A marginalidade da poesia independente dos anos 70
(ou)
UM DISCO DE CAPA PRETA
26 poetas hoje
(Organização Heloisa Buarque de Hollanda)
Lado A: uma introdução
A coletânea de poesia 26 poetas hoje, organizada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, suscita grandes e tentadoras críticas no meio acadêmico, desde a época em que foi publicada, por volta de 1976, até a atualidade. Trata-se de uma coleção de textos de 26 poetas que executaram o que ficou conhecido como poesia marginal — ironicamente denominada por Chacal, poeta integrante da antologia, de “poesia magistral”:
“(...) a poesia é magistral. mas marginal prá mim é novidade. você que é bem informado, mi diga: a poesia matou alguém, andou roubando, aplicou algum cheque frio, jogou alguma bomba no senado?”
Dentre os vinte e seis poetas publicados no livro, atualmente destacam-se Chacal, Ana Cristina César, Wally Salomão, Adauto, Charles, Antonio Carlos de Brito (Cacaso), Roberto Piva, Carlos Saldanha, Torquato Neto, José Carlos Capinam e Roberto Schwarz que, por diversos motivos, se tornaram mais conhecidos do grande público, o que não exclui de forma alguma a importância dos demais dentro da antologia.
Para entendermos o porquê dessa coletânea suscitar, ao mesmo tempo, tantas críticas e aplausos, e analisarmos as várias opiniões divergentes a respeito do rótulo poesia marginal, que norteará nosso estudo, passemos em revista as décadas de 60 e 70, nas quais a configuração política, social e principalmente cultural do Brasil alteraram-se profundamente, com conseqüências no plano artístico ainda mais marcantes.
O chiado do começo, a agulha está no lugar
Em 1964, ocorre o golpe militar no Brasil. Curiosamente, embora tenha investido contra as organizações de massa e suas lideranças mais atuantes, o golpe de estado poupou a intelectualidade de esquerda, deixando intocada a produção cultural que debatia a dependência cultural brasileira e a modernidade. 1968 é o começo dos chamados “anos de chumbo”, já que o AI-5 instala definitivamente a repressão política de direita organizada pelo Estado, de modo a assegurar o sucesso e a consolidação do “milagre brasileiro” no plano econômico.
Vive-se um clima de ufanismo, de nacionalismo exacerbado, promovido pelo Estado, que se vale do implemento de obras públicas e do enriquecimento da classe média para a manutenção do regime vigente. A censura dificulta as manifestações culturais de caráter crítico, o regime persegue professores, intelectuais e artistas, que são obrigados a se exilar. Alguns autores acentuam que o clima é de “vazio cultural”, por isso a mobilização e o debate político encontram nas artes, espaço singular de contestação, o lugar da “resistência”.
No período pós-AI-
À margem da produção e veiculação tradicionais do mercado editorial, surge uma série de livrinhos artesanais de poesia, cujos textos contêm a marca da experiência imediata da vida do poeta, “em registros às vezes ambíguos e irônicos e revelando quase sempre um sentido crítico independente de comprometimentos programáticos”[2] . Desponta, nesse contexto, o que viria a ser denominado como poesia marginal, que mais do que confrontar o sistema, aparentava rejeitá-lo, sempre criando alternativas possíveis de manifestação artística. A valorização do aqui e agora da vida do poeta, a recusa das formas sérias do conhecimento intelectual e literário, a descrença em relação à universidade e a captação das situações e dos sentimentos no momento em que estão sendo experimentados são características básicas dessa nova produção poética.
O caráter de momentaneidade dessa poesia faz com que o cotidiano passe a ser valorizado como arte. A descrença e o mal estar vividos por essa geração censurada da década de 70 refletem-se na descrição de estados de perplexidade diante do cotidiano sufocante da ditadura.
A música é mais alta que o chiado
No final da década de 60, vários acontecimentos mundiais refletiam uma crise já evidenciada no meio cultural. O declínio dos ideais de paz e amor do movimento hippie e do chamado flower power, o enfraquecimento da atuação política das esquerdas com a evidente natureza autoritária do socialismo soviético, as contradições da Guerra do Vietnã, a tomada do poder pelas elites, a descrença no marxismo como ideologia redentora e o AI-5 ocorrem paralelamente à difusão da contracultura, que coloca em debate o uso de drogas, a liberação sexual, o rock e outras formas alternativas de comportamento que negam os valores tradicionais da sociedade burguesa. Nesse contexto, fortalece-se no Brasil a imprensa underground, que teria como referencial mais acentuado O Pasquim. Na segunda metade da década de 60, ascendem os movimentos estudantis e a chamada esquerda revolucionária, que parte para a guerrilha e ações armadas, como o seqüestro do embaixador norte-americano Elbrick (1969), para derrubar o regime militar instaurado em 1964. No entanto,
“à ofensiva da esquerda armada, o Estado respondia com o aprimoramento de seu aparelho de repressão. Num movimento de extrema mobilização política e cultural apresentavam-se duas opções radicalizantes para a juventude: a viagem do engajamento na luta armada e a viagem, não menos desesperada, do desbunde”.[3]
O clima de euforia ufanista promovido pelo tricampeonato de futebol que o Brasil conquistara na Copa de 70 convivia com o desencanto e a perplexidade da virada da década, sentido no mundo inteiro, e sintetizado pela célebre declaração de John Lennon à Rolling Stone, que passa a ser um slogan que as gerações do mundo inteiro repetiriam desoladamente: “the deam is over” (o sonho acabou):
“(...)
Se o sonho acabou
Não posso pensar
No que antes de vir
Chegou atrasado
(...)”
(Ricardo G. Ramos)
Esse fragmento do poema “Exercício de tiro”, de Ricardo G. Ramos, pertencente à antologia, exemplifica a apropriação da fala do ex-beatlle Lennon para sugerir um desencanto com o tempo presente e a falta de expectativas em relação ao futuro, por causa das sucessivas e sufocantes mudanças, que ocorrem em ritmo vertiginoso.
A ditadura promovia, com base nas idéias de segurança/desenvolvimento, o “milagre brasileiro”, às custas de uma conjuntura internacional favorável ao entreguismo econômico e à dependência do capital estrangeiro. A violência da censura e da tortura fazia-se sentir em toda sociedade, atingindo inclusive a classe média e o setor universitário. Ao lema “Brasil: ame-o ou deixe-o...”, acrescentou-se: “o último que sair, apaga a luz”.
