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[PROSA_Oficina de textos_UFMG 2011] Salinha para resolução de questões abertas de Literatura (vestibular UFMG 2011) . Informações: emaildoaloisio@yahoo.com.br

9 de dezembro de 2008

Comentários sobre as obras literárias_UFMG_2009_1

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_Aloisio

_São Bernardo (Graciliano Ramos)

FAZENDA SÃO BERNARDO

Para se tornar proprietário e patrão, Paulo Honório luta com as armas que a própria sociedade capitalista lhe deu: o individualismo e a necessidade de acumulação de capital. Como é incapaz de estabelecer relações afetivas, já que todas suas relações com o outro são mediadas pela lógica do lucro, imprime em si a marca maior do meio em que cresceu e viveu, a desigualdade. Desprezado pelos pais, tido como um refugo — ele mesmo afirma que os pais deviam ter suas razões para não querê-lo —, criado por uma humilde doceira, Paulo Honório vence sozinho, pois, depois de ficar mais de três anos preso por esfaquear arbitrariamente um sujeito que se relacionara com uma mulher com quem ele, Paulo, estava envolvido, aprende a ler, escrever, fazer contas, tira título de eleitor e adquire empréstimos, para comprar mercadorias e negociar pelo sertão.

Ganha dinheiro, cobrando dívidas com uma violência persuasiva, e se apossa das terras de São Bernardo. Para alcançar seus objetivos, se vale de instituições sociais como a igreja, os cartórios, os tribunais e o governo, já que o narrador tem em seu auxílio o advogado Nogueira, o jornalista Gondim, o juiz Magalhães e até o Padre Silvestre, com quem negocia a construção de uma igreja na fazenda. Paulo afirma crer em Deus, como um pagador de seus funcionários explorados e castigador daqueles que o furtaram, numa típica atitude de vítima. Posteriormente, construirá a escola, um claro indício do progresso material que deseja implementar em São Bernardo; porém esse é um progresso que não leva em consideração o homem. O escola só é erguida por causa de uma atitude política, para agradar ao governador quando viesse à fazenda novamente. Paulo não quer funcionários que pensem e questionem, e ainda insiste em dizer que cultiva a ilusão, fazendo-os crer que, na verdade, era ele que trabalhava para os peões e agregados. Tanto a escola e a igreja são tidas como capital, sua construção objetiva tão somente gerar lucro, ou benefícios.

A fazenda São Bernardo repete as mesmas regras sociais e o modelo de desenvolvimento das cidades, marcadas pelo capitalismo industrial, no entanto, com vistas a dar lucro somente a um indivíduo, o próprio narrador. Através das inovações tecnológicas introduzidas na fazenda e de vários empreendimentos, percebe-se como ela simboliza a penetração dos elementos capitalistas no campo brasileiro. Isso quer dizer que Paulo Honório quer mais produção, mais lucro, mais acumulação de capital, o que, consequentemente, gerará mais desigualdade, menos distribuição de renda, e mais violência.

Graciliano Ramos escreve uma literatura regionalista crítica, e ao compor São Bernardo, e principalmente ao construir um autor-narrador com tamanha complexidade psicológica, demonstra como os aspectos políticos e sociais são, muitas vezes, quase indistinguíveis dos pessoais e humanos.

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_Aloisio

_São Bernardo (Graciliano Ramos)

PAULO HONÓRIO E MADALENA

As relações reificadas que Paulo Honório mantém com os indivíduos o levam à autodestruição, por causa da impossibilidade de mudar a si mesmo, de se transformar numa pessoa capaz de manifestar afeto, principalmente com a esposa, inalcançável no momento da escrita da mesma maneira que quando viva. A profundidade analítica de Paulo parte do contexto sócio-econômico para atingir o complexo social. Percebe-se, então, com absorveu, ao longo de sua ascensão, toda a agressividade do sistema de competição típico do mundo capitalista.

Paulo, ao final da narrativa, diz que não adianta se iludir, pois sabe que, caso voltasse e pudesse mudar a maneira como agia, principalmente com a esposa, não o faria. Assim, nem Paulo Honório nem Madalena conseguem se realizar humanamente, pois, ao mesmo tempo em que Graciliano Ramos tenta desvendar as desigualdades do capitalismo, mostra como são abstratas as perspectivas para um mundo novo, por causa da ausência de uma classe social verdadeiramente revolucionária. Como Madalena, os indivíduos que se opõem à rígida separação de classes imposta pelo capitalismo permanecem solitários e impotentes, e o socialismo — ou comunismo, como o narrador o nomeia — aparece como uma aspiração subjetiva, sem encontrar na realidade as possibilidades concretas de sua execução.

Madalena, uma criatura solidária, emotiva, sensível, com dedos longos e mãos finas e delicadas, é a antítese desse narrador que se vê com deformidades monstruosas, com mãos enormes, cabeludas e calejadas — é interessante ressaltar que os contrastes são tanto físicos quanto psicológicos. Tão separados e contrastantes, têm, contudo, um fator comum: o fracasso. À medida em que Paulo ascende social e economicamente, decai intimamente, e acaba solitário e amargurado, num profundo desespero existencial, por saber que nunca entenderá completamente a mulher que fora sua esposa, e que lhe negara a posse, que se recusara a ser tratada como coisa, objeto, e por isso se suicida. Já Madalena tenta modificar em vão a estrutura social de uma fazenda cuja existência deve-se exclusivamente à satisfação da ganância desmesurada do proprietário.

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_Aloisio

_São Bernardo (Graciliano Ramos)

VIOLÊNCIA EM SÃO BERNARDO

Segundo o crítico Antônio Cândido, há dois tipos de violência no romance São Bernardo. A violência contra homens e o mundo, que resulta na conquista da fazenda — o próprio Paulo Honório diz que seu maior fito na vida era se apossar das terras de São Bernardo —, e a contra ele próprio, que resulta no livro. A violência é o suporte de seu modo de ser, e seu desejo de propriedade a legitima e justifica o extermínio sumário de vizinhos incômodos, como o Mendonça, a corrupção de jornalistas, como o Costa Brito, e a brutalização dos funcionários, como o Marciano.

