Poemas de Carlos Drummond de Andrade - UNIFEI
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Comentário:
Para a interpretação desse poema, valem aquelas idéias discutidas em sala, em relação a como a voz poética da poesia drummondiana reflete sobre suas origens. O “ferro” representa uma idéia de dureza física e emocional, por isso a ironia da voz poética em falar que o hábito de sofrer é doce herança itabirana. A última estrofe demonstra, ao mesmo tempo, amargura e alívio, por não “herdar” gado, ouro e fazendas, e ser um reles funcionário público. Notem o ar de nostalgia do poema, mesclado à fina ironia de Drummond, quando confere uma dimensão metafísica para a fotografia: algo inerte, paralisado, mas movediço dentro do ser — ela simboliza a memória. Na verdade, não é a fotografia que dói, mas essa mesma nostalgia, e o sentimento de saber-se fechado, recluso e alheio ao mundo, orgulhoso, mas de ter a certeza de pertencer a ele. Por isso o tom irônico é fundamental para a composição do poema.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?
Comentário:
Esse poema levaria uma aula inteira para ser discutido, mas brevemente falando, “José” é a metonímia do ser humano comum, que marcha pela vida sem encontrar destino e sentido para tal marcha. Esse é um poema exemplar que revela a preocupação metafísica da poesia de Drummond. Notem que há uma gradação no poema: à medida que a leitura avança, a marcha e a procura de José tornam-se mais sem sentido. A idéia da negação percorre os versos, e a pergunta “e agora, José?” serve precisamente para acentuar a falta de respostas para qualquer indagação sobre a existência. Reparem como há um sentimento de solidão enorme que deixa José isolado e, aparentemente, sem alternativas. Destacam-se a noite, a escuridão, a falta, o fim, e os versos “quer ir para Minas,/Minas não há mais./ José, e agora? ” demonstram novamente a idéia da origem perdida e da dificuldade de lidar com a falta de sentido aparente para a existência absurda, recorrentes na obra de Drummond.
Hino nacional
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás as florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Eduardo Alves da Costa
Quanto a mim, sonharei com Portugal
Às vezes, quando
estou triste e há silêncio
nos corredores e nas veias,
vem-me um desejo de voltar
a Portugal. Nunca lá estive,
é certo, como também
é certo meu coração, em dias tais,
ser um deserto.
Comentário:
Para analisar esse poema, basta lê-lo percebendo a ironia dos versos. Portugal representa a origem colonial, e o poema nada mais é do que uma sátira à dependência cultural e econômica nacional. Os versos “o Brasil está dormindo, coitado./Precisamos colonizar o Brasil”sugerem uma riqueza ainda inexplorada, latente, adormecida em nosso país. Numa questão de redação, esse poema pode muito bem ser relacionado a um texto que aborda as peculiaridades brasileiras, ou críticas à economia e à sociedade.
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos , raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Comentário:
Outro poema que levaria tempo para analisar, de tão fundamental que é na obra de Drummond. Ele começa com a predestinação da voz poética a ser “gauche”, diferente, avesso às normas do mundo, estranho e socialmente desconexo. O anjo responsável pelo anúncio é ironicamente um anjo das trevas (temam!), torto, assim como a voz poética. Cada uma das sete estrofes revela uma das faces do poeta, que se sente totalmente fragmentado no mundo. A intertextualidade com a passagem bíblica da crucificação de Cristo, presente nos versos “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco”, demonstra um relativo deboche em relação à própria solidão, segundo sugere a última estrofe, em que se atribui a comoção e o sentimentalismo ao conhaque e à lua. Da mesma forma, a conhecida estrofe “Mundo mundo vasto mundo/se eu me chamasse Raimundo,/seria uma rima, não seria uma solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração” mostra como a poesia não é uma solução final para a vida, mas é imprescindível, uma vez que o coração, o sentimento, é maior que a materialidade do mundo.
Infância
A Abgar Renault
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras.
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
- Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Comentário:
Mais uma vez o sentimento de origem e a nostalgia, mostradas em “E eu não sabia que minha história/era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Notem a descrição do passado rural e do provincianismo brasileiros, através da retratação do cotidiano da própria família, que podem ser contrastados com a modernização imposta pelo trem de ferro que virá mais à frente.
Hipótese
E se Deus é canhoto
e criou com a mão esquerda?
Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
Comentário:
Um pequeno poema irônico sobre a idéia do “gauche”, que pode ser traduzido também por “esquerdo”. Notem o destaque dado para o descompasso das “coisas deste mundo”, um mundo errado, confuso e estranho para a voz poética. Pode-se fazer diversas abordagens com esse poema também numa questão aberta ou fechada: a recorrência do “gauchismo”, a crítica social e a aparente impossibilidade de adequar a existência “torta” da voz poética ao mundo.
Homem livre
Atanásio nasceu com seis dedos em cada mão.
Cortaram-lhe os excedentes.
Cortassem mais dois, seria o mesmo
admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro.
Lombilho que ele faz, quem mais faria?
Tem prática de animais, grande ferreiro.
Sendo tanta coisa, nasce escravo,
o que não é bom para Atanásio e para ninguém.
Então foge do Rio Doce.
Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,
onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.
Meu parente Manuel Chassim não se conforma.
Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:
Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.
Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?
Comentário:
Poema de forte conotação social, que critica ao mesmo tempo a escravidão e a atitude do parente em tentar reaver o escravo fugido, para sugerir a ligação que a sociedade brasileira ainda mantém com a idéia da obrigação ao servilismo por parte dos menos favorecidos.