Um barulho diferente: o disco está arranhado
No campo literário, principalmente a partir de 1973, próxima à constatação definitiva da crise política e econômica brasileira, surge uma geração de poetas comprometidos com uma maior liberdade de expressão: a poesia deixa de ser um artefato erudito e passa a ser uma curtição existencial[4]. Os poetas utilizam técnicas de composição experimentais, retomam a oralidade das frases, a descrição prosaica e irônica do cotidiano, voltam ao discurso linear e ao humor, usam uma linguagem politicamente mais agressiva, gírias, palavrões e referências sexuais explícitas:
Diário de bagos
quando você se abaixa pra pegar um disco
com seu vestido curtinho
delicioso
aparece a calcinha no rego moreno da bunda
curto muito
meu olhar derrete de prazer
não há como enganar a evidência
desculpe o volume do lado esquerdo da calça sem cueca
com tesão não se trinca
antes todos entendessem e se dedicassem de corpo e
cama
obs: meu pau esquecidamente duro
cai no amolecimento
(Charles)
O poema acima de Charles, além de conter uma descrição de um momento banal de excitação sexual, à primeira vista quer exclusivamente chocar o leitor. Mas se contextualizado, revela-se como um exemplo da desrepressão que é procurada no plano político e que terá repercussões espontâneas na arte — a manifestação política acontece quase sempre vinculada ao campo da experiência e do campo particular do poeta, o que nega o engajamento social explícito da poesia independente feita na década de 70. Nessa chamada literatura do lixo, alguns autores revalorizam o palavrão e descrevem as relações eróticas com um natural realismo, despreocupados se é de bom tom ou não, ou se irá desagradar.[5]
Na década de 60, as palavras de ordem dentro da cena cultural brasileira eram revolução e mobilização. O cinema e a música atingiam grandes quantidades de uma parcela do público que contestava o regime militar. Já o período pós-68, sob o jugo de uma censura política violenta, fará com que os artistas, especialmente os poetas, encontrem espaços alternativos e independentes para produzirem e divulgarem suas obras.
No entanto, o fortalecimento da produção poética no começo da década de 70 não poderia ser classificado necessariamente como movimento, porque o que há, na verdade, é uma efervescência de poetas e poemas circulando por bares, filas de cinema e teatro, praças e demais locais públicos rotineiramente não associados à poesia e à literatura
O riso amarelo do medo
Brandindo um espadim
do melhor aço de Toledo
ele irrompeu pela Academia
Cabeças rolam por toda parte
é preciso defender o pão de nossos filhos
respeitar a autoridade
O atualíssimo evangelho dos discursos
diz que um deus nos fez desiguais
(Francisco alvim)
O riso amarelo é uma indicação do estado de fingimento forçado da alegria, e a espada representa o espírito de luta, seja contra a Academia, símbolo da tradição canônica e tradicional da poesia, que abomina os versos chulos desses poetas independentes, seja contra a censura instaurada pelos militares. O poeta diz que se deve respeitar a autoridade e defender o pão dos filhos, ou seja, vender os livrinhos mimeografados sem que a censura desconfie da revolução poética que está se armando. A palavra “deus” grafada em minúscula confirma a descrença no poder superior, que se junta à afirmação da desigualdade explicitada no final do poema, proclamada por discursos insatisfeitos, que eclodiram após o denominado vazio cultural do período do AI-5.
O disco é preto, mas o vinil pode ser de várias cores
A poesia feita na década de 70, denominada marginal, serviu-se de diversas formas de comunicação com um tipo de público jovem identificado com a cultura de massa, como as histórias em quadrinhos, com o rock ou o movimento tropicalista, com o cinema brasileiro, com maneiras alternativas de vida influenciadas pelo vegetarianismo ou pela alimentação macrobiótica, com o uso de drogas, com as práticas do amor livre, e, sobretudo, pelo anseio de liberdade. Os poemas apareciam e eram vendidos ou distribuídos através de folhetos mimeografados, pôsteres, cartões-postais, cartazes, ou publicados em revistas undreground como Navilouca, Almanaque Biotônico Vitalidade, ou o pornô Jornal Dobrabil. O livro, na maioria das vezes impresso de maneira rústica ou até mesmo manuscrito, abandona os padrões comerciais das editoras para assumir uma feição orgânica e criativa. Escrita numa linguagem informal e ‘desburocratizada’, essa produção acabava justamente por fragilizar os limites entre a vida do artista e sua obra.[7]
Pode-se afirmar que há, nessa poesia marginal, uma profunda ligação entre a experiência poético-intelectual com a prática textual. É uma poesia dos “tempos modernos”, fragmentada, alegórica, que absorve a literatura e a subliteratura, o flagrante do jornal, a escrita publicitária, o insólito do cotidiano:
(...) senhoras e senhores eu daria
os rins
minha gravata borboleta de cetim
duas lágrimas abóbodas uma festa
interminável
de rum e cocacola
em troca
apenas de você
pessoa amanhecer
me demolindo
tão desrespeitosamente
como um hino
atravessando entre os dentes
de um ninho ardente e todo
ensolarado de metralhadoras.
(Leomar Fróes)
Nos poemas feitos sob o clima político do sufoco e da censura, a ênfase na experiência pessoal ilustra a escolha do espaço preferencial para a crítica social: o EU. Recusa-se a arte engaja, de tese, para se voltar para o conteúdo da experiência existencial, para os poemas escritos em primeira pessoa, que rompem com o silêncio institucionalizado e legitimado pelas leis federais. A crítica social passa assim do plano mais abstrato das idéias para o interior da vivência cotidiana:
Grupo escolar
Sonhei com um general de ombros largos
que fedia
e que no sonho me apontava a poesia
enquanto um pássaro pensava suas penas
e já sem resistência resistia.
O general acordou e eu que sonhava
face a face deslizei à dura via
vi seus olhos que tremiam, ombros largos,
vi seu queixo modelado a esquadria
vi que o tempo galopando evaporava
(deu pra ver qual a sua dinastia)
mas em tempo fixei no firmamento
esta imagem que rebenta em ponta fria:
poesia, esta química perversa,
este arco que desvela e me repõe
nestes tempos de alquimia.
