A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
(João Cabral de Melo Neto)
(1962-1965)
A Manuel Bandeira
esta antilira para seus
oitent´anos
A educação pela pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois, para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, não quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
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E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
.
O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.
O que o mar sim ensina ao canavial:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial sim ensina ao mar:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
.
O que o mar não ensina ao canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
O que o canavial não ensina ao mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.
Psicanálise do açúcar
O açúcar cristal, ou açúcar de usina,
mostra a mais instável das brancuras;
quem do Recife sabe direito o quanto,
e o pouco desse quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do pouco que o cristal
se estabiliza cristal sobre o açúcar,
por cima do fundo antigo, de mascavo,
do mascavo barrento que se incuba;
e sabe que tudo pode romper o mínimo
em que o cristal é capaz de censura:
pois o tal fundo mascavo logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.
.
Só os bangüês que-ainda purgam ainda
o açúcar bruto com barro, de mistura;
a usina já não o purga: da infância,
não de depois de adulto, ela o educa;
em enfermarias, com vácuos e turbinas,
em mãos de metal de gente indústria,
a usina o leva a sublimar em cristal
o pardo do xarope: não o purga, cura.
Mas como a cana se cria ainda hoje,
em mãos de barro de gente agricultura,
o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.
Os reinos do amarelo
A terra lauta da Mata produz e exibe
um amarelo rico (se não o dos metais):
o amarelo do maracujá e os da manga,
o do oiti-da-praia, do caju e do cajá;
amarelo vegetal, alegre de sol livre,
beirando o estridente, de tão alegre,
e que o sol eleva de vegetal a mineral,
polindo-o, até um aceso metal de pele.
Só que fere a vista uma amarelo outro,
e a fere embora baço (sol não o acende):
amarelo aquém do vegetal, e se animal,
de um animal cobre: pobre, podremente.
2
Só que fere a vista um amarelo outro:
se animal, de homem: de corpo humano;
de corpo e vida; de tudo o que segrega
(sarro ou suor, bile íntima ou ranho),
ou sofre (o amarelo de sentir triste,
de ser analfabeto, de existir aguado):
amarelo que no homem dali se adiciona
o que há em ser pântano, ser-se fardo.
Embora comum ali, esse amarelo humano
ainda dá na vista (mais pelo prodígio):
pelo que tardam a secar, e ao sol dali,
tais poças de amarelo, de escarro vivo.
Rios sem discurso
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e, porque assim estanque, estancada;,
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
A educação pela pedra (João Cabral de Melo Neto)
A arquitetura da obra: as linhas estruturais básicas do livro
48 poemas distribuídos da seguinte maneira:
Nordeste (a)
12 poemas
Não-nordeste (b)
12 poemas
· 16 versos
3 x 8/8
3 x 6/10
3 x 10/6
3 x 8/8
Nordeste (A)
12 poemas
Não-Nordeste (B)
12 poemas
· 24 versos
3 x 12/12
3 x 8/16
3 x 16/8
3 x 12/12
Nordeste: motivos pernambucanos, crítica social
Não-Nordeste: temas diversos, Espanha, sátiras, reflexões
Palavras de João Cabral
· “Antes faço o plano do livro, decido o número de poemas, o tamanho, os temas. Crio a forma. Depois encho.”
· “A teoria da literatura sempre me impressionou mais do que a literatura propriamente dita”
· “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. (...) A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada — de fora para dentro. (...) Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento.
· “Nenhum poema meu ‘acontece’ ou ‘baixa’, como se diz. Essa excitação, que faz certos poetas registrarem ocorrências poéticas em determinadas circunstâncias, é, para mim, completamente inexistente ou tão fraca que nem me anima a pegar no lápis. Outra coisa: escrever para mim é trabalho braçal, e se eu não tiver um estímulo exterior qualquer, não levo o meu trabalho ao fim”.
Poemas escritos não sob o impulso de seus diferentes momentos de criação, mas em conformidade com os formatos previamente definidos pelo poeta.
A POÉTICA DE JCMN
· Avesso ao confessionalismo, obra centrada no objeto, se guia pela contenção e economia verbal
· Ordenação consciente dos elementos lingüísticos que se articulam no texto
· Poesia racional, construtivista, ausência de imagens abstratas
· Reflexões sobre a própria condição da poesia e do poeta (metalinguagem)
· Elevado grau de elaboração e consciência formal, disciplina intelectual
· Trabalho rigoroso da linguagem poética
· Discursividade lógica dos poemas que impede a leitura melódica, prosificação do verso
· Retomada de uma mesma composição através da permutação de versos e da tematização aproximada
· Recomposição dos poemas e pesquisa com a linguagem poética
· Teor descritivo-analítico dos versos, sequência de imagens, reiteração vocabular, aliterações secas e cortantes
· A poética se nutre da secura, da concretude e da construção
· A indagação sobre o fazer criativo e a compreensão da poesia são tão importantes quanto o exercício da criação
· Apresenta-se uma metáfora e depois discute-a, associa-a a outra, nega-a e reafirma-a: estilo francamente expositivo
· Obsessão pelo que existe fora do homem e não pelo que se esconde dentro dele
· Consciência crítica na construção de seus poemas:
O trabalho poético de João Cabral rompe com o mito da inspiração do escritor, associado tradicionalmente à criação do poema. A poesia não está no sentimento do poeta ou na beleza dos fatos a que se refere, mas na organização do texto, no rigor de sua construção. A subjetividade fica circunscrita aos dados objetivos do poema, pois se enfatizam os elementos da realidade através da contenção do lirismo, da busca de um tom impessoal e de um racionalismo radical.
ANTILIRA
O poeta não está preocupado com sua expressão individual. Pretende tornar o poema independente de sua visão individual, por isso apaga o ‘eu’ em favor do conhecimento objetivo da realidade, o que acentua o lado crítico de sua poética e as verdades sociais representadas no discurso lógico do poema. É uma forma de poesia que rompe com o extravasamento emotivo tradicional.
Poeta antilírico, que menospreza a espontaneidade, nega a inspiração e se diz inábil para a musicalidade.
A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
APRENDIZAGEM DO POETA COM A PEDRA
LIÇÃO DO POETA AO LEITOR PELA PEDRA
· As lições: dicção, moral, poética e economia
· a resistência da pedra traduz o trabalho com a linguagem da poesia (poesia crítica e metalingüística)
· a despoetização surge como instrumento capaz de ensinar ao poeta como tratar de temas que lê nas paisagens nordestinas e espanholas
· enorme esforço de condensação
· a linguagem é a própria imitação do objeto a ser nomeado
· modo de relacionamento com a realidade, recusa do fácil e do fluido
PERMUTA DE VERSOS (verso permutacional, poemas permutacionais)
· Os mesmos versos podem estar presentes em mais de um poema
· tanto se mantém quanto se altera o sentido dos poemas
· jogo de desarticulação e rearticulação dos poemas
· manipulação de estruturas abertas, articuláveis, móveis, construídas com versos que podem ser destacados e recolocados em outro lugar, para compor novos arranjos
· reaproveitamento total ou parcial dos versos
· poesia que nasce da matemática, da geometria, da sujeição da sensibilidade ao projeto do livro
· as palavras são repetidas e deslocam-se de um poema para outro, são um dado concreto a ser trabalho pelo escritor e também pelo leitor
Vejam esse vídeo, dividido em duas partes pequenas, em que escritores e artistas como Verissimo e Chico Buarque falam sobre João Cabral. Finíssimo !
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http://br.youtube.com/watch?v=Pc7mSYhPApI
http://br.youtube.com/watch?v=honRyFrjR_E&feature=related
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