A aquisição de São Bernardo aparentemente concretiza sua vitória sobre os obstáculos da origem humilde e do passado de subordinação, que são superados ou esmagados. Mas a violência voltada para dentro de si, motivada pelo ciúme que sente por Madalena, causa sua autodestruição, quando finalmente percebe a vacuidade de suas realizações materiais. Paulo sente uma necessidade nova, escrever, e dela surge uma nova construção: o livro que conta a sua derrota, através do qual terá uma visão ordenada de si e de suas atitudes.

No momento em que se conhece pela narrativa, destrói-se enquanto homem de propriedade. A narrativa é violenta para ele mesmo porque é obrigado a encarar a sua incapacidade de mudar tanto o destino de Madalena quanto o seu. Sabe que se voltasse atrás, agiria da mesma forma, o que transforma Madalena e Paulo Honório em um casal trágico: o fim deles dois é imutável. Madalena está destinada ao fracasso, por não conseguir mudar as estruturas sociais da fazenda; Paulo, à solidão e ao vazio existencial, já que possuir São Bernardo não tem o mesmo valor de antes.

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_Aloisio

_São Bernardo (Graciliano Ramos)

AS MÃOS E O CIÚME DE PAULO HONÓRIO

O sentimento de propriedade despersonaliza o narrador-personagem e o faz ver-se constantemente como um monstro. Seu ciúme doentio advém do fato de não conseguir se apossar de Madalena, como fazia com todos ao seu redor. A esposa era insubmissa e tinha um espírito solidário, ao contrário do egoísta Paulo Honório. Por se sentir incapaz de dominar a esposa, e por crer que enquanto constrói seu capital, ela o destrói e o dissipa, ao ajudar os funcionários e pedir dinheiro para a escola, acusa-a de ser intelectual, de não crer em Deus e de ser comunista.

Pouco importa a verdade em relação a Madalena, já que o leitor se encontra junto aos pensamentos do narrador, e não aos da esposa. Por isso, é necessário pensar no que teria motivado tais reflexões de Paulo. Madalena era considerada por ele como intelectual porque tinha poder de argumentação; deveria não ter religião, já que era uma mulher livre e libertária; comunista, pois não se preocupava em juntar capital, como ele próprio fazia. O ciúme é, então, decorrente de sua fragilidade íntima, pois teria que subjugar a mulher de alguma maneira. Acusando-a de traição, iria se livrar do peso de ter de admitir que nunca a dominaria.

Mas a doença do ciúme o faz enxergar-se como uma criatura animalesca. Sempre quando se refere a si, fala de seu aspecto rude, das sobrancelhas espessas, da pele queimada de sol, das mãos calejadas e grossas, feito cascos de cavalo. Já Madalena tem as mãos finas, delicadas, cabelos loiros, olhos azuis, é quase uma figura angelical. O contraste físico aponta para as diferenças psicológicas entre os dois, e denota como Paulo projeta para sua aparência os tormentos que sente por saber-se responsável pelo suicídio de Madalena.

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_Aloisio

_A alma encantadora das ruas (João do Rio)

O CRONISTA QUE ENFEITA A MISÉRIA

João do Rio é o autor transeunte, que faz da observação a base de seu ofício, para refletir sobre a história e a cultura, sobre os padrões de sociabilidade e o início da modernidade brasileira. Ao fazer espécies de closes fotográficos das ruas com seus textos, sonda as formas de vida inusitadas instauradas pelo estado de decadência da população pobre, no Rio de Janeiro, em meio à modernização da vida urbana.

Os leitores de João do Rio tinham que se sentir impactados por esses modos de vida marginais, como os de ciganos, trapeiros, catadores de selo, mendigos, prostitutas, catraieiros, ambulantes e vendedores de livros baratos, por exemplo. Para tanto, João do Rio se valia de um estilo “art noveau” de escrita, segundo enfatiza o crítico José Paulo Paes. É a arte nova da belle époque, o estilo enfeitado e ornamental que chega ao Brasil através de revistas e artigos manufaturados importados, no início do século XX. João do Rio tinha um refinamento mundano, escrevia crônicas sociais e preocupava-se em vestir-se elegantemente, como um típico dândi. Da mesma maneira, seu estilo literário também será enfeitado, rebuscado, com gosto pela ornamentação vocabular e pelas comparações metafóricas. Porém, ao invés de tratar do luxo, em A alma encantadora das ruas, trata do que a elite aburguesada ignora: da população marginalizada.

Nas crônicas de João do Rio, nota-se uma ambigüidade entre o gosto decadentista e seu espírito cosmopolita. Isso quer dizer que há um gosto pelo aspecto grotesco das ruas, uma fascinação pelos miseráveis e seus modos de vida, e ao mesmo tempo, a postura de quem busca ascensão social e integração à cultura universal. João do Rio é um dândi de maneiras requintadas, interessado em retratar para a burguesia e o povo carioca as contradições entre a urbanização da cidade e o aumento das classes marginalizadas.

26 de novembro de 2008

Trechos de DOIS IRMÃOS, Áudio de entrevista com Milton Hatoum, Questões abertas para o CEFET

Dois irmãos (Milton Hatoum)

EPÍGRAFE:

A casa foi vendida com todas as lembranças

todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em vias de cometer

a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo

seus imponderáveis [...]

Carlos Drummond de Andrade

ZANA

Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas al-

guns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma

clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe

para que só a filha e a amiga quase centenária entendes-

sem (e para que ela mesma não se traísse): "Meus filhos já

fizeram as pazes?°'. Repetiu a pergunta com a força que lhe

restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora

da morte. Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas

de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado,

à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se

apagava um pedaço do céu crepuscular.

MANAUS

Fora assim durante os anos da guerra: Ma-

naus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos

açougues e empórios, disputando um naco de carne, um

pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de

energia, e um ovo valia ouro. Zana e Domingas acordavam

de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a patroa

ia ao Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam

a ferro, preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando

tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha de

trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazô-

nia. As vezes, trocava víveres por tecido encalhado: morim

ou algodão esgarçado, renda encardida, essas coisas.