(Antonio Carlos de Brito)
O título do poema sugere o aprendizado, o início de um conhecimento livresco, mas os versos apontam, metalinguisticamente, para o lado onírico do fazer poético, ou melhor, para a experiência com os sentimentos, as reflexões e os devaneios . A imagem do general que fede é uma alusão metonímica grotesca à ditadura; no entanto, ele lhe aponta a poesia como uma forma de evasão da realidade opressiva. A voz poética é aquele pássaro, que alça vôos, e que teima em resistir, que teima em sonhar com dias livres. O general vai-se tornando cada vez mais amedrontador, enquanto o poeta fixa no firmamento a poesia, a sua única forma de resistência no alquímico tempo da ditadura militar, tempo de transformações e revoluções constantes.
A dicção poética desses autores independentes estrutura-se a partir do abandono do princípio intelectual, em detrimento da retomada da subjetividade lírica, do poema-síntese, do recorte do instante, do flash, do sentimento trágico do cotidiano, o que consequentemente desierarquiza o tom nobre e solene da poesia, tornando-a, por assim dizer, “antiliterária”:
Sobre a verdura
os insetos voavam estranhamente
sobre a verdura e a barraca de peixe
permanecia um momento intocada
em seus reflexos de luz e de prata
e você a ver navios percorria
o tormentoso labirinto da feira
se imaginava um conquistador espanhol
que se perdeu no rumo das Índias
e construiu um castelo à beira-mar
vendedoras vendedoras ficções sonoras
verdes vegetais como se houvesse
uma deusa sonhadora em cada alface
e os dragões cuspissem fogo em silêncio
emaranhados numa réstia de cebola.
(Geraldo Eduardo Carneiro)
A resistência contracultural da poesia marginal define-se pelo trabalho coloquial e lúdico com a linguagem literária, mas também pelo culto do instante e do ‘aqui e agora’ do poeta, por seu trabalho com a realidade imediata, com o cotidiano próximo, com o gesto, com o registro bruto do momento[8]. O culto do instante faz com que o poema, muitas vezes, seja a anotação imediata da ação, e não da reflexão[9]: “obcecada pelas imagens comuns e surpreendentes do cotidiano, a nova crítica, entretanto, não produz juízos, mas visões. E, dentro desse quadro, nada importa, ou: qualquer coisa importa”.[10]
Os poemas-diário tornam-se comuns nessa época, pois neles os autores registrarão sua vivência de maneira testemunhal e subjetiva, como no trecho abaixo, retirado do poema “D´Engenho de Dentro”, de Torquato Neto, que cometeria suicídio em 1972. Além da datação típica de um texto que pretende registrar um instante exato, nota-se um estado de desespero do poeta captado na medida em que o poema é escrito, e a repetição da expressão impositiva, de ordem, “é preciso”, como uma forma de ordenação do caos existencial experimentado, além da imagem metafórica dos urubus — censura, ditadura, repressão política? —, seres que se alimentariam dos restos do poeta, quando a degradação por fim se consumar:
20/10
É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.
(Torquato Neto)
Mais adiante veremos como a própria organizadora da antologia 26 poetas hoje tenta associar a produção dita marginal a um desdobramento das conquistas modernistas da geração de 1922. Por ora, cabe ressaltar como a linguagem dessa poesia frequentemente reveste-se também de ironia e humor, ambos com um forte sentido crítico, além de mesclar vários estilos e recuperar a expressão verbal, em oposição aos experimentalismos visuais das poéticas de vanguarda concretistas, de feição mais cerebral e acadêmica, que antecederam a poesia marginal. Os leitores que consumiam tal poesia independente, com uma formação mais musical do que literária, assim como muitos dos poetas, se identificam com o estilo bem-humorado, ardiloso e instantâneo dessa produção:
***
tenho vontade de ver
as coisas como realmente são
mas só consigo ver
através de meus olhos
(Luis Olavo Fontes)
MEU AMOR DE SOSLAIO
Faz tanto calor no Rio de Janeiro
que é bom sentir essa neve
partir de seu olhar.
(Luis Olavo Fontes)
&
O fio do sonho é apenas um cabelo.
Mas se ele pinta na cabeça
é bom deixá-lo crescer.
(Eudoro Augusto)
A COMADRE SECA
Chegou de manhã bem cedo
e já são três horas. Foda-se
a delicadeza. Acho que vou sair.
(Eudoro Augusto)
Nota-se também, em alguns dos poemas, uma sucessão de imagens e metáforas que se poderia denominar esquizofrênica, vertiginosa. “Se as vanguardas protestaram com um grito ou um silêncio, hoje a rebelião jovem protesta com um levantar de ombros. Não mais a metáfora: a justaposição que cria um tipo de neutralidade entre os elementos do poema”[11], escreveu Heloisa Buarque de Hollanda, a organizadora de 26 poetas hoje, em 1978.
Como a proposta da poesia marginal é construir uma arte que esteja no nível da vida prática, que seja tão natural como o corpo, a poesia afigura-se, vez por outra, como algo mais para ser vivido do que composto, algo para ser sentido, e que reflita o instante íntimo e o lado visionário do poeta:
Praça da república dos meus sonhos
A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem
de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
na Tarde de esterco
Praça da República dos meus Sonhos
onde tudo se fez febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas
onde García Lorca espera seu dentista
onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas
privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da república dos meus
Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa
(Roberto Piva)
Roberto Piva recria oniricamente, ou seja, através de imagens ligadas ao sonho e ao devaneio, a balbúrdia de uma praça no centro da cidade. As imagens são narcotizadas — se poderia dizer até construídas sob efeito de drogas — como sugere a menção à morfina, e ilustram uma constante e explícita preferência por uma sexualidade atormentada (testículos espetados, lábios coagulando, bundas glabras, jovens pederastas, putas), aliada a indícios religiosos propositalmente desfigurados (pombas crucificadas, Delirium Tremens diante do Paraíso, anjos cobertos de cal). Piva utiliza referências literárias canônicas, como a estátua do poeta ultra-romântico Álvares de Azevedo, cujos poemas oscilavam entre as temáticas do amor e da morte, e o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, que trata da questão da traição; três temas incômodos e, por isso mesmo, sempre presentes na literatura. Mas também cita Rimbaud, poeta francês precoce, ícone do simbolismo francês, e Garcia Lorca, dramaturgo e poeta espanhol, assassinado em 1936 por nacionalistas, ambos homossexuais e, apesar de serem canônicos hoje, considerados malditos e marginais por muito tempo.
