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27 de maio de 2009

Nove Noites (Bernardo Carvalho)_material da aula_CEFET

Nove noites (Bernardo Carvalho)

· Suicídio do antropólogo Buell Quain: fato histórico

Quain se suicidou no dia 02 de agosto de 1939, aos 27 anos, um ano e cinco meses depois de ter chegado ao Brasil, e depois de ter ficado cinco meses sozinho com os índios Krahô.

Relato de Manoel Perna

1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergun­te aos índios.

Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia re­ceberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela supo­sição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antro­pólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanha­vam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desapare­cer comigo o que confiei à memória.

Também não posso confiar a mãos alheias o que lhe pertence e durante todos estes anos de tristezas e de­silusões guardei a sete chaves, à sua espera. Me perdoe. Não posso me arriscar. Já não estou em condições ou idade de desafiar a morte. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este testa­mento para quando você vier e deparar com a incerteza mais absoluta. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e ines­perado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando. Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de inter­pretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para acreditar.

Estarei abusando da sua paciência e boa vonta­de, seja você quem for, se lembrar que morremos todos?

(...)

Era preciso que ninguém achasse um sentido. É preciso não deixar os mortos tomarem conta dos que ficaram.

Desde o início, embora não pudesse prever a tragédia, fui o único a ver nos olhos dele o desespero que tentava dissimular mas nem sempre conseguia, e cuja razão, que cheguei a intuir antes mesmo que ela me fosse revelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que fosse só para aliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. Tendo presenciado os poucos momentos em que não conseguiu se conter, eu sa­bia, e o meu silêncio era para ele a prova da minha amizade. Assim são os homens. Ou você acha que quando nos olhamos não reconhece­mos no próximo o que em nós mesmos tentamos esconder? Não há nada mais valioso do que a confiança de um amigo. Por isso aprecio os índios, com os quais convivo desde criança, desde o tempo em que o meu avô os amansou. Sempre os recebi na minha casa. Sempre soube o que diziam de mim pelas costas, que me consideravam um pouco louco, aliás como a todos os brancos.

Mas a mim importava apenas que pudessem contar comigo. E que soubessem que eu não esperava nada em troca. De mim teriam tudo o que pedissem, e Deus sabe que seus pedidos não têm fim. Fiz tudo o que pude por eles. E também pelo dr. Buell. Dei a ele o mes­mo que aos índios. A mesma amizade. Porque, como os índios, ele es­tava só e desamparado. E, a despeito do que pensou ou escreveu, não passava de um menino.

(...)

Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que, por segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia compreender o que ali estava escrito (...).

Guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei que ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete no lugar da car­ta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o professor Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me dirigia ou com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do morto, uma vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever uma carta de pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me certificar de que você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha compreendido, já que não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes dei­xo este testamento para quando você vier.


Relato do Narrador-jornalista:

2. Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nun­ca precisei responder.

Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor idéia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num ar­tigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Se­gunda Guerra.

(...)

[Ao procurar a antropóloga que havia escrito o artigono jornal:]

Supôs que eu quisesse escrever um romance, que meu interesse fosse literário, e eu não a contrariei. A história era realmente in­crível. Aos poucos, conforme me embrenhava naquele caso com as minhas perguntas, passou a achar natural a curiosidade que eu demonstrava pelo etnólogo suicida. (...)Fiz algumas viagens, alguns contatos, e aos pou­cos fui montando um quebra-cabeça e criando a imagem de quem eu procurava. Muita gente me ajudou. Nada dependeu de mim, mas de uma combinação de acasos e esforços que teve iní­cio no dia em que li, para o meu espanto, o artigo da antropó­loga no jornal e, ao pronunciar aquele nome em voz alta, ouvi-o pela primeira vez na minha própria voz.

Sete cartas deixadas por Buell Quain:

1. Ruth Benedict, orientadora

2. D.Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional

3. Manoel Perna, engenheiro de Carolina

4. Capitão Ângelo Sampaio, delegado

5. Dr. Eric P. Quain, seu pai

6. reverendo Thomas Young, missionário instalado em Mato Grosso

7. Charles Kaiser, cunhado.

SUPOSIÇÃO DA 8ª CARTA:

(...) talvez ele tivesse sido compelido ao suicídio, talvez tivesse se matado, em pânico, ao entender que não conseguiria escapar não só da culpa, mas de uma ameaça real, antes que fosse assas­sinado. Talvez houvesse razões para ele ser assassinado. Talvez não quisesse que essas razões viessem à tona. "Os índios estão a salvo, pelo que fico muito feliz." Talvez preferisse se matar. Tudo dependia do que tivesse feito na aldeia. Para mim, a res­posta só podia estar numa das cartas que escreveu antes de mor­rer, as quais desapareceram com os seus destinatários. Ainda as­sim, me parecia pouco provável que, se houvesse uma explicação numa das cartas que o etnólogo deixou ao pai, ao cunhado ou ao missionário Thomas Young, ela pudesse não ter vindo a públi­co. Foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia ha­ver (ou ter havido) uma oitava carta.

Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê.

Relato de Manoel Perna: suicídio de Quain

3. Isto é para quando você vier. Foram apenas nove noites. (...)Teria ido eu mesmo, se soubesse que, entre aquelas cartas, eu lhe enviava a sentença de morte, teria ido sozinho e a pé se fosse pre­ciso, para trazê-lo de volta em segurança para a cidade. Ele me fize­ra prometer que lhe remeteria as cartas por um portador assim que chegassem.

Peço que me desculpe. Sei que o deixei com a dúvida, mas posso lhe garantir que ele a recebeu. Antes de entregá-los ao meu irmão, li entre os envelopes do último correio, que chegou no início de julho pelo avião da Condor, o nome de um remetente que depois eu iria reconhecer entre os destina­tários das cartas que ele escreveu nas horas que antecederam a sua morte, justamente aquela carta entre todas as outras que decidi guar­dar comigo, a despeito do que você possa pensar, em nome da memória do dr. Buell, e para proteger os índios, a carta que ele lhe deixara. Os índios disseram que ele passou a viver num estado de absorção terrível depois de receber a última correspondência que eu havia mandado pelo meu irmão, um retraimento desconhecido durante a sua vida pregressa na aldeia. Foram as cartas que ele queimou na sua última jornada de volta a Carolina e com as quais obteve o fogo e a luz de que preci­sava para escrever as que deixou, chorando copiosamente, antes de se suicidar no meio da noite. Da sua carta, todavia, ninguém nunca sou­be nada.

Relato do Narrador-jornalista: suposição da existência da oitava carta

4. Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei responder. Todo mundo quer saber o que sabem os sui­cidas. No início, deixei-me levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma morte passional e concentrei a mi­nha busca nesses vestígios. Devia haver outra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos e sentimentos.

· Personalidade de Buell Quain:

1. não gostava de mostrar o quão rico era na verdade

2. tinha fama de ser instável, pessoa solitária e fechada, sem muito interesse pelo mundo

3. trancou a matrícula na faculdade e embarcou como marinheiro pra Xangai

4. crítico quanto ao comportamento dos índios Trumai, para cuja aldeia vai quando chega ao Brasil:

[O fato é que no começo Quain achou os Trumai "chatos e sujos" ("Essa gente está entediada e não sabe"), o contrário dos nativos com quem convivera em Fiji e que transformara num modelo de reserva e dignidade. Julgava os Trumai por oposição a sua única outra experiência de campo: "Dormem cerca de onze horas por noite (um sono atormentado pelo medo) e duas horas por dia. Não têm nada mais importante a fazer além de me vi­giar. Uma criança de oito ou nove anos parece já saber tudo o que precisa na vida. Os adultos são irrefreáveis nos seus pedidos. Não gosto deles. Não há nenhuma cerimônia em relação ao con­tato físico e, assim, passo por desagradável ao evitar ser acaricia­do. Não gosto de ser besuntado com pintura corporal. Se essas pessoas fossem bonitas, não me incomodaria tanto, mas são as mais feias do Coliseu". O etnólogo comparava os mirrados Tru­mai aos homens musculosos de Fiji, que ele havia retratado em seus desenhos e fotografias. Ainda na carta a Benedict, ele diz: "Minha doença me deixa especialmente angustiado e inseguro em relação ao futuro", sem especificar do que está falando.]

5. "Cãmtwyon" passou a ser, para mim, ao mesmo tempo a casa do caracol e o seu far­do no mundo, a casca que ele carrega onde quer que esteja e que também lhe serve de abrigo, o próprio corpo, do qual não pode se livrar a não ser com a morte, o seu aqui e o seu agora para sempre. "Cãmtwyon" passou a ser para mim o rastro do caracol: não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre aqui.

Relato de Manoel Perna: título da obra

8. Isto é para quando você vier. Se é que realmente quer saber. (...)Bebemos e conversamos. Era pre­ciso que nos conhecêssemos. Foi a primeira noite. (...)Se faço as contas, vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho, quando vinha à minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanhei pelo primeiro trecho de sua volta à al­deia, quando pernoitamos no mato, debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não havia requisitado a minha com­panhia, mas senti que devia acompanhá-lo a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que nunca mais o veria. O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da mi­nha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno.

Relato do Narrador-jornalista: identificação com Buell, crítica ao desamparo dos índios por parte da civilização

Ninguém nunca me perguntou, e por isso nunca precisei responder que a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava, no Xingu da minha infância. (...) Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo associado a uma espécie de pa­raíso, à diferença e à possibilidade de escapar ao seu próprio meio e aos limites que lhe haviam sido impostos por nascimen­to, para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno.

