Dois irmãos (Milton Hatoum)
EPÍGRAFE:
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis [...]
Carlos Drummond de Andrade
ZANA
Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas al-
guns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma
clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe
para que só a filha e a amiga quase centenária entendes-
sem (e para que ela mesma não se traísse): "Meus filhos já
fizeram as pazes?°'. Repetiu a pergunta com a força que lhe
restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora
da morte. Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas
de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado,
à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se
apagava um pedaço do céu crepuscular.
MANAUS
Fora assim durante os anos da guerra: Ma-
naus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos
açougues e empórios, disputando um naco de carne, um
pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de
energia, e um ovo valia ouro. Zana e Domingas acordavam
de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a patroa
ia ao Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam
a ferro, preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando
tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha de
trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazô-
nia. As vezes, trocava víveres por tecido encalhado: morim
ou algodão esgarçado, renda encardida, essas coisas.
DOMINGAS:
Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no
rosto de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles tivesse
sido a causa da agressão. Vivia atenta aos movimentos dos
gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade de todos.
Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da famí-
lia e o brilho da casa dependiam dela.
CICATRIZ:
Yaqub reservou
uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar
esse gesto polido. Da escuridão surgiram cenas em preto-e-
branco e o ruído monótono do projetor aumentava o si-
lêncio da tarde. Nesse momento Domingas despediu-se dos
Reinoso. A magia no porão escuro demorou uns vinte mi-
nutos. Uma pane no gerador apagou as imagens, alguém
abriu uma janela e a platéia viu os lábios de Lívia grudados
no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas
no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estoca-
da certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns
segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o ros-
to rasgado de Yaqub. Os Reinoso desceram ao porão, a voz
de Abelardo abafou o alvoroço. O Caçula, apoiado na pa-
rede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direi-
ta, o olhar aceso no rosto ensangüentado do irmão.
OMAR:
Na casa, Zana foi a primeira a notar esse pendor do filho para o galanteio. Domingas também se deixava encantar por aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio".
HALIM:
Halim havia melhorado de vida nos anos do pós-guerra. Vendia de tudo um pouco aos moradores dos Educandos, um dos bairros
mais populosos de Manaus, que crescera muito com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para
Manaus, onde ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos
barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no
tumulto de quem chega primeiro. Desse tumulto participava Halim, que vendia coisas antes de qualquer um. Vendia
sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência,
que um dia ele me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse
abismo, nem exigiu de si grandes feitos. O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pôde evitar.
(...)
Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram
com a roupa do corpo. Mas acreditava, bêbado de idealis-
mo, no amor excessivo, extático, com suas metáforas luna-
res. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrô-
nico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo
propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da
província; não passou de um modesto negociante possuído
de fervor passional. Assim viveu, assim o encontrei tantas
vezes, pitando o bico do narguilé, pronto para revelar pas-
sagens de sua vida que nunca contaria aos filhos.
PARTIDA DE YAQUB:
O Caçula não moveu uma palha: continuou sentado à mesa,
quieto diante do prato intocado, o olhar desviando furtivamente para o rosto do irmão. Sofria com a decisão de
Yaqub. Ele, o Caçula, ia permanecer ali, ia reinar em casa,
nas ruas, na cidade, mas o outro tivera a coragem de par-
tir. O destemido, o indômito na infância, estava murcho,
ferido. "Ele queria sair da sala, mas não conseguia' disse-
me Domingas. Não queria ver o irmão altivo, sereno, ouvindo a mãe pedir a Yaqub que lhe escrevesse uma carta por
semana, nem pensasse em deixá-la sem notícias, preocupada aqui neste fim de mundo. Rânia rondava o viajante,
e ajoelhava-se para murmurar palavras que só ele escutava. Domingas não tirava os olhos dele, e anos de'Pois ela
me contou que estava nervosa com a viagem de' Yaqub.
Nem Zana podia impedi-lo de partir. (...)Era pouco mais que uma sombra
habitando um lugar. Deixou na casa a lembrança forte de
duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e o encontro com a mulher que ele amava.
Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela
segunda vez não volta mais a casa. O pai concordava, sem
ânsia. Sonhava com um futuro glorioso para Yaqub, e isso
era mais importante que a volta do filho, mais forte que a
separação. Os olhos acinzentados de Halim se acendiam
quando dizia isso.
Eu vi esses olhos muitas vezes, não tão acesos, mas
tampouco baços. Apenas cansados do presente, sem acenar
para o futuro, qualquer futuro.
MEMÓRIA:
Hoje, a voz me chega aos ouvidos como
sons da memória ardente. As vezes ele se distraía e falava
em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: "É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo".
Ele dava um tapinha na testa, murmurava: "É a velhice, a
gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes apren-
der umas palavrinhas, querido".
A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve.
Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada
disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em
dias esparsos, aos pedaços, "como retalhos de um tecido".
Ouvi esses "retalhos", e o tecido, que era vistoso e forte, foi
se desfibrando até esgarçar.
Dúvidas sobre a paternidade e ódio do narrador:
Adiei a pergunta sobre o
meu nascimento. Meu pai. Sempre adiaria, talvez por medo. Eu me enredava em conjeturas, matutava, desconfiava
de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é o meu pai, mas
também pode ser o Caçula, ele me provoca, se entrega com
0 olhar, com o escárnio dele. Halim nunca quis falar disso,
nem insinuou nada. Devia temer não sei o quê. Ainda bem
que não chegou a presenciar o pior. O mais infame, o fundo
do abismo que Halim tanto temia, só aconteceu alguns anos
depois da história da Pau-Mulato.