A rotação está me deixando tonto: cuidado, não encoste a mão no disco
O leitor se pergunta se essa mistura de esterco, mictório, privadas e sangue poderia ser chamada de poesia, ou se seria uma maneira livre e pornográfica de satirizar os costumes. O crítico Affonso Romano de Sant'Anna assinala que, com a poesia marginal, o texto poético “saiu da alienação hippie e esotérica da música e achou seu comprometimento com a linguagem. Não só na liberação da expressão prosaica e pornográfica, mas na descompressão formal, em oposição ao período anterior das vanguardas”[12]. Ou seja, assim como muitos críticos, Sant´anna vê a poesia independente da década de 70 como um fenômeno típico daquele período, possível dentro de um contexto específico, ligado às mutações políticas e sociais decorrentes de um vazio cultural promovido pelo AI-5:
A geração de 70 foi pós-68. Foi pop e foi contracultural. De esquerda, mas popificada. Dela saiu a chamada poesia marginal. Marginal no sentido de marginal aos sistemas vigentes. Sistema editorial, sistema do cânone, sistema da vanguarda concreta. Os poetas e artistas dos anos 70 eram filhos espirituais da geração 68, mas com ela já não se confundiam em termos de experiência vivida, apesar da identidade de valores.[13]
A poesia de mimeógrafo afigura-se como o reflexo de um momento de resistência artística, já que, entre 1969 e
***
Um reputado economista afirma
que assim como veio
a ditadura vai.
Escuto maravilhado.
(Roberto Schwarz)
REVOLUÇÃO
Antes da revolução eu era professor
Com ela veio a demissão da Universidade
Passei a cobrar posições, de mim e dos outros
(meus pais eram marxistas)
Melhorei nisso —
hoje já não me maltrato
nem a ninguém
(Francisco Alvim)
O tom irônico e desesperançoso do poema de Schwarz demonstra uma perspectiva apática e, paradoxalmente, contestadora, pois se tanto incomodou, a ditadura é também mais um fato corriqueiro, como qualquer outro, dentro da política brasileira. O poeta fica maravilhado diante da constatação do óbvio, feita devidamente por um reputado economista: o regime militar, como qualquer realização humana, teria sua ascensão e sua decadência. A palavra “maravilhado”, ambiguamente, significa tanto um estado de êxtase pelo fim próximo da ditadura militar, como um estado de paralisia, dado o absurdo da situação política e econômica nacional. Da mesma maneira, o poema de Alvim mostra a falência dos movimentos de esquerda e um desencanto frente ao engajamento político, marcante na arte panfletária da década de 60, mas abandonado pelos marginais.
A poesia realizada nos anos 70 teve o mérito de voltar o foco do fazer poético, quase que exclusivamente direcionado para a canção popular na década de 60, para o texto literário. A crítica e a academia já haviam escolhido poetas como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, junto com os concretistas, como seus modelos estéticos consagrados; essa geração de poetas vivia então um impasse criativo gerado por uma sensação de emparedamento: aparentemente, a poesia brasileira já havia sido feita. Tal fator acentua, de forma bem evidente, a marginalidade da própria figura do poeta dessa geração, frequentemente abordada nos textos:
***
o poeta que há em mim
não é como o escrivão que há em ti
funcionário autárquico
o profeta que há em mim
não é como a cartomante que há em ti
cigana fulana
o panfleta que há em mim
não é como o jornalista que há em ti
matéria paga
o pateta que há em mim
não é como o esteta que há em ti
cana a la kant
o poeta que há em mim
é como o vôo no homem pressentido
(Chacal)
Inicialmente, Chacal contrapõe sua imagem de poeta a um escrivão, funcionário autárquico — um embate entre o fazedor de versos, que sente e vive o que escreve, e o mero escrevinhador de linhas; entre aquele que se agrupa em “coletivos poéticos” em contato direto com o leitor, junto a uma geração marcada pela necessidade de liberdade na literatura, e o intelectual auto-suficiente e distanciado do público. Enquanto o poeta marginal é o profeta, aquele que sugere como poderá ser a poesia futura, o panfleta, aquele que defende explicitamente seus ideais libertários, o pateta, aquele poeta debochado que adora se fazer de bobo, o outro poeta é a cigana fajuta, o jornalista vendido, o intelectual excessivamente preocupado com a estética do texto. O vôo no homem pressentido liga-se ao que Ítalo Moriconi escreve sobre a poesia marginal: “se a poesia dos anos 70 não representou o ‘progresso’ da poesia brasileira, certamente ela representou o início de uma recuperação de terreno e de auto-estima, deixando para trás a sensação de ‘emparedamento’ ’’.[14]
A agulha voltou à posição normal: vire o vinil
Depois de tantos exemplos e diversas considerações sobre essa geração de poetas tão peculiar, que produz poemas irônicos, humorísticos, críticos, cáusticos e, muitas vezes, “sujos”, é interessante refletirmos sobre os conceitos que norteiam o que viria a ser considerado como poesia marginal.