Prece do brasileiro
Meu Deus,
só me lembro de vós para pedir,
mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.
Desculpai vosso filho, que se veste
de humildade e esperança
e vos suplica: Olhai para o Nordeste
onde há fome, Senhor, e desespero
rodando nas estradas
entre esqueletos de animais.
Em Iguatu, Parambu, Baturité,
Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?)
vede as espectrais
procissões de braços estendidos,
assaltos, sobressaltos, armazéns
arrombados e – o que é pior – não tinham nada.
Fazei, Senhor, chover a chuva boa,
aquela que, florindo e reflorindo, soa
qual cantata de Bach em vossa glória
e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,
ao pobre sertanejo destruído
no que tem de mais doce e mais cruel:
a terra estorricada sempre amada.
Fazei chover, Senhor, e já! numa certeira
ordem às nuvens. Ou desobedecem
a vosso mando, as revoltosas? Fosse eu Vieira
(o padre) e vos diria, malcriado,
muitas e boas... mas sou vosso fã
omisso, pecador, bem brasileiro.
Comigo é na macia, no veludo/lã
e matreiro, rogo, não
ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre)
mas ao Deus que Bandeira, com carinho
botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.
E mudo até o tratamento: por que vós,
tão gravata-e-colarinho, tão
vossa excelência?
O você comunica muito mais
e se agora o trato de você,
ficamos perto, vamos papeando
como dois camaradas bem legais,
um, puro; o outro, aquela coisa,
quase que maldito
mas amizade é isso mesmo: salta
o vale, o muro, o abismo do infinito.
Meu querido Jesus, que é que há?
Faz sentido deixar o Ceará
sofrer em ciclo a mesma eterna pena?
E você me responde suavemente:
Escute, meu cronista e meu cristão:
essa cantiga é antiga
e de tão velha não entoa não.
Você tem a Sudene abrindo frentes
de trabalho de emergência, antes fechadas.
Tem a ONU, que manda toneladas
de pacotes à espera de haver fome.
Tudo está preparado para a cena
dolorosamente repetida
no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.
No entanto, você sabe,
você lê os jornais, vai ao cinema,
até um livro de vez em quando lê
se o Buzaid não criar problema:
Em Israel, minha primeira pátria
(a segunda é a Bahia)
desertos se transformam em jardins
em pomares, em fontes, em riquezas.
E não é por milagre:
obra do homem e da tecnologia.
Você, meu brasileiro,
não acha que já é tempo de aprender
e de atender àquela brava gente
fugindo à caridade de ocasião
e ao vício de esperar tudo da oração?
Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.
Fiquei, confesso, muito encabulado,
mas pedir, pedir sempre ao bom amigo
é balda que carrego aqui comigo.
Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.
Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar
noutro caso, mais sério, mais urgente.
Escute aqui, ó irmãozinho.
Meu coração, agora, tá no México
batendo pelos músculos de Gérson,
a unha de Tostão, a ronha de Pelé,
a cuca de Zagalo, a calma de Leão
e tudo mais que liga o meu país
e uma bola no campo e uma taça de ouro.
Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça
sem milagres ou com ele nos pertença
para sempre, assim seja... Do contrário
ficará a Nação tão malincônica,
tão roubada em seu sonho e seu ardor
que nem sei como feche a minha crônica.
Comentário:
Notem como os versos dessa prece profundamente sarcástica e delicada soam como prosa, como sugere o verso final, “que nem sei como feche a minha crônica”, que também indica a retratação, realizada pela voz poética, de aspectos sociais brasileiros. O crítica social e a ironia estão explícitas. O trecho “Você, meu brasileiro,/não acha/que já é tempo de aprender/e de atender àquela brava gente/fugindo à caridade de ocasião/e ao vício de esperar tudo da oração?/Jesus disse e sorriu. Fiquei calado” já diz tudo. Esse poema cairá na prova de redação.
O seu santo nome
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
Comentário:
O “santo nome”, no caso, é tão divino quanto o símbolo do sagrado, pois é o “amor”— e o santo nome não deve ser pronunciado
O maior trem do mundo
O maior trem do mundo
Leva minha terra
para Alemanha
leva a minha terra
para o Canadá
leva a minha terra
para o Japão.
O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas à óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva o meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minero e destruição.
O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo
meu coração itabirano.
Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará.
Pois nem terra nem coração existem mais
Comentário:
Poema que aborda mais uma vez as raízes e as origens do poeta, mas com uma ácida crítica social e econômica, por causa do minério exportado, e ainda o sentimento de melancolia, porque a vida da voz poética fica “triturada em 163 vagões de minero e destruição”. A “terra” levada para longe é tanto o minério extraído quanto o local onde se estabelece a raiz cultural, que se perde, por não ter onde se fixar. Notem a idéia recorrente da sensação de pequenez da voz poética diante do mundo enorme, metaforizada pelo maior trem do mundo, símbolo de imponência econômica, de progresso inabalável, mas também instrumento de desumanização e um fator descaracterizador da região itabirana.Vai cair com certeza.
Ótima prova a todos, abração! Aloisio.
Um comentário:
O trem maior do mundo vai passando por varios lugares e vai ajudando varias pessoas com o seu amor e carinho,e com isso o mundo ira ficar cada vez melhor!!!!!!!!!!!!!
Abração!!!!!!!! De Amanda Moraes
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