(...)
O que havia entre os dois? Tive coragem
de lhe perguntar se Yaqub era o meu pai. Eu não suportava
o Caçula, tudo o que via e sentia, tudo o que Halim havia
me contado bastava para me fazer detestar o Omar. Não entendia por que minha mãe não o destratava de vez, ou pelo
menos não se afastava dele. Por que tinha que aturar tanta
humilhação?
(...)
Senti suas mãos no meu braço; estavam
suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou
a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub.. . Desde o
tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. "Com o Omar eu não queria...
Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de
homem. Nunca me pediu perdão."
(...)
Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros. Guardou até o fim aquelas palavras, mas não morreu com o segredo que tanto me exasperava. Eu olhava o rosto de minha mãe e me lembrava da brutalidade do Caçula.
FINAL:
Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão.(...)
[Rânia] me disse, alterada, que ia
escrever uma carta a Yaqub. "Ele traiu minha mãe, calculou tudo e nos enganou." Foi corajosa: na reclusão que lhe
era vital, na solidão de solteirona para sempre, escreveu a
Yaqub o que ninguém ousara dizer. Lembrou-lhe que a
vingança é mais patética do que o perdão. Já não se vingara ao soterrar o sonho da mãe? Não a viu morrer, não sabia, nunca saberia. Zana havia morrido com o sonho dela
soterrado, com o pesadelo de uma culpa. Escreveu que ele,
Yaqub, o ressentido, o rejeitado, era também o mais bruto,
o mais violento, e por isso podia ser julgado. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar todas as suas fotografias e
devolver as jóias e roupas que ganhara, caso ele não renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as ameaças,
porque Yaqub calculou que o silêncio seria mais eficaz do
que uma resposta escrita. (...)
Mas ela se ressentiu de mim, ofendeu-se com a
minha omissão, com o meu desprezo pelo irmão encarcerado. No fundo, sabia o que eu remoía, o que me comia por
dentro. Devia ter conhecimento do que Omar fizera com a
minha mãe, de todos os agravos a nós dois.
(...)
Lembrava - ainda me lembro - dos poucos momentos
em que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no
meu quarto, quando adoeci. Mas bem antes de sua morte,
há uns cinco ou seis anos, a vontade de me distanciar dos
dois irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças.
A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos neste mundo não foram menos
danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez
de sua ambição calculada. Meus sentimentos de perda per-
tencem aos mortos. Halim, minha mãe. Hoje, penso: sou e
não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado
comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesa-
delos pertencem a nós mesmos.
(...)
Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o
meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um
vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da
velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não
pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para
a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou
para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não O
esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já
quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele
confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava,
uma só. O perdão.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para
além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora.
Áudio de entrevista com Milton Hatoum, autor de DOIS IRMÃOS (CEFET)
Uma entrevista bem bacana com o Hatoum, em que ele fala, entre outros assuntos, do processo de composição de DOIS IRMÃOS, livro do CEFET.
Colem o link no navegar. Apertem o 'play' que aparecerá na página.
http://www.letraseleituras.com.br/entrevistas/?a=milton_hatoum
Questões sobre DOIS IRMÃOS (Milton Hatoum) para o CEFET
1) O romance Dois irmãos trata do ódio e da vingança para compor um drama familiar de teor universal.
JUSTIFIQUE a afirmativa acima.
2) O incesto é uma das temáticas presentes em Dois irmãos, de Milton Hatoum. EXPLIQUE como aparece no romance.
3) A personagem Zana é uma mãe superprotetora, cujas atitudes impulsionarão a destruição da família. DÊ TRÊS EXEMPLOS que ilustrem essa afirmação.
4) EXPLIQUE qual é a importância da memória na construção da narrativa de Dois irmãos.
5) RELACIONE a epígrafe de Drummond ao enredo do romance Dois irmãos:
“A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis [...]”
Carlos Drummond de Andrade
6) EXPLIQUE como, em Dois irmãos, o narrador traça um panorama socioeconômico e cultural da região manuara.
Questões sobre A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS (JOÃO DO RIO) para o CEFET
1) Com base na leitura e análise das crônicas “As mariposas do luxo”, “As mulheres mendigas” e “Mulheres detentas”, demonstre como João do Rio explora a faceta marginal do universo feminino, no início do século XX.
2) Leia atentamente o fragmento abaixo, extraído da crônica “A rua”, de João do Rio:
“E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observaçõs foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação... “
João do Rio pode ser considerado um flâneur? Justifique sua resposta.
3) Leia atentamente o trecho abaixo, da crônica “A rua”, de João do Rio:
Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.
Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!
EXPLIQUE o que pode ser considerado por João do Rio como a alma encantadora das ruas.
4) As crônicas prensentes em A alma encantadora das ruas são uma mistura de jornalismo investigativo com literatura.
JUSTIFIQUE essa afirmação.
5) A parte “Três aspectos da miséria”, de A alma encantadora das ruas, contém um forte teor de denúncia social.
EXPICITE-O, através de três exemplos.
6) Nas crônicas da parte “Onde às vezes termina a rua”, de A alma encantadora das ruas, João do Rio faz uma análise do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, no começo do século XX.
EXPONHA as principais idéias do cronista acerca das prisões e dos presidiários.
7) João do Rio é um cronista que usa a rua como fonte de inspiração e território de trabalho, por isso se torna um leitor privilegiado do espaço urbano do começo do século XX, no Brasil.
JUSTIFIQUE essa afirmação com argumentos que demonstrem seu conhecimento sobre a obra A alma encantadora das ruas como um todo.
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