Dentro do meio dos próprios poetas ditos marginais não há consenso. Inclusive, tal rótulo chega a incomodar alguns. Vejamos algumas opiniões esclarecedoras — ou pelo menos geradoras de mais questionamentos:
“Acho inviável, por prematura, uma avaliação global desta produção poética independente; há de tudo — a corrente dominante de cultores do epigrama e da paródia, e também os líricos, os engajados, os apaixonados, os cósmicos, os metafísicos, os concreto-baianos, os primitivistas, os neoacadêmicos, os regionais das mais diversas regiões, os obscenos e exibicionistas, os esquizóides e tímidos, e por aí afora.” (Cláudio Willer)
“Pra mim, esse rótulo hoje representa uma técnica de marketing — um jeito como qualquer outro, que nós, o excedente de poetas sem lugar no mercadão das editoras, encontramos para nos diferenciar daqueles que já encontraram lugar no mercado. Um ‘slogan’ que nos torna mais simpáticos e identificados com um público potencial — jovem, que também se pensa marginal, contestador, etc.” (Maria Rita Kehl)
“Todo poeta é marginal desde que foi expulso da República de Platão.” (Roberto Piva)
“Contesto o caráter marginal da produção artística dos anos setenta. Essa produção é marginal circunstancialmente. Não é marginal na acepção de trazer em si, em sua essência, elementos que contrariem em termos de sintaxe, em termos de estrutura a ‘arte dominante’.” (Régis Bonvincino)
“(...) não consigo dissociar da palavra marginal o seu complemento nominal: marginal é sempre em relação a alguma coisa; um marginal de rua o é em relação ao sistema, no caso da literatura, esta o é em relação ao mercado editorial tradicional.” (Leila Miccolis)
“Se pensarmos em termos do circuito de produção e distribuição (comercialização) dentro do qual esta poesia está inserida, o termo marginal tem aí um significado bastante preciso.” (Carlos Alberto Messeder Pereira)
“A década de 70 não só morreu como está mal enterrada. E autópsias, não esqueçam, só se faz quando se tem dúvida da causa mortis. No caso da poesia, pelo que me perguntam, a dúvida é da causa vitae. Vocês, que são teóricos, que se entendam. Trinta ensaios não valem um bom verso.” (Ulisses Tavares)[15]
Glauco Mattoso, em O que é poesia marginal?, questiona se tais poetas seriam marginais por convicção, ou se o seriam por falta de opção. Mas acentua que marginal deixa de significar algo pejorativo e passa a indicar manifestações mais ligadas à chamada contracultura, por não se enquadrarem num padrão estabelecido. Portanto, toda obra e autor que não se enquadram nos padrões usuais de criação, apresentação ou veiculação de uma obra artística, e todos os artistas alternativos e independentes em relação à grande imprensa podem ser considerados marginais.
A produção poética da década de 70, considerada marginal, funda-se então sobre fatores:
a) culturais, pois os autores assumem uma postura contestatória, ou tematizam a contracultura;
b) comerciais, pois os poetas são desconhecidos do grande público, produzem e veiculam por conta própria suas obras, realizadas muitas vezes com recursos artesanais, mas fora do mercado editorial;
c) estéticos, pois os poetas praticam estilos de linguagem convencionalmente pouco literários;
d) políticos, pois ainda que não sejam totalmente engajados ou panfletários, os textos inserem-se num contexto de censura e ditadura.
Lado B: o lado alternativo
O que chama atenção na geração-mimeógrafo é uma certa atitude antiintelectual e antiliterária, através da recusa ou da desconstrução de modelos estéticos rigorosos. Um dos elementos principais da geração 70 era o coloquial desleixado, chegado à gíria da época, ao chulo, a uma forma de escrever isenta de regras gramaticais, o que ressalta uma indissolubilidade da relação entre a poesia marginal e um conceito de prática textual como escrita circunstancial. A circunstância histórica, cotidiana ou pessoal oferecem o tema e o modelo para o poema. Dentro da predominância do poema curto, “o verso de circunstância projeta-se como anotação casual do instante vivido, simulacro do motor do acaso na banalidade das horas”.[16] A poesia representa, portanto, a vivência imediata e caótica do poeta, tanto em relação ao seu cotidiano prosaico quanto às suas reflexões, medos e anseios:
(...) EQUILIBRADO E RADICAL. In e Yang. Prosseguir. Conservadorismo que abomina Nelson Rodrigues e preserva a mesma face perversa: Nelson Rodrigues pelo menos é cínico e fantástico, fascinistro. idem com killing em nome de coisas reacionárias: rio pornográfico. o fascismo está além mais próximo e aquém, num rio sem margens, num rio de cagaço. não tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas sofridas por um velho comunista de 70 anos que leva a sério um sonho frustrado de tomada do poder. Não tenho a virtude mesquinha de acreditar nas torturas: os gênios se castram por si. velho. comunista. e mentiroso. nada de novo pode surgir daí. e se por um texto bastante ambíguo eu for chamado pra depor? (...)
(Wally Sailormoon)
O poeta, hoje conhecido como Wally Salomão, faz trocadilhos a partir da mistura de referências orientais pop com palavras inglesas — EQUILIBRADO E RADICAL. In e Yang — cita e elogia Nelson Rodrigues, fascinistro, identificando-se com esse autor considerado por muito tempo como maldito, cria imagens alucinatórias sobre o Rio, critica a utopia das esquerdas e demonstra, cinicamente, seu medo da censura e da ditadura. Também maldito é o poeta citado por Isabel Câmara, Charles Baudelaire, para criar um poema que trata da maldição do amor e, debochadamente, da maldição do próprio poeta marginal:
***
Quem diante do amor
Ousa falar do Inferno?
Quem diante do Inferno
Ousa falar do Amor?
Ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama de Baudelaire
(Isabel Câmara)
Já citamos muito a contracultura, mas é interessante demonstrar como essa poética alternativa e independente é marcada pelo clima de desbunde, pós-AI-5. Como dito anteriormente, muitos desses poetas rejeitam as normas comportamentais e o sistema social imposto pelo regime ditatorial através de valores alternativos e não convencionais, como a gíria, o rock, o uso de drogas, o comportamento libertino e a liberação da sexualidade:
Olho pra pílula e penso o que contém além do excipiente químico necessário pra torná-la pílula; quais drogas entram na composição para fazê-la una, em suspensão, droga?
Será para os males do corpo ou do espírito?
Coramina ou adrenalina?
Quem sabe é contra o enjôo das coisas novas transformadas em velhas para serem mais digeríveis? E, às vezes é contra a indigestão causada pelos sapos que nos põem à mesa. Contra a proliferação de nossos entes mortais à burrice, à alienação, ao colonialismo estúpido. (...)