DOMINGAS:

Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no

rosto de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles tivesse

sido a causa da agressão. Vivia atenta aos movimentos dos

gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade de todos.

Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da famí-

lia e o brilho da casa dependiam dela.

CICATRIZ:

Yaqub reservou

uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar

esse gesto polido. Da escuridão surgiram cenas em preto-e-

branco e o ruído monótono do projetor aumentava o si-

lêncio da tarde. Nesse momento Domingas despediu-se dos

Reinoso. A magia no porão escuro demorou uns vinte mi-

nutos. Uma pane no gerador apagou as imagens, alguém

abriu uma janela e a platéia viu os lábios de Lívia grudados

no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas

no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estoca-

da certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns

segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o ros-

to rasgado de Yaqub. Os Reinoso desceram ao porão, a voz

de Abelardo abafou o alvoroço. O Caçula, apoiado na pa-

rede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direi-

ta, o olhar aceso no rosto ensangüentado do irmão.

OMAR:

Na casa, Zana foi a primeira a notar esse pendor do filho para o galanteio. Domingas também se deixava encantar por aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio".

HALIM:

Halim havia melhorado de vida nos anos do pós-guerra. Vendia de tudo um pouco aos moradores dos Educandos, um dos bairros

mais populosos de Manaus, que crescera muito com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para

Manaus, onde ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos

barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no

tumulto de quem chega primeiro. Desse tumulto participava Halim, que vendia coisas antes de qualquer um. Vendia

sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência,

que um dia ele me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse

abismo, nem exigiu de si grandes feitos. O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pôde evitar.

(...)

Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram

com a roupa do corpo. Mas acreditava, bêbado de idealis-

mo, no amor excessivo, extático, com suas metáforas luna-

res. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrô-

nico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo

propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da

província; não passou de um modesto negociante possuído

de fervor passional. Assim viveu, assim o encontrei tantas

vezes, pitando o bico do narguilé, pronto para revelar pas-

sagens de sua vida que nunca contaria aos filhos.

PARTIDA DE YAQUB:

O Caçula não moveu uma palha: continuou sentado à mesa,

quieto diante do prato intocado, o olhar desviando furtivamente para o rosto do irmão. Sofria com a decisão de

Yaqub. Ele, o Caçula, ia permanecer ali, ia reinar em casa,

nas ruas, na cidade, mas o outro tivera a coragem de par-

tir. O destemido, o indômito na infância, estava murcho,

ferido. "Ele queria sair da sala, mas não conseguia' disse-

me Domingas. Não queria ver o irmão altivo, sereno, ouvindo a mãe pedir a Yaqub que lhe escrevesse uma carta por

semana, nem pensasse em deixá-la sem notícias, preocupada aqui neste fim de mundo. Rânia rondava o viajante,

e ajoelhava-se para murmurar palavras que só ele escutava. Domingas não tirava os olhos dele, e anos de'Pois ela

me contou que estava nervosa com a viagem de' Yaqub.

Nem Zana podia impedi-lo de partir. (...)Era pouco mais que uma sombra

habitando um lugar. Deixou na casa a lembrança forte de

duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e o encontro com a mulher que ele amava.

Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela

segunda vez não volta mais a casa. O pai concordava, sem

ânsia. Sonhava com um futuro glorioso para Yaqub, e isso

era mais importante que a volta do filho, mais forte que a

separação. Os olhos acinzentados de Halim se acendiam

quando dizia isso.

Eu vi esses olhos muitas vezes, não tão acesos, mas

tampouco baços. Apenas cansados do presente, sem acenar

para o futuro, qualquer futuro.

MEMÓRIA:

Hoje, a voz me chega aos ouvidos como

sons da memória ardente. As vezes ele se distraía e falava

em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: "É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo".

Ele dava um tapinha na testa, murmurava: "É a velhice, a

gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes apren-

der umas palavrinhas, querido".

A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve.

Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada

disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em

dias esparsos, aos pedaços, "como retalhos de um tecido".

Ouvi esses "retalhos", e o tecido, que era vistoso e forte, foi

se desfibrando até esgarçar.

Dúvidas sobre a paternidade e ódio do narrador:

Adiei a pergunta sobre o

meu nascimento. Meu pai. Sempre adiaria, talvez por medo. Eu me enredava em conjeturas, matutava, desconfiava

de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é o meu pai, mas

também pode ser o Caçula, ele me provoca, se entrega com

0 olhar, com o escárnio dele. Halim nunca quis falar disso,

nem insinuou nada. Devia temer não sei o quê. Ainda bem

que não chegou a presenciar o pior. O mais infame, o fundo

do abismo que Halim tanto temia, só aconteceu alguns anos

depois da história da Pau-Mulato.

(...)

O que havia entre os dois? Tive coragem

de lhe perguntar se Yaqub era o meu pai. Eu não suportava

o Caçula, tudo o que via e sentia, tudo o que Halim havia

me contado bastava para me fazer detestar o Omar. Não entendia por que minha mãe não o destratava de vez, ou pelo

menos não se afastava dele. Por que tinha que aturar tanta

humilhação?

(...)

Senti suas mãos no meu braço; estavam

suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou

a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub.. . Desde o

tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. "Com o Omar eu não queria...

Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de

homem. Nunca me pediu perdão."

(...)

Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros. Guardou até o fim aquelas palavras, mas não morreu com o segredo que tanto me exasperava. Eu olhava o rosto de minha mãe e me lembrava da brutalidade do Caçula.

FINAL:

Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão.(...)

