram muitos cavalos / mas ninguém mais lembra / de sua pelagem, de sua cor, de sua origem". Assim como ninguém mais lembra daqueles personagens que busquei retratar ao longo dos fragmentos do livro.

↔ A primeira epígrafe relaciona-se à despersonalização que ocorre nos grandes centros urbanos: o indivíduo se transforma em “multidão”.

↔ A segunda epígrafe, “Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios”, extraída do Salmo 82, indica a falta de juízos de valor por parte do “narrador”. Há uma preocupação em descrever, não em julgar, por isso muitas vezes a enumeração substitui a narração.
2) Sobre o livro:
RuffatoQuando escrevo, antes de se tornarem palavras, sirvo-me de imagens. Tento captar o ângulo e a luz para expressar exatamente o que gostaria. Daí a influência da fotografia: o olhar é o olhar de quem tenta ir além da cena que se desenvolve à sua frente. Mas o Eles eram muitos cavalos está muito impregnado também de outras linguagens não-literárias: artes plásticas, cinema, teatro, jornalismo, propaganda, música.

3) Sobre o processo de escrita do livro:
Ruffato
Comecei a pensar o que poderia oferecer como imigrante; eu falei "que contribuição posso dar para São Paulo? Como poderia tentar entender São Paulo?". Então, comecei, durante praticamente uns oito, nove meses, a fazer um monte de experiência. Por exemplo, não há uma coisa escrita que seja só fruto da imaginação. Para a cena da luta de boxe, eu fui ver uma luta de boxe; o estádio de futebol, a marcha das diretas...
Enfim, eu pensei: como a cidade se comporta o dia inteiro? Então, peguei um dia da cidade, não me lembro exatamente qual, e comprei os jornais todos daquele dia e mais aquele monte de informações e guardei. Quando foi julho de 2000, fui para Cataguases e fiquei de férias um mês, enfiado na casa de minha mãe, sozinho. Peguei cola, tesoura, lápis, papel, comecei a escrever à mão, pegava uma notícia de jornal, tentava entender o que tinha por trás daquela notícia, contando experiência pessoal também, e tal. Montava alguma coisa, mas sempre com esse dado da realidade. Depois que fiz isso tudo, deixei de lado, peguei o computador, sentei e fui escrever. Foi um exercício muito interessante. Demorei pra caramba para escrever porque eu não escrevo, reescrevo, então, escrevo, escrevo, escrevo, escrevo até chegar... O resultado foi muito grande, fui descartando um monte de coisas que não se encaixava bem no que eu queria, ou que não conseguia encaixar cronologicamente ou no qual a história não fazia parte.

4) Sobre a escrita:
Ruffato
São inegáveis as mudanças provocadas pelo aparecimento do cinema, da tevê e da internet. No meu caso específico, essas mudanças, principalmente na maneira de descrever a realidade, foram incorporadas antropofagicamente à minha própria linguagem. Eu transformo tudo em linguagem.

5) Sobre literatura e realidade:
Ruffato
Toda literatura está perto da realidade, pois se nutre dela. Há graus de proximidade diferentes. Mesmo quando se trata de uma literatura escapista, a realidade é a referência. No meu caso, a realidade que me interessa é a física - cheiros, sons, volumes, cores e sabores - que informam a realidade metafísica - sentimentos, desejos, angústias, culpas, remorsos, vinganças etc etc. Minha tentativa é a de reproduzir seres de carne e osso em papel. Daí ser tão real. Daí ser tão ficcional. Porque, entre a realidade e a ficção - a poesia.

↔ O uso de referências urbanas contemporâneas e a utilização de uma linguagem marcada pela rapidez, por expressões atuais, por cortes bruscos na narrativa e pelo excesso de informação dão uma sensação de realidade à escrita.

folhetos de simpatias, classificados de jornal (emprego, relacionamentos, eróticos), boletim de previsão do tempo, horóscopo, numerologia
gírias, utilização da linguagem coloquial e de termos chulos
retratos de “personagens” que habitam o grande centro urbano, como, por exemplo, o porteiro, o evangélico, o playboy, o adolescente problemático, casais separados, um taxista, um índio marginalizado e bêbado, uma roda de amigos, um médico, o mendigo, um desempregado, o morador de rua, uma atriz decadente, um casal numa casa de swing, o traficante, a prostituta, um pastor de rua, o acessor político,o corrupto engravatado, um internauta, o torcedor de futebol.
presença de referências de todas as classes sociais e retratação de diversas situações comuns numa grande cidade
Ex: diálogos burgueses sobre viagens ao exterior, expressão de desespero diante da falta de dinheiro para comprar comida para o filho recém-nascido, contraste entre um operário morto e os clientes de um restaurante elegante, cotidiano asfixiante de trabalhadores sem perspectiva de melhora, medo de ser assaltado no trânsito e ser assassinado, dificuldades no relacionamento conjugal ligadas à opressão causada pela vida na periferia, angústia diante da impossibilidade de ajudar crianças que trabalham como ambulantes, agressão de jovem de classe média alta contra porteiro, família de miseráveis e marginalizados se espremendo em um barracão imundo, depredação de uma escola pública por usuários de drogas, relacionamentos entre pais divorciados e seus filhos, preocupação das famílias com tiroteios freqüentes, pastor que vai até o centro pregar aos berros o evangelho e expor sua regeneração, prostituta prestes a ser agredida que se lembra de um antigo cliente, rico e gentil

↔ As situações, as emoções e as reflexões são descritas tanto pelas próprias “personagens” quanto por um observador que não se preocupa em julgar, mas retratar. Muitas vezes, a voz da “personagem” invade a narrativa e a estruturação do texto, marcado pela falta de pontuação constante ou montado a partir de fragmentos aleatórios de frases – é comum que muitos dos “contos/fragmentos/capítulos” terminem bruscamente, como se a frase tivesse sido abandonada. Esse entrecruzamento de vozes narrativas contribui para formar uma composição sólida da realidade urbana brasileira, pois toda ela é marcada pela diversidade mas, ao mesmo tempo, pela exclusão e pelas desigualdades sociais.

↔ A polifonia, a variedade de vozes na narrativa, deve-se à diversidade de “personagens” anônimas que desfilam pelas páginas, surpreendidas nos dramas do seu cotidiano e nos flagrantes da sua existência por um narrador-fotógrafo. São Paulo se tona uma cidade-personagem, e na verdade é ela que nos está sendo narrada, a partir de todas as histórias que se atropelam para formar um grande mosaico. A página negra no final é um negativo queimado, um blecaute, um cochilo ligeiro sem sonhos, a própria noite densa e silenciosa, perturbada pelo gemido de alguém lá fora que acorda um casal amedrontado com a violência urbana, que, por precaução, resolve ficar quieto, pois não há nada a ser feito – “Amanhã a gente fica sabendo”.

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