(Bernardo Vilhena)
CRASH CARDÍACO
overdose
pentelhos enroscadinhos na borda da privada
de fora
a mulher batendo sem saber que porta abrir
ou que veia tomar
(Charles)
SEQUÊNCIAS
nos encontramos no elevador
depois nos beijamos
descobrimos então que não nos conhecíamos
que éramos do mesmo sexo que
não podíamos nos beijar na boca
não dormi nada essa noite
é dia tenho um almoço curto
demais o verão com seu sovaco peludo
cheirando a ovo
um mistério
(Luiz Olavo Fontes)
Na prosa poética de Vilhena, o desbunde liga-se às reflexões sobre os estados excitantes e entorpecedores de alguma substância provavelmente anfetamínica. Mas o uso da droga não evidencia um estado de recusa de participação política atuante, mas, sim, uma posição individualista, já que o entorpecente combateria a indigestão causada pelos sapos postos à mesa, pelos acontecimentos sociais ligados ao clima de opressão, caracterizando uma postura contracultural. No texto de Charles, temos a descrição precisa do momento de uma parada cardíaca no banheiro, provocada por uma overdose, e do uso corriqueiro de drogas injetáveis. Em “Seqüências”, o poeta demonstra sua confusão mental e seu desconforto gerados pela experiência homossexual inesperada.
Mas é interessante ressaltar que essa revolução comportamental não é um atributo exclusivo dos poetas marginais, e muitas das características de sua poética, como o informalismo, o coloquialismo, o uso de gírias e a ironia exacerbada podem ser vistas como uma continuidade, por exemplo, da arte feita na década de 60, como o movimento Tropicalista na música, ou da geração de poetas beatnicks norte-americana, na década de 50. Tal literatura produzida na década de 70, considerada por alguns críticos como suja, do lixo, como “lixeratura”, deve sempre ser entendida dentro de um contexto muito específico:
As pessoas responsáveis por sua produção não necessariamente se pensavam enquanto “produtores literários” e talvez se sentissem mais fascinados pela facilidade com que, valendo-se de um mimeógrafo, era possível reproduzir em grande número e a baixo custo o seu próprio trabalho e o de amigos.[17]
O chiado não deixa haver silêncio entre uma música e outra
Para apreendermos definitivamente o que é a antologia 26 poetas hoje, e qual é a proposta de sua publicação, é fundamental que nos voltemos para o recorte realizado pela antologista, Heloisa Buarque de Hollanda. Professora universitária ligada à área dos chamados estudos culturais, voltados para a análise das artes em relação ao contexto e à sociedade, foi uma das grandes entusiastas da chamada poesia marginal; inclusive tinha amizade com a maioria dos poetas da coletânea, e participava ativamente do surto poético ocorrido no Rio de Janeiro em meados da década de 70:
“É importante olhar para a literatura como discurso cultural, sem abrir mão da dimensão estética da expressão literária que é fundamental, mas que não se esgota em si própria. Ela não é apenas um gozo, ela é mais que isso. Ela pode ser um tiro. É isso que eu gostaria que ela pudesse ser.”
Na mesma entrevista, Heloisa Buarque declara que, mesmo que na antologia houvesse duas gerações de poetas separadas por vinte anos, sentia-se como integrante do que foi retratado, pois aquela era a sua geração. Afirma que sempre esteve ligada aos sintomas da possibilidade de participação política porque, como professora universitária, viveu um momento de grande produção cultural e intelectual no início da ditadura. A universidade era um dos meios mais intrépidos de contestação ao regime que, de repente, se viu silenciada pela censura instituída pelo AI-5:
“(...) Desde esse momento em diante, então, a universidade para mim significou participação, eu fui formada por aquele momento fantástico de
Heloisa Buarque recebe então a proposta de uma editora espanhola que se instalava no Brasil para publicar uma antologia sobre a nova poesia feita no país. A idéia de publicar em livro a poesia marginal, por uma grande editora, era um disparate, já que, conforme um dos únicos consensos entre os críticos, um dos pilares da marginalidade dessa poética é justamente a independência da realização, produção e distribuição dos livros. Mas a antologista preocupava-se, sobretudo, com o que ela denomina de intervenção política desses poetas, e por isso, depois de publicada, a coletânea ainda gerou uma tese de doutorado:
“A tese foi isso, uma indagação sobre que possibilidade ainda havia de intervenção. As coisas que pareciam marcadas pela apatia, falava-se em vazio cultural, que ninguém participava. Aí lá fui eu, com a lente, dizendo “pera aí, não é bem assim, temos agora outras formas de participação.” De lá até aqui eu não fiz outra coisa, a não ser procurar a possibilidade de uma imaginação política, de uma ação política. A antologia 26 Poetas Hoje era isso, era mostrar que aquela geração acusada de maconheira e boba alegre na verdade trazia uma nova forma de participação”.[18]
À época da publicação de 26 poetas hoje, no final de 1975, Heloisa Buarque escreveu um prefácio ao livro. Mais de vinte anos depois, em 1998, por ocasião da republicação da antologia, ao invés de reescrever a introdução, decide escrever um posfácio. Ambos são esclarecedores, na medida em que ela reflete sobre a poesia independente da década de 70 e justifica seus critérios de escolha dos poetas e dos poemas incluídos no livro, inclusive revisando na atualidade o que ela própria afirmara mais de vinte anos atrás.
Acentua que, frente ao bloqueio sistemático das grandes editoras, surge um circuito paralelo de produção e distribuição independente de poesia que conquista um público jovem, diferente do antigo leitor de poesia, que não se sente mais na obrigação de ser um entendido. A participação do autor na produção e vendagem dos livros, na maioria das vezes mimeografados e artesanais, cria um relacionamento mais afetiva com a obra. “A presença de uma linguagem informal, à primeira vista fácil, leve e engraçada e que fala da experiência vivida contribui ainda para encurtar a distância que separa o poeta do leitor”.[19] A literatura conquistava um público, em geral avesso à leitura, e recuperava sua condição de mobilizadora cultural, lugar preenchido, durante a década de 60, mais pelo cinema, pelo teatro e pela MPB.