[Rânia] me disse, alterada, que ia

escrever uma carta a Yaqub. "Ele traiu minha mãe, calculou tudo e nos enganou." Foi corajosa: na reclusão que lhe

era vital, na solidão de solteirona para sempre, escreveu a

Yaqub o que ninguém ousara dizer. Lembrou-lhe que a

vingança é mais patética do que o perdão. Já não se vingara ao soterrar o sonho da mãe? Não a viu morrer, não sabia, nunca saberia. Zana havia morrido com o sonho dela

soterrado, com o pesadelo de uma culpa. Escreveu que ele,

Yaqub, o ressentido, o rejeitado, era também o mais bruto,

o mais violento, e por isso podia ser julgado. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar todas as suas fotografias e

devolver as jóias e roupas que ganhara, caso ele não renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as ameaças,

porque Yaqub calculou que o silêncio seria mais eficaz do

que uma resposta escrita. (...)

Mas ela se ressentiu de mim, ofendeu-se com a

minha omissão, com o meu desprezo pelo irmão encarcerado. No fundo, sabia o que eu remoía, o que me comia por

dentro. Devia ter conhecimento do que Omar fizera com a

minha mãe, de todos os agravos a nós dois.

(...)

Lembrava - ainda me lembro - dos poucos momentos

em que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no

meu quarto, quando adoeci. Mas bem antes de sua morte,

há uns cinco ou seis anos, a vontade de me distanciar dos

dois irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças.

A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos neste mundo não foram menos

danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez

de sua ambição calculada. Meus sentimentos de perda per-

tencem aos mortos. Halim, minha mãe. Hoje, penso: sou e

não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado

comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesa-

delos pertencem a nós mesmos.

(...)

Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o

meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um

vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da

velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não

pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para

a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou

para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não O

esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da

Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já

quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele

confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava,

uma só. O perdão.

Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para

além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora.

Áudio de entrevista com Milton Hatoum, autor de DOIS IRMÃOS (CEFET)

Uma entrevista bem bacana com o Hatoum, em que ele fala, entre outros assuntos, do processo de composição de DOIS IRMÃOS, livro do CEFET.

Colem o link no navegar. Apertem o 'play' que aparecerá na página.

http://www.letraseleituras.com.br/entrevistas/?a=milton_hatoum

Questões sobre DOIS IRMÃOS (Milton Hatoum) para o CEFET

1) O romance Dois irmãos trata do ódio e da vingança para compor um drama familiar de teor universal.

JUSTIFIQUE a afirmativa acima.

2) O incesto é uma das temáticas presentes em Dois irmãos, de Milton Hatoum. EXPLIQUE como aparece no romance.

3) A personagem Zana é uma mãe superprotetora, cujas atitudes impulsionarão a destruição da família. DÊ TRÊS EXEMPLOS que ilustrem essa afirmação.

4) EXPLIQUE qual é a importância da memória na construção da narrativa de Dois irmãos.

5) RELACIONE a epígrafe de Drummond ao enredo do romance Dois irmãos:

“A casa foi vendida com todas as lembranças

todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em vias de cometer

a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo

seus imponderáveis [...]”

Carlos Drummond de Andrade

6) EXPLIQUE como, em Dois irmãos, o narrador traça um panorama socioeconômico e cultural da região manuara.

Questões sobre A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS (JOÃO DO RIO) para o CEFET

1) Com base na leitura e análise das crônicas “As mariposas do luxo”, “As mulheres mendigas” e “Mulheres detentas”, demonstre como João do Rio explora a faceta marginal do universo feminino, no início do século XX.

2) Leia atentamente o fragmento abaixo, extraído da crônica “A rua”, de João do Rio:

“E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observaçõs foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação... “

João do Rio pode ser considerado um flâneur? Justifique sua resposta.

3) Leia atentamente o trecho abaixo, da crônica “A rua”, de João do Rio:

Os dicionários só são conside­rados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!

EXPLIQUE o que pode ser considerado por João do Rio como a alma encantadora das ruas.

4) As crônicas prensentes em A alma encantadora das ruas são uma mistura de jornalismo investigativo com literatura.

JUSTIFIQUE essa afirmação.

5) A parte “Três aspectos da miséria”, de A alma encantadora das ruas, contém um forte teor de denúncia social.

EXPICITE-O, através de três exemplos.

6) Nas crônicas da parte “Onde às vezes termina a rua”, de A alma encantadora das ruas, João do Rio faz uma análise do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, no começo do século XX.

EXPONHA as principais idéias do cronista acerca das prisões e dos presidiários.

7) João do Rio é um cronista que usa a rua como fonte de inspiração e território de trabalho, por isso se torna um leitor privilegiado do espaço urbano do começo do século XX, no Brasil.

JUSTIFIQUE essa afirmação com argumentos que demonstrem seu conhecimento sobre a obra A alma encantadora das ruas como um todo.

14 de novembro de 2008

Paraísos Artificiais (paulo Henriques Britto)_Trechos e anotações

Paraísos artificiais (Paulo Henriques Britto)_Trechos

Paraísos artificiais (trechos dos contos)

Os paraísos artificiais

Você está sentado numa cadeira. Você está sentado nesta cadeira já faz bastante tempo. Você fica sentado nesta cadeira durante muito tempo, diariamente. Você não conseguiria ficar parado em pé por tanto tempo; logo você ficaria cansado, com dor nas pernas. Também não conseguiria permanecer tanto tempo assim deitado na cama, de cara para o teto; essa posição se tornaria cada vez mais incômoda com o passar do tempo, até fazê-lo virar-se para um lado(...).

(...) É bem verdade que tais trocas de posição não proporcionam a sensação quase orgástica que você experimenta quando, deitado na cama, depois de passar muito tempo voltado para um lado, cada célula de seu corpo é como uma boca clamando: "A melhor posição seria estar virado para o outro lado", e você finalmente se vira; na cadeira, tudo o que acontece é uma leve sensação de desconforto ser substituída por uma leve sensação de conforto. Porém tudo é uma questão de escolha, e entre, de um lado, uma situação em que breves períodos de intenso prazer se alternam com longos períodos de conflito entre inércia e desconforto crescente, e, de outro, uma situação em que perdura uma sensação mais ou menos constante de bem-estar, sem grandes variações, você prefere a segunda. É um direito seu; o corpo é seu.

(...)

Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira, você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores. Esses vestígios mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de sua existência no espaço; e é por isso que você não é eterno, não pode ser eterno, pelo mesmo motivo que um lápis ou uma borracha não podem ser eternos.

Mas há uma maneira simples de alterar essa situação - quer dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.

Uma doença

Agora só me restava examinar e documentar meu próprio corpo, as proporções entre os membros, as mudanças nele provocadas pelo progresso da doença; e foi o que fiz, ao mesmo tempo que reexaminava periodicamente cada um dos mapas já prontos, do teto, do chão, das paredes, da maça, do lençol, neles assinalando as mudanças sofridas pelas superfícies representadas. Foi então que tive uma idéia ambiciosa: ocorreu-me estudar as possíveis interrrelações entre os diferentes itens mapeados e catalogados. Assim, talvez eu viesse a constatar que, enquanto descruzara as pernas sob o lençol, uma nova mancha tinha surgido na casca da maçã ou na parede, ou uma rachadura no teto avançara um pouco; enfim, eram tantas variáveis que o número de combinações era — para uma inteligência humana, necessariamente limitada — infinito.

(...)

Durante algum tempo não fiz outra coisa a não ser observar a rachadura e meu corpo, tentando resolver o problema; por fim, cheguei à conclusão — óbvia, aliás — de que, com os dados de que eu dispunha, a questão era, a rigor, insolúvel. Além disso, a rachadura já estava me entediando, por seu um fenômeno demasiado previsível. Então resolvi escrever este breve relato.

Uma visita

Pois bem, pensa [o sujeito que está embaixo], eis meu amigo à janela do terceiro andar, como já o vi tantas vezes antes; sem nenhuma saudação introdutória, que a amizade que nos une dispensa essas formalidades, peço-lhe que me jogue a chave, como tantas vezes ele já fez, porque passa das dez e o porteiro foi dormir. (...) Começo a achar que alguma coisa terrível está acontecendo, embora não faça a menor idéia do que possa ser; na tentativa de compreender seus motivos, imagino-me em seu lugar, na exata posição em que ele se encontra à janela, as duas mãos pousadas no parapeito, a cabeça quase imóvel, o olhar fixo no amigo que três andares abaixo, no meio da rua, o encara com olhar tão fixo quanto o dele, e no entanto diferente, porque em seu olhar há uma súplica que não foi atendida, uma pergunta sem resposta; é um olhar que não contém mais surpresa, só uma interrogação, a expectativa de uma palavra ou gesto que explique tudo. (...)

Percebo que afinal ele compreendeu que minha imobilidade é voluntária, e não sinal de qualquer coisa de terrível que esteja acontecendo comigo; (...) minha hesitação momentânea converte-se numa decisão irrevogável; é tarde demais, ele já desce a ladeira escura sem olhar para trás, com o passo firme e ligeiramente apressado dos que não pretendem voltar jamais.

Um criminoso

Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso. (...)

Mas é preciso prestar atenção nos fatos, não nas hipóteses, e eu ia observando que o outro fato novo na rua é a presença de um rapaz tentando atravessar a rua (...) tudo está se encaixando nos devidos lugares, é preciso reequacionar tudo o problema, agora não se trata mais de (a) uma mulher solitária num apartamento vazio, de um lado, e (b) um casal de nordestinos excitadíssimos, do outro, porém há um terceiro elemento, a saber: (c) um rapaz tentando atravessar a rua. (...) ele não é um porteiro nordestino, está drogado mas está bem vestido, pode muito bem ser amigo da mulher sozinha, ou namorado dela, e quando a mulher for abrir a porta do apartamento para o rapaz, o casal que já está dentro do prédio pode entrar no apartamento junto com ele, (...) o rapaz tem que atravessar a rua depressa, é importantíssimo, antes que o vizinho repare que o nordestino tem uma navalha na mão (...) o homem prevenido vale por dois, o bom cabrito não berra.

O companheiro de quarto

Olhei pras folhas secas e comecei a achar que se e olhasse pra elas mais um pouco e fizesse um esforço eu ia sacar o que elas me lembravam. Mas não fiz esforço nenhum. Em vê disso, olhei os pros botões que já tinham brotado nos galhos mais de cima. Um dele estava quase abrindo. Logo ia virar uma flor incrível. A não ser que alguém arrancasse antes. Arranquei o botão. Depois arranquei outro. Arranquei todos eles. Aí comecei a arrancar as folhas, uma por uma, tentando não olhar direito pra elas. Aí quebrei o caule em três pedaços. Quebrou fácil, fácil, e um cheiro forte encheu o quarto inteiro, como se alguém tivesse quebrado um vidro de perfume.

Coisa de família

Nunca me sentira tão estrangeiro assim, tão fora de meu lugar natural; por um momento odiei o rapaz, todos os presentes naquela sala, a criança inclusive, o país inteiro onde eu teria de viver por alguns anos mais. (...) De repente ouvimos um ruído estridente no segundo andar, um barulho de vidro estilhaçando. Logo em seguida o barulho se repetiu, acompanhado de um palavrão gritado a plenos pulmões. (...) As mãos de meu vizinho, brancas, espalmadas sobre a toalha branca, tremiam. A cabeça estava baixa, os olhos voltados para algum ponto vago, na posição indecisa entre se levantar de vez e tornar a sentar-se. As vergonha era tamanha que acabei sendo contagiado por ela (...).Levantei os olhos e vi a menina sentada em sua cadeira, ainda com o rosto molhado de lágrimas, balançando as pernas e cantarolando baixinho.

O 921

Pensei no dr. Lustosa. Onde estaria ele agora? Sem dúvida, longe dali, absolutamente indiferente a mim, a todos nós, inclusive ao velho que havia morrido dentro do 921. Tentei pensar no velho, mas só consegui sentir uma vaga sensação de pena, uma tristeza besta, quase abstrata. O velho, o 921... tudo aquilo me parecia muito distante, talvez por efeito da penumbra, do sono, do ronco uniforme do carro, agora quase o único som que chegava aos meus ouvidos na estrada cada vez mais vazia, mais longe de tudo. Mas aquele não podia ser o caminho de casa. Virei-me para o Farias e perguntei: “Estamos muito longe da cidade?”