(...)

O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos ín­dios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice in­crível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: "Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empur­rados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobre­vivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou".

· Narrador-jornalista vai à aldeia à procura de um índio Krahô que, quando criança, teria convivido com Quain:

Aquela altura, eu já estava completamente obcecado, não conseguia pensar em outra coisa, e como todos os que eu havia procurado antes, eles também não quiseram saber por quê. Nin­guém me perguntava a razão. Eu dizia que queria escrever um romance. (...)

Foi na casa de Manoel Perna que Buell Quain encontrou um interlocutor atento nas noites que passou em Carolina ao desembarcar em março, e depois em sua passagem pela cidade no final de maio e início de junho, quan­do veio buscar cartas, dinheiro e mantimentos, e comemorar o seu aniversário. Foi para lá que a comitiva de índios se encami­nhou dois meses depois, para anunciar a tragédia e entregar os pertences do morto ao engenheiro.

· METALINGUAGEM: explicação do romance para os índios

Os velhos [índios] estavam preocupados, queriam sa­ber por que eu vinha remexer no passado, e ele [o índio que interpelava o narrador] não gostava quando os velhos ficavam preocupados. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo o que eu que­ria saber já era conhecido. E ele me perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?".

Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma conseqüência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. Eu estava entre irritado e amedrontado. Tinha vontade de mandar o índio à puta que o pariu, mas não podia me indispor com a aldeia. Se é que havia alguma coisa a descobrir (...) era preciso ser diplomático. Ele queria por­que queria saber a razão da minha presença na aldeia. (...)

Não sorria, não demonstrava nenhum gesto ou expressão de simpatia. Tinha um olhar impassível e determinado. O motivo da sua visita era me encurralar. Repetia: "Os velhos estão preo­cupados". E eu pensava comigo: "O idiota deve ter ouvido algu­ma coisa e resolveu tomar a iniciativa de me pedir satisfação". As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tenta­va dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a fic­ção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua per­gunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fun­do, ele não estava interessado), nem convencê-lo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final se­ria tudo inventado.

· Narrador-jornalista faz uma leitura crítica da relação entre os índios e os brancos:

São os órfãos da civiliza­ção. Estão abandonados. Precisam de alianças no mundo dos brancos, um mundo que eles tentam entender com esforço e em geral em vão. O problema é que a relação de adoção mutua já nas­ce desequilibrada, uma vez que a freqüência com que os Krahô vêm aos brancos é muito maior do que a freqüência com que os brancos vão aos Krahô. Uma vez que o mundo é dos brancos. Há neles uma carência irreparável. Não querem ser esquecidos. Agarram-se como podem a todos os que passam pela aldeia, como se os visitantes fossem os pais há muito desaparecidos.

(...)

Estava apavorado com o que pudessem fazer comigo (nada além de me cobrir de penas e me dar um nome e uma família da qual nunca mais poderia me desvencilhar). O meu medo era visível. Fiz um papel pífio. E eles riram da minha covardia. Jurei que não me esqueceria deles. E os abandonei, como todos os brancos.

Relato de Manoel Perna: VOCÊ, o leitor, deve completar a narrativa?

16. Isto épara quando você vier. O que eu sei é o que ele me con­tou e o que imaginei. (...) Se as coisas que tenho a dizer estão todas pela metade, e podem soar insignificantes aos ouvidos de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história. Es­perei por alguns anos, mas já não posso contar com a sorte. O que eu tenho a dizer só pode fazer sentido junto com o que você já sabe.

(...) O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.

Relato do Narrador-jornalista:

· negação da existência do relato-testamento

19. Ninguém nunca me perguntou. Manoel Perna, o enge­nheiro de Carolina e ex-encarregado do posto indígena Ma­noel da Nóbrega, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, durante uma tempestade, quando tentava salvar a neta pequena.O Estado Novo e a guerra tinham acabado. Deixou sete filhos, três homens e quatro mulheres. (...)Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu ima­ginei a oitava carta.

· o SEGREDO é o livro

Foi só quando esgotei todos os meios de achar o que me faltava — o que chamei de a oitava carta, supondo que pudesse realmente existir, e que daria um sentido a toda a histó­ria e mais especificamente ao suicídio, depois de já ter encontra­do um vasto material que me aproximava em círculos de Buell Quain, sem nunca de fato decifrá-lo ou me deixar alcançar o centro do seu desespero — que decidi retomar a minha busca pelo filho do fotógrafo, dessa vez pessoalmente. (...)

Aquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado, com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando já fosse tarde, com a pes­quisa terminada e o livro publicado. Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me resta­va, à falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a ti­vesse visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a his­tória, o motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício risível.

AGRADECIMENTOS

Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação — como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.

