MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Machado de Assis
Trechos escolhidos
Dedicatória:
AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS
METALINGUAGEM E INTERLOCUÇÃO COM O LEITOR
(...) Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja‑a e não esteja daí a torcer‑me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
CAPÍTULO 71
O Senão do Livro
Começo a arrepender‑me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar‑vos‑ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de cemitério e carnaval.
CAPÍTULO 138
A Um Crítico
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei: "Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias." Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo‑se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente. Valha‑me Deus! é preciso explicar tudo.
REALISMO x ROMANTISMO
CAPÍTULO 14
O Primeiro Beijo
Tinha dezessete anos; pungia‑me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá‑lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.
DEFUNTO AUTOR OU AUTOR DEFUNTO?
CAPÍTULO 24
Curto, Mas Alegre
E não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei‑lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei‑a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e politicas, para as despesas da conversação. Tratei‑os como tratei a História e a Jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a omamentação, que eram para o meu espírito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, são as conchas do mar e os dentes de pessoa morta.
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça‑se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa‑se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar‑se, despintar‑se, desafeitar‑se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
Ao Leitor
Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê‑lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez, Dez? Talvez cinco. Trata‑se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Stern de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia‑a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago‑me da tarefa; se te não agradar, pago‑te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‑feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!
METAFÍSICA DE UM DEFUNTO
CAPÍTULO 36
A Propósito de Botas
Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica‑os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro.
Enquanto esta idéia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder‑se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou‑as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.
CAPÍTULO 49
A Ponta do Nariz
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam‑se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica‑se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
CAPÍTULO 51
É Minha
- E minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi‑se‑me a idéia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa.
- E minha! dizia eu ao chegar à porta de casa.
Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios, luziu‑me no chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei‑me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
- E minha! repeti eu a rir‑me, e meti‑a no bolso.
Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê‑lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo‑lhe o achado, e rogando‑lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê‑lo às mãos do verdadeiro dono.
Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.
- Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas?
E a boa dama sacou um espelho e abriu‑mo diante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante, nítida, multiplicando‑se por si mesma, - ser dez - depois trinta - depois quinhentas, - exprimindo assim o benefício que me daria na vida e na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contemplação daquele ato, revia‑me nele, achava‑me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um pouquinho mais.
Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o que ai fica; talvez queiras uma coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.
CAPÍTULO 68
O Vergalho
Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei‑lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo‑as a outro. Eu, em criança, montava‑o, punha‑lhe um freio na boca, e desancava‑o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia‑lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
CAPÍTULO 76
O Estrume
Súbito deu‑me a consciência um repelão, acusou‑me de ter feito capitular a probidade de Dona Plácida, obrigando‑a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha‑a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; e eu fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex‑costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de Dona Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê‑la. E repuxou‑me outra vez de um modo irritado e nervoso.
Concordei que assim era mas aleguei que a velhice de Dona Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. E raciocinei então que, se não fossem os meus amores, provavelmente Dona Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude, O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.
CAPÍTULO 119
Parêntesis
Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto:
Suporta‑se com paciência a cólica do próximo.
‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑
Matamos o tempo; o tempo nos enterra.
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Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.
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Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.
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Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá‑lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.
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Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.
CAPÍTULO 151
Filosofia dos Epitáfios
Saí, afastando‑me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece‑lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.
EXPERIMENALISMOS LITERÁRIOS
CAPÍTULO 55
O Velho Diálogo de Adão e Eva
Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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Virgília
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CAPÍTULO 124
Vá de intermédio
Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio, pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro, senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pitoresca. E repito: não é meu.
CAPÍTULO 125
Epitáfio
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AQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENA
DE BRITO MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
ORAI POR ELA!
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CAPÍTULO 139
De Como Não Fui Ministro de Estado
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CAPÍTULO 2
O Emplasto
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou‑se‑me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Eu deixei‑me estar a contemplá‑la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra‑me ou devoro‑te.
Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti‑hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá‑lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis; "...e eu era hábil." Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o públi‑ co, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: ‑‑ amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
“Reencontro com Virgília, à beira da morte”:
Creiam‑me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.
(...)
Virgília deixou‑se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar‑se de alguns fios de prata.
“O delírio”
‑ Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
‑ Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando‑me?
‑ Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou‑me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê‑la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, ‑‑ flagelos e delícias, ‑‑ desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí‑lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, ‑‑ nada menos que a quimera da felicidade, ‑‑ ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava‑se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia‑se, como uma ilusão.
CAPÍTULO 11
O Menino É Pai do Homem
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso.. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixas, à guisa de freio, eu trepava‑lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava‑o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca, besta!" - Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha‑me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia‑o por simples formalidade: em particular dava‑me beijos.
(...)
O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.
“Conselho do pai seguido de reflexão sobre o emplasto”
- Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá‑lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...
E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu‑se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida, - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.
CAPÍTULO 21
O Almocreve
O almocreve salvara‑me talvez a vida; era positivo; eu sentia‑o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar‑lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, - essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou‑lhe as três moedas.
(...)
Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei‑lhe a roupa; era um pobre‑diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, urna moeda. Tirei‑a, via‑a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha lhe voltado as costas; mas suspeitou‑o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava‑lhe conselhos, dizia‑lhe que tomasse juízo, que o "senhor doutor" podia castigá‑lo; um monólogo paternal. Valha‑me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.
- Olé! exclamei.
- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri‑me, hesitei, meti‑lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara‑lhe bem, pagara‑lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado
CAPÍTULO 27
Virgília?
Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; e era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, - devoção, ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, - tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
- Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da memória a imagem do que fui, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi‑la depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
“Eugênia”
CAPÍTULO 33
Bem‑Aventurados os que Não Descem
O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, e não atinava com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi‑lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá‑lo.
(...)
Queria‑lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava‑nos, mas pouco; temperava a necessidade com a convivência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava‑me a alma em flor.
- O senhor desce amanhã? disse‑me ela no sábado.
- Pretendo.
- Não desça.
Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: - Bem‑aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das damas. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem‑vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...
CAPÍTULO 35
O Caminho de Damasco
Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): "Levanta‑te, e entra na cidade." Essa voz saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá‑la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda‑feira, ao anunciar‑lhe que na seguinte manhã viria para baixo. - Adeus, suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade; faz bem. - E como eu nada dissesse, continuou: - Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia dizer‑lhe que não; ela retirou‑se lentamente, engolindo as lágrimas. Alcancei‑a a poucos passos, e jurei‑lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.
- Acredita‑me? perguntei eu no fim.
- Não, e digo‑lhe que faz bem.
Quis retê‑la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Eu desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito; e vinha dizendo a mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira política.., que a constituição... que a minha noiva.., que o meu cavalo...
ADULTÉRIO
CAPÍTULO 80
De Secretário
(...)
- O pior, disse‑me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei secretário.
- Não?
- Não, e tenho uma idéia.
-Ah!
- Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte?
Não sei o que lhe disse.
- Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar‑me, ia de secretário comigo.
Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo administrativo.
CAPÍTULO 82
Questão de Botânica
(...)
- Já sei, desta vez vai ler Cícero, disse‑me ele, ao saber da viagem.
- Cicero! exclamou Sabina.
- Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é Virgílio e não Virgília... não confunda...
E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina empalideceu e olhou para mim, receosa de alguma réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá‑lo. As outras pessoas olhavam‑me com um ar de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor. E entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso, - palreiro como as pegas de Sintra. Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu‑me sorrir, e continuei a fazê‑lo das outras vezes. Não sei se há aí algum Hobbes ou Spinosa que explique o fenômeno. Eu explico‑o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o tempo, desabotoou‑se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.
CAPÍTULO 85
O Cimo da Montanha
Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. E entrei a amar Virgília com muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela. Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga de Malabar, com que tomamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando‑
nos com abraços.
- Minha boa Virgília!
- Meu amor!
- Tu és minha, não?
- Tua, tua...
E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer...
CAPÍTULO 105
Equivalência das Janelas
Dona Plácida fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei dois passos para sair à rua, com o fim de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse, porque Dona Plácida deteve‑me por um braço. Tempo houve em que eu cheguei a supor que não dissera aquilo senão para que ela me detivesse; mas a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuíno e cordial não podia ser senão esse. E isto por aquela famosa lei da equivalência das janelas, que eu tive a satisfação de descobrir e formular, no capítulo 51. Era preciso arejar a consciência. A alcova foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei.
CAPÍTULO 115
O Almoço
Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar‑lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon...
(...)
Eram, e naquela manhã parece que o diabo do homem adivinhara a nossa catástrofe. jamais o engenho e a arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que ternura de carnes! que rebuscado de formas! Comia‑se com a boca, com os olhos, com o nariz. Não guardei a conta desse dia; do contrário, é mui provável que a deixasse nestas páginas; sei que foi cara. Ai dor! era‑me preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava‑me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava‑me para os não ver nunca mais, porque ela poderia tomar e tomou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?
CAPÍTULO 131
De Uma Calúnia
(...)
- Seu maganão! Recordações do passado, hem?
- Viva o passado!
- Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
- Salta, pelintra! disse eu, ameaçando‑o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, - principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam; ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega‑se por amor, ou seja o amor‑paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante - o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro‑me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece‑lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo‑se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, - essa meiga fatuidade que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta‑me deixar escrito nesta página, para uso dos óculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir‑se por força, mais tarde ou mais cedo: "Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir."
DESFECHO
CAPÍTULO 159
A Semidemência
Compreendi que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba partira seis meses antes para Minas Gerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses depois, e entrou‑me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou‑me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscrito todo e ia recomeçá‑lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro.
- Juras por Humanitas? perguntou‑me.
- Sabes que sim.
A voz mal podia sair‑me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel verdade. O Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia‑o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia‑me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara para as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele levantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica. Outras vezes amuava‑se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão, triste como uma lágrima...
Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.
CAPÍTULO 160
Das Negativas
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e ai vos ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube‑me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei‑me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:
- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
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