Ele olhou para mim e disse, em voz baixa: “cada vez mais longe”. (...)

“Vocês não estão me levando para casa”, protestei, mas sem muita ênfase, já de olhos fechados. “O 921...”, comecei.

“Uma puta casa. É ou não é, Bigode?”

Se o Bigode respondeu alguma coisa, não ouvi. Eu já dormia profundamente.

O primo

Não sabia de que modo aquela sua solidariedade inconfessável com o primo Reginaldo afetaria sua maneira de viver, suas opiniões e atitudes em relação à família, às coisas em geral. Certamente não o fizera defender o primo naquelas sessões de queixas acusações a que a família costumava se entregar, nas tardes de domingo, durante o cafezinho, ao redor da mesa do jantar; e essa lembrança de certo modo o incomodava; ua atitude lhe parecia hipócrita. (...)

Logo em seguida Reginaldo falou outra vez, agora num tom cheio de condescendência e desdém, enquanto se levantava da cadeira: “E esse ano, você vai criar vergonha e estudar direito?”. Ivan sentiu a confusão se dissipar na mesma hora; levantou-se também, e durante alguns instantes os dois se encararam. Agora não havia ambigüidade nenhuma, tudo estava perfeitamente claro, a antipatia era mútua, visceral, indestrutível; nada poderia alterá-la. Ivan queria dizer alguma coisa que ferisse, fazer um comentário inteligente, irônico. Mas quando deu por si já tinha respondido: “Talvez”. Na mesma hora se arrependeu de sua fraqueza, não havia dúvida de que Reginaldo tinha vencido.(...)

Os Sonetos Negros

E-mail de Tânia à orientadora:

Cara Ercila, (...) Não consigo ler a poesia de Matilde como um texto essencialmente feminino. Os “Sonetos negros” são um tanto atípicos na obra de Matilde: em quase todos os sonetos a voz lírica se dirige a um “tu”, o “estranho”, o “amado”, o “adversário”. Já o resto da poesia dela é de uma impessoalidade quase cabralina. (...) Ao que parece, a voz lírica se debate entre um amor e a renúncia a algo de enorme importância, e termina (ao que parece) optando pelo amor. (...) Realmente, a leitura de Leandra não me convence. Pelo contrário, teve o efeito de reforçar ainda mais a idéia que pretendo desenvolver na minha tese: que os “Sonetos negros” devem ser lidos não como um documento autobiográfico, e sim como uma ficção em versos, uma ficção em que deliberadamente as coisas não são de todo esclarecidas, como nos sonetos de Shakespeare.

Originais dos “Sonetos negros” dados por Gastão a Tânia:

“Ouve esta voz, estranha, tão contida...”

“Se te disser que não te quero, amada”

(...)

Não havia dúvida: em sua forma original, os “Sonetos negros” haviam sido dedicados a uma mulher.

(...)

Depois de conversar com Gastão no hospital:

Um sentimento menos nobre? Talvez depois de tantos anos de dedicação a uma pessoa egocêntrica e autocentrada, décadas depois da morte dela e perto de sua própria morte, ele tivesse sentido finalmente sentido necessidade de extravasar um pouco do que tivera de engolir em silêncio por tanto tempo. Aquela revelação do passado lésbico de Matilde podia muito bem ser uma espécie de acerto de contas — só que era para ser póstumo; ele certamente não imaginava que eu anunciaria seu segredo na internet na mesma hora.

Depois da pesquisa sobre Bilitis e de novo reexame nos originais:

“E se, indignado, volto contra ti”

“Eu não sou homem de dizer que amo”

Novo e-mail a orientadora Ercila:

Não tenho a menor dúvida de que eles são de autoria de Gastão Fortes. Nos originais, tudo o que está na primeira pessoa é masculino, e o que está na segunda é feminino. Ele escreveu os poemas, dirigidos a ela,e ao se dar conta de que Matilde ansiava mais do que tudo pela glória literária, renunciou a sua própria carreira literária por amor a ela — é essa a chave do famoso “tema da renúncia”. Está igualmente claro para mim que o resto da obra de Matilde foi também escrito por ele(...).

FINAL :

Olho para as águas lamacentas do rio enquanto espero a hora a hora de entrar no ônibus. Penso na reviravolta causada na minha vida pelo envelope de papel pardo — mudanças de planos, brigas pessoais, crises institucionais — e me sinto tentada a abrir a sacola discretamente, sem que ninguém perceba (o que não seria difícil, pois a rodoviária está às moscas), e jogá-lo no rio. Afinal, até agora ninguém viu os originais, a tentação é forte. Por outro lado, penso em Gastão Fortes, o segredo que guardou por tantos anos, para revelá-lo a uma desconhecida, movido por uma vaidade tardia e inesperada; penso também em todas as perguntas que me fariam depois, todas as explicações e desculpas que seria preciso dar. Bom, preciso tomar uma decisão depressa; acabam de ligar o motor do ônibus.

Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto_Anotações

Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto

O livro Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto, publicado em 2004, título poético, por remeter aos Paraísos artificiais (escritos sobre o ópio, o haxixe e o vinho) de Charles Baudelaire, reúne nove contos, a maior parte escrita nos anos 70 e reescrita ao longo das últimas décadas. A obra é resultado de obsessão e, também, depuração. Britto diz ter escrito cerca de 30 contos durante o ano e meio (entre 1972 e 73) que passou em San Francisco, na Califórnia, estudando cinema. Quando relidos, mais tarde, quase todos foram jogados fora. Os restantes começaram a ser burilados.

“- Como nasceu o seu primeiro livro de contos, Paraísos artificiais (a ser lançado até o fim do ano pela Companhia das Letras)?

- No início dos anos 70, fui estudar cinema na Califórnia, mas o que mais fiz foi escrever contos. Larguei o curso, voltei ao Brasil e continuei a trabalhar naqueles contos. Desde então, escrevi mais três, o último no ano passado. É o mais longo do livro. Não há fio condutor, unidade temática ou estilística.”(BRITTO) (?)