A trama traiçoeira de "Nove Noites"
Por Flavio Moura

Trechos de entrevista com o autor Bernardo Carvalho

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1586,1.shl

O que é fato e o que é ficção em “Nove Noites”?

Bernardo Carvalho: A indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido em dizer o que é real e o que não é. Isso tem a ver com meus outros livros. Também neles há um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso isso fica mais nítido porque existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, é tudo ficção.

A idéia inicial era fazer uma biografia de Buell Quain?

Carvalho: Eu queria fazer um romance, não queria fazer um livro de jornalismo. Foi como se, retrospectivamente, a história de Buell Quain desse sentido ao que eu já tinha na cabeça. As coisas se encaixam. Conforme eu ia fazendo, percebia que talvez a história já estivesse pronta. Mas só tive certeza que seria ficção quando percebi que não encontraria a família dele. Ao longo do processo, porém, muitas cartas que eu tinha enviado começaram a ser respondidas. Então fiquei morrendo de medo: se a família aparecesse, ferrava com a minha história. Eu nunca tinha feito pesquisa desse jeito.

A relação entre o pai e esse narrador que por vezes parece indistinto do autor é central na narração. Você não se sentiu exposto por causa disso?

Carvalho: Quando eu entreguei o livro, as pessoas disseram que eu me expunha muito. Engraçado. Eu não me senti assim. Não acho confessional. Não me senti exposto em nada, me senti totalmente à vontade. De todos que escrevi, talvez esse seja o livro em que eu me sinto menos constrangido. Como se nesse tivesse menos verdade que nos outros. Os outros são mais eu do que “Nove Noites”. Tem também uma coisa que eu só percebi depois: o livro é sobre a paternidade.

Todo mundo está à procura de um pai. Os índios estão querendo um pai, pois de alguma maneira são órfãos da civilização. O Quain tinha uma relação complicadíssima com o pai, e ao mesmo tempo faz o papel de pai com os índios. O narrador, do mesmo modo, contrapõe a história do antropólogo com a do próprio pai. Tudo gira em torno da linhagem paternal. É curioso. É uma ficção que tem a ver com antropologia e que acaba sendo sobre as relações de parentesco.

Não teve medo que esse beletrismo [linguagem floreada] do Manoel Perna fosse confundido com um traço da sua escrita?

Esse personagem, o Manoel Perna, é uma espécie de desejo do autor de resolver as lacunas que não são resolvidas pela pesquisa. Várias pistas me induziam a certas conclusões, mas eu não tinha certeza. Precisava de um negócio que fechasse. E a única pessoa que podia ter visto era ele. Por isso logo no início percebi que ele seria um dos narradores. No livro ele aparece como engenheiro. Na verdade, ele era barbeiro. Mas achei que ia ficar muito inverossímil, ele escrevendo daquele jeito empolado com essa profissão. Foi a única coisa que eu mudei com relação a ele.

Por que Buell Quain veio para o Brasil?

Carvalho: O Franz Boas, diretor do departamento de antropologia de Columbia, estava interessado no Brasil. Era um território muito rico etnologicamente falando. Tinha muita coisa a ser explorada. Foi um desafio para o Quain, mas totalmente inconsciente. Ele tinha acabado de voltar das ilhas Fiji. Então pintou a oportunidade e ele topou. Ele estava vindo para estudar os Karajá. Quando chegou, percebeu que tinha uma tribo mais interessante, que eram os Trumai. Mas ele se ferrou.

Foi contra tudo e contra todos, e acabou sendo obrigado a voltar. Acho que tinha um lado um pouco ingênuo dele também, um pouco National Geographic, um pouco Jim das Selvas, um cara do interior dos Estados Unidos que de repente se acha o máximo. O Brasil pegou ele de surpresa. Tanto que, numa carta escrita pouco antes de morrer, ele diz que o país é ótimo para a antropologia, mas que ele não quer ficar aqui de jeito nenhum.

O Quain tinha orgulho de ser americano e uma noção de superioridade em relação ao Brasil que era muito irritante. Por incrível que pareça, mesmo querendo estudar antropologia, no fundo ele se achava superior. Por outro lado, as críticas que ele faz ao provincianismo, ao atraso brasileiro, são muito pertinentes. De alguma maneira, acho que isso torna a personalidade dele mais complexa.

5 comentários:

Zézin disse...

Obrigado pela analisa, irá me ajudar nas questões da prova de domingo, abraços.

Anônimo disse...

olá..queria sabe se vc realmente irá postar a analise do cobra norato!!!

^^

Ronaldo disse...

muito bom.. obrigado

Unknown disse...

Vlww fessorr ! Isso vai me ajudar d+ amanha na hra da prova ! =)
Brigadaao !

Anônimo disse...

umconfusoescritor.blogspot.com

Tempora si fuerint nubila solus eris.

Fala Aloísio! Boa análise do livro... =P