Ocorre uma “desierarquização do espaço nobre da poesia”, tanto no tocante ao objeto-livro, agora simples e artesanal, quanto no plano do discurso, devido à “incorporação do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso acadêmico”.[20] A poeta Leila Miccolis afirma que, independente do valor ou da qualidade de tais obras, mais importante que a ação revolucionária do texto, era a circulação dos livros e a deselitização poética:
Toda a movimentação marginal, alternativa, independente, não-alinhada ou qualquer outro nome que se dê a esta poesia, muitas vezes caótica, tem como principal mérito não propriamente o seu conteúdo, mas a subversão do processo editorial convencional, lançando o livro fora das livrarias, nas ruas, nos teatros, shows, bares e até fábricas. [21]
A agulha percorre os sulcos: sem agulha, sem som
A professora Heloisa Buarque relaciona a produção independente da geração-mimeógrafo ao movimento modernista de 1922, marcado pelo espírito iconoclasta de destruição dos cânones e pela anarquia. “Se em 22 o coloquial foi radicalizado na forma do poema-piada de efeito satírico, hoje se mostra irônico, ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente de comprometimentos com um programa estabelecido”[22], escreve a professora no prefácio, por ocasião da publicação da antologia na década de 70. Isso quer dizer que os marginais negam qualquer filiação a correntes estéticas e a movimentos literários com regras fixas de composição poética, mas os poemas-piada continuam a existir para retratar o momento vivido pelo poeta:
COLAPSO CONCRETO
vivo agora uma agonia:
quando ando nas calçadas de copacabana
penso sempre que vai cair um troço na minha cabeça
DRAMA FAMILIAR
mais um berro histérico
e mato um
(Charles)
REFLEXO CONDICIONADO
pense rápido:
Produto Interno Bruto
ou
brutal produto interno
?
(Antônio Carlos de Brito)
LÚCIFER
um dia todos os peixes
puseram a cabeça para fora da lagoa
e me olharam
(Luis Olavo Fontes)
Charles brinca com a ambigüidade da palavra concreto para aludir a uma situação de opressão política: o troço, ou o pedaço de algum prédio que poderá lhe cair por cima, não é menos amedrontador que a ditadura, sempre à espreita, à cata de subversivos. O drama familiar é sugerido, de maneira debochada, nos gritos histéricos das brigas de uma “família normal”, tipicamente burguesa. Fontes cria uma divertida e paranóica imagem do diabo, enquanto o poeta Cacaso sugere a brutalidade do desastre econômico causado pelo regime militar, e a alienação por ele promovida, através do título “Reflexo condicionado”: os cidadãos estão condicionados, adestrados, a não refletir, por isso o “pense rápido” faz com que ele exprima seu sentimento crítico verdadeiro.
Como foi ressaltado anteriormente, na poesia marginal, segundo a antologista, o flash cotidiano e o corriqueiro vêm à tona no poema quase em estado bruto. Abandona-se a expressão intelectualizada do texto poético, e a “freqüência de metáforas de grande abstração convive com a agressão verbal e moral do palavrão e da pornografia”:
ULISSES
A esperança posta num bonito salário
corações veteranos
Este vale de lágrimas. Estes píncaros de merda.
JURA
Vou me apegar muito a você
vou ser infeliz
vou lhe chatear
(Roberto Schwarz)
Em ambos os poemas, Schwarz sintetiza seu estado desagradável de vivência de forma rude, violenta e, ao mesmo tempo, irônica. Ulisses, herói grego clássico, é transformado num herói medíocre, cujos valores burgueses de um bonito salário como objetivo de vida encontram-se envoltos em sofrimento e montes de fezes. O título “Jura” encobre as juras de amor que antecedem uma vida monótona, de dependência afetiva e frustração, descrita no poema.
Heloisa Buarque diz que a dicção poética coloquial — ou o chamado coloquial desleixado, como mencionado anteriormente — orientou a escolha do conjunto que compõe 26 poetas hoje, por isso a menção à dívida da poesia marginal com o movimento de 22 que, através de uma postura antiacademicista, pretendia, dentre outros aspectos, uma aproximação da linguagem literária com a linguagem falada. No entanto, no posfácio escrito na década de 90, tal reapropriação é relativizada, e a poesia independente da década de 70 é caracterizada como um “cluster político-literário”, ou seja, como um agrupamento de textos e poetas contextualizados, unidos “por uma aguda sensibilidade para referir — com maior ou menor lucidez, com maior ou menor destreza literária — o dia-a-dia do momento político que viviam”.[23] Além do mais, a retomada do coloquialismo por parte dos modernistas foi intencional e premeditada, enquanto que, para os marginais, teria sido algo espontâneo e inconsciente.
A antologista ressalta mais uma vez a recusa dessa geração em pertencer a qualquer “movimento” literário, nem explicitar qualquer projeto estético comportamental e social. A despeito de ser uma poesia aparentemente light e bem-humorada, essa poesia “não-literária” refletia o sofrimento de uma “geração traumatizada pelos limites impostos a sua experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão e informação através da censura e do estado de exceção institucional no qual o país se encontrava”.[24] Essas idéias são muito bem ilustradas pelo “poema-momento” abaixo, de Isabel Câmara, tanto no tocante à datação precisa e significativa, quanto na cotidianidade poetizada e na retratação do circunstancial:
DEZENOVE DO OITO DE MIL NOVECENTOS E SETENTA E QUATRO
Não entendo nada desta janela fechada
que me aperta a culpa
Doer não dói mais,
nem sangra —
Consegui o que queria:
ser despedida, ficar perdida
falida & alone
olhando o papel da Comédia.
Sei que me chamo Bel
Mel de paixão
Sugado da boca louca
de onde sangra o coração
e chora a hora
do leito vazio
da falta de peito
do jeito do beijo
fácil, difícil, sutil.
A verdade é que vivo a mil
Sonhando a morte em azul-anil
(Isabel Câmara)
Quanto mais músicas no disco, mais fácil arranhar
Além do caráter de improviso e de precariedade que marcou as produções marginais da década de 70, há uma forte tendência à construção de uma poesia discursiva e referencial — textos em prosa bastante irônicos — na qual se tematizam questões estreitamente relacionadas ao cotidiano dos produtores, configurando um desprezo pelos padrões estéticos consagrados e de prestígio acadêmico. Depois do exemplo de Torquato Neto visto anteriormente, um trecho do poema-diário de outra autora, também suicida, que se tornou bastante conhecida na atualidade, Ana Cristina César:
ARPEJOS
Acordei com uma coceira terrível no hímen. Sentei no bidê com um espelhinho e examinei minuciosamente o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei uma pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura. (...)
(Ana Cristina César)
A ironia do poema em prosa de Ana Cristina reside na exposição feminina e desinibida de sua intimidade, sugerida pelo título, “Arpejos”, que significa tocar o máximo número de notas musicais numa sequência ou num curto intervalo de tempo — o máximo de sentimentos nas linhas e entrelinhas de um pequeno texto poético/diário/caderno de anotações íntimas.
Mais uma vez é importante evocar o espírito da contracultura como referencial para o conceito de poeta marginal, devido ao teor de crítica, de contestação da poesia da geração 70, ou da expressão de um mal-estar diante da ordem estabelecida. A oposição frente aos valores da ideologia dominante, e a descrença na sociedade são enfatizadas na dimensão cotidiana da vida social.[25] Antitecnicismo, através da produção artesanal dos livros, politização do cotidiano, através da descrição bruta das vivências sociais subjetivas, e antiintelectualismo, através do uso de uma linguagem comum e “anti-poética” — esses são alguns dos principais elementos contraculturais dessa poética independente:
DOS OLHOS DO NÃO
se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle
não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas no ar
se lhes derem os códigos e os gestos as modas
não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios
se lhes derem a esperança o progresso a palavra
não acreditem na imposta realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo
aprendam a olhar atrás do espelho
onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construiu a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fossem cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio.
(Afonso Henriques Neto)
A agulha retorna ao seu lugar novamente, o disco está imóvel
A ironia, como acentuado, é um dos traços mais fortes da poesia marginal da década de 70, talvez pelo fato de ser perigoso se dizer explicitamente o que se sente em relação ao momento político, talvez porque reflita um processo maior de criatividade na escrita, ou simplesmente por curtição dos poetas.
Junto dessa ironia, encontra-se diversas vezes um traço parodístico nos textos dessa safra poética. Heloisa Buarque acentua que, mais do que o julgamento sobre a sociedade, transparece nos poemas independentes da geração mimeógrafo a negação instintiva e sentimental de sua ordem. Nada mais adequado a tal negação do que o recurso intertextual da paródia.
A paródia consiste na desconstrução das idéias ou do sentido de um texto retomado, sempre com um intuito crítico, e pode ou não estar ligada à produção de humor; no entanto, sempre preserva um certo teor de deboche ou de comicidade. O poema abaixo, de Chacal, ilustra a subversão empreendida pela paródia:
PAPO DE ÍNDIO
Veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
Aí êles falaram e nós fechamu a cara
depois êles arepitirum e nós fechamu o corpo
Aí êles insistiram e nós comemu êles.
(Chacal)
Primeiramente, desconstrói-se o discurso histórico canônico através da subversão do ponto de vista tradicional sobre o início da colonização brasileira. Geralmente, têm-se a visão do homem branco sobre o indígena, a do conquistador sobre o conquistado, a do vencedor sobre o vencido; no poema, o papo de índio, comumente associado a algo vazio, sem sentido ou valor, é colocado como a fala central e reveladora de sua atitude diante do colonizador. Através do registro bruto de um português rudimentar, que representa a fala do nativo, o próprio índio nos conta como os homens de saia preta, os navegantes europeus, tentam convencê-los a lhes dar açúcar. Mas sua insistência incomoda tanto os índios, que os “selvagens” são obrigados a recorrer à antropofagia, o que os torna, assim, os vencedores.
A antropofagia pode também ser entendida como uma alusão à estética apregoada por um dos porta-vozes do movimento modernista de 1922, Oswald de Andrade, segundo quem a literatura nacional devia-se valer de todas as referências artísticas e culturais estrangeiras, comê-las, e transformá-las numa arte genuinamente nativa.
Da mesma forma, os escritos de Antonio Carlos Brito, o Cacaso, contém doses fartas de ironia e paródia, como no poema abaixo:
E COM VOCÊS A MODERNIDADE
Meu verso é profundamente romântico
Choram cavaquinhos luares se derramam e vai
Por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
Ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!
(Antonio Carlos Brito)
O texto aponta uma visão desiludida com a “modernidade”, no caso, com o suposto avanço político, tecnológico e social brasileiro. Desconstruindo o conhecido poema romântico “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, Cacaso diz ter saudade da infância, ou melhor, da imaturidade, dos “negros verdes anos”, mas as idealizações presentes no poema representam apenas uma postura debochada de descrença e enfado. Um de seus mais famosos poemas, “Jogos florais”, ilustra o conteúdo parodístico revestido de sátira política:
Jogos Florais
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre
a água já não vira vinho
vira direto vinagre
II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já
Peço licença poética
Belém capital Pará
Bem, meus prezados senhores
dado o avanço da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com esses dois esses
que se escreve paçarinho?)
(Antonio Carlos de Brito)
Parodiando a visão ufanista da “Canção do exílio”, do também autor romântico Gonçalves Dias, segundo a qual o Brasil seria uma terra de belezas naturais exóticas e exuberantes insuspeitas, metonimicamente representadas pelo canto do sabiá nas palmeiras, Brito alude à falência do modelo econômico do “milagre brasileiro” promovido pelo regime militar. Ao invés do nobre sabiá, ocupado em devorar o fubá do poeta, seu sustento simples, um reles tico-tico canta nas palmeiras. Há aqui uma referência à música “Tico-tico no fubá”, bastante conhecida através da versão de Carmem Miranda, que, com uma cesta de frutas tropicais na cabeça, se tornou o ícone da visão estereotipada e alienada sobre a brasilidade. O milagre que transformaria a água em vinho dá errado, e esse se torna indigesto e azedo como o vinagre. Na segunda parte, o poeta cita o verso da paródia que o autor modernista Oswald de Andrade realizou da “Canção do exílio” — “Minha terra tem Palmares” — para ilustrar as desigualdades, as discriminações e as incoerências do regime que devem ser caladas pela memória, devido ao clima de opressão política e da censura.
Embriagado pelo vinho da poesia, o poeta pede licença para retirar-se, não sem antes demonstrar sua sarcástica inaptidão para a escrita, com a grafia errada da palavra “paçarinho”, o que sugere a incompetência proposital e a inadequação da figura do marginal nesses “anos de chumbo” da ditadura militar. Por isso, a epígrafe de Cacaso, que abre 26 poetas hoje, pode ser tomada como a síntese