Os contos contidos neste livro capturam sempre situações extremas - que podem ser uma doença sem nome ou um mero ônibus errado - e encontros embaraçosos, quase sempre do protagonista consigo mesmo. As narrativas conduzem seus protagonistas e narradores a visões nuas e dolorosas de si mesmos: mais alheios, mais tortuosos, mais covardes do que gostariam de ser.

Possíveis influências literárias

  1. Samuel Beckett: a solidão do homem, o teatro do absurdo, a imobilidade tipicamente beckettiana
  2. Franz Kafka: clima sufocante dos contos, conseqüências inesperadas e absurdas, o próprio absurdo da existência
  • Contos solipsistas: vida ou conjunto dos hábitos de um indivíduo solitário
  • A escrita dos narradores como saída para a inércia
  • A convivência nitidamente desconfortável entre as personagens
  • Vários personagens dos contos recorrem ao ato da escrita para encontrar seus supostos “paraísos artificiais”
  • Diálogos verossímeis e prosaicos, através do uso da coloquialidade, aliada a presença constante da ironia e da auto-crítica
  • Os contos são repletos de tensão narrativa, mas o clímax muitas vezes não se encontra no final, já que os desfechos são frequentemente prosaicos e propositalmente frustrantes: cabe ao leitor, muitas vezes, “completar” o final das narrativas
  • Os finais sempre ficam em aberto, pois não há uma solução definida e definitiva para os conflitos, tramas e obsessões das personagens expostos nas narrativas
  • A narração em 1ª pessoa, presente em 8 dos 9 contos do livro, auxilia esse caráter parcial, limitado e incompleto dos textos, que propositalmente “frusta” as expectativas do leitor. Esse “jogo” com o interlocutor é característico da literatura contemporânea, que questiona as verdades totalizantes e a definição clara e exata da realidade.
  • Situações kafkianas: as personagens encontram-se em situações desesperadoras ou inquietantes, ficam perturbadas pela falta de motivos aparentes para elas e não possuem saída ou escape. Fazem questionamentos e cogitações sem, no entanto, chegar a conclusão alguma.

Os paraísos artificiais

  • Percepção e sensibilidade para apurar a existência através da reflexão literária
  • Modificação das percepções = artificial, mas verdadeira e verossímil
  • Paraíso: o escritor como um demiurgo
  • Finitude do ser X perenidade do texto literário
  • Reflexões prosaicas sobre o incômodo e o desprazer, e a busca do alívio momentâneo = Literatura

Uma doença

  • Desenho de mapas que representassem todas as superfícies ao alcance da vista do narrador
  • O narrador passa todo o tempo deitado, analisando curvas, manchas, rachaduras e acidentes geográficos de paredes, tetos, chãos e até do seu lençol.
  • “Além disso, a rachadura estava me entediando, por ser um fenômeno demasiado previsível. Então resolvi escrever este breve relato”. Então = por isso ou portanto ? causa e conseqüência ou conclusão ?
  • Inevitabilidade da morte
  • Rachadura: decomposição, estilhaçamento, ruptura, quebra, desestruturação

Uma visita

  • Questão do duplo (POE):

1) narrador que está no 3° andar

2) narrador que está embaixo e pede a chave

Onde o narrador se encontra afinal?

  • Desencontro entre os iguais: ambos não se reconhecem, ambos inexistem em suas posições, ambos são sujeitos determinados, ambos desaparecem = ambos não conseguem se distinguir nitidamente, mas encontram no outro traços identificáveis

Um criminoso

  • Quem é afinal o criminoso? O voyer paranóico ou as pessoas de fora do apartamento que ele observa
  • “O copo escorrega da minha mão e se espatifa, à toa , à toa.” = a trana, a história frágil
  • Ditados: uso do senso comum, hipóteses falhas
  • Frustração das expectativas do narrador e do leitor

O companheiro de quarto

  • Através do discurso simplório, cruel e invejoso do narrador-personagem, percebe-se um mundo de transtornados: do sádico narrador ao inocente companheiro de quarto.
  • sexualidade ambígua? = a heterossexualidade de superfície provavelmente convivendo com, ou encobrindo, a homossexualidade de fundo
  • pintura da condição social de uma juventude de problemática inserção no mundo urbano, que divide apartamento e atrasa aluguel.
  • A planta representa o desconhecido, a fascinação e , ao mesmo tempo, o incômodo
  • O estoicismo do companheiro de quarto desconhecido remete à natureza da planta
  • A beleza do desconhecido e da planta fazem o narrador se lembrar de sua miséria e amargura íntimas
  • Dificuldade de lidar com o desabrochar e o perfume da flor: dificuldade da relação com o outro porque, especularmente, ele reflete a insegurança, o desamparo e a solidão do narrador

Coisa de família

  • Incômodo gerado num estrangeiro, longe de sua terra, ao passar o Natal com uma família calada, cujas falas são reticentes
  • Desconforto e constrangimento em estar junto aos problemas alheios, sem conseguir saber quais são
  • Título remete a uma generalização dos problemas familiares

O 921

  • clima policial que mostra um sujeito afogado em uma sucessão de equívocos = ônibus 488 e 921
  • o ônibus 921 e o Dr. Lustosa = “fantasmas” = ambos ao mesmo tempo existem e inexistem, são citados e vistos, mas não conhecidos
  • tanto o velho quanto os policiais levam o narrador para lugares distantes e afastados de seu destino desejado
  • tanto o velho quanto o narrador se utilizam da figura do Dr. Lustosa como “proteção”
  • o narrador é uma “vítima inocente” da ironia do destino = situação kafkiana

O primo

  • Narrado em 3ª pessoa
  • Cachorro: Kafka
  • Ivan vem do interior para estudar num colégio interno de padres.
  • Seu incômodo deriva de sua resistência e de sua postura de defesa para com os amigos do primo Reginaldo, mal falado pela família = insegurança de Ivan ao chegar numa cidade desconhecida, em busca de liberdade
  • “Aqui ninguém é de ninguém, (...) E todo mundo é de todo mundo” / “Sei lá. Só sei que eu não sou de ninguém”.
  • Antipatia mútua: ambos eram os “rejeitados” pela família, arrogantes e pretensamente independentes
  • Início da nova vida no Rio: ao invés de apoio, Ivã encontra um ambiente sufocante, com regras próprias e situações embaraçosas

Os Sonetos Negros

Personagens:

  1. Tânia (narradora-personagem)
    Matilde Fortes: escritora dos “Sonetos Negros, objeto de estudo de Tânia
  2. Gastão Fortes: marido de Matilde, com quem Tânia travará contato,
  3. Clemenceau: técnico de informática da pequena São Dimas
  4. Dona Aspásia: empregada de Gastão
  5. Ercila: orientadora da tese de Doutorado de Tânia
  6. Leandra: protegida de Ercila, também escreve sobre Matilde, mas a partir de uma perspectiva feminista
  7. Sérgio: ex-namorado de Tânia, que lhe manda e-mails
  8. Olavo: gerente do hotel de São Dimas
  • pesquisa sobre “Os sonetos negros” de Matilde Fortes = Farsa literária, "diário" de uma viagem de iniciação, de um desencontro que põe em xeque as certezas do politicamente correto e expõe uma jovem doutoranda às surpresas que a vida e a literatura não param de tramar
  • Através da relação entre a narradora, Tânia, e sua orientadora, Ercila, e da menção à tese e à pessoa de Leandra, também protegida por sua orientadora, expõe-se cruelmente os vícios e as hostilidades, os aborrecimentos e as peculiaridades negativas típicos do mundo da pesquisa acadêmica literária, como o pedantismo da criação de termos analíticos para a literatura ("matildeana", "clitoricêntrica", “escritura”).
  • No início, o objetivo da narradora é apenas checar os manuscritos originais da Poesia Reunida de Matilde e, através do cotejamento entre as primeiras edições e as atuais, estabelecer uma edição crítica da grande poeta Matilde Fortes, na verdade, provavelmente uma poetisa fictícia.
  • Acaba tendo longas conversas com o viúvo de Matilde, Gastão Fortes, e descobre nos manuscritos que ele lhe entrega, por estar à beira da morte, algo que no início parece confirmar certas leituras feministas da obra: Matilde teria escrito os sonetos para uma mulher, pois as palavras estavam trocadas — ao invés de destinados a um homem, seriam destinados a uma mulher. Aparentemente, a poetisa se encaixaria numa “tradição” de poesia de poesia lésbica (verso sáfico: tônicas nas posições 4, 8 e 10).
  • há um desfecho inesperado: os poemas haviam sido escritos pelo marido, Gastão, não pela literariamente ambiciosa e arrogante Matilde. A novela, muito bem humorada, usa parodisticamente os mecanismos do conto policial, e é uma sátira aos costumes acadêmicos e literários nacionais.
  • Final : implicações acadêmicas e pessoais da “descoberta” da farsa literária = ironia e metalinguagem = FRAUDES LITERÁRIAS
  • Vargem dos Índios, São Dimas (lugares fictícios?): panorama desconsolado e crítico do interior brasileiro
  • São Dimas: padroeiro dos ladrões, estelionatários, falsários e criminosos em geral

· As Canções de Bilitis foi publicado em 1894 e causou um grande alvoroço na Europa. Os poemas do livro, de autoria de uma tal de Bilitis - que seria uma contemporânea de Safo, nascida na mesma Lesbos - fizeram um sucesso estrondoso. Para se ter uma idéia, Debussy chegou a musicar três dos poemas do livro. Helenistas de toda a Europa correram para estudar a grande descoberta feita pelo escritor Pierre Louÿs que, além de traduzir os poemas do grego, escreveu o prefácio que contava um pouco da história da poetisa lésbica.

O livro vendeu horrores na virada do século e continuou vendendo bem nos anos seguintes. Mas em 1925, um pouco antes de morrer, Louÿs fez uma revelação prá lá de bombástica: os poemas eram de autoria dele próprio e a tal de Bilitis nunca existira de fato. A polêmica estava instaurada - os helenistas que haviam autenticado a descoberta ficaram sem ter onde enfiar a cara e Louÿs, cuja carreira já não ia bem das pernas, foi completamente ridicularizado. A farsa que Louÿs conseguiu sustentar por quase 30 anos, uma brincadeira bastante espirituosa, não foi entendida pelo círculo literário francês. Uma pena pois, a despeito de seu caráter farsesco, As Canções de Bilitis reúne alguns dos poemas lésbicos mais sensuais jamais escritos por um homem (à maneira de Safo) e influenciaram várias gerações de escritoras. (http://mixbrasil.uol.com.br/cio/cio20000/bolacha.htm)

  • Paulo Henriques Britto, professor de pós-graduação da PUC do Rio de Janeiro, diz:

"O que me incomoda muito no meio acadêmico é a politização do fenômeno literário. Nada contra a correção política, mas por que ver os escritores como gays, negros, mulheres antes de vê-los como escritores? As pessoas importam discussões norte-americanas sem adaptá-las para cá".

“ (...)sem um pouco de ironia fica difícil conviver com qualquer ambiente de trabalho, não é? Creio que o mundo acadêmico, sob esse aspecto, não é melhor nem pior do que nenhum outro. (...)Não vejo a minha posição como contrária à academia, e sim como diferente da que é defendida por muitos (mas não todos) acadêmicos da área de tradução. Talvez essa minha oposição a autores muito influentes, como Fish e Derrida, e a uma tendência, difundida na área de Letras, a escrever de um modo um tanto, digamos, rebuscado (para não dizer ininteligível), tenha me levado a adotar uma visão irônica. Mas não tenho nenhum preconceito contra a academia, contra a crítica universitária. Temos um bom número de críticos universitários que fazem leituras interessantes de obras literárias, se bem que — verdade seja dita — muito mais no campo da ficção do que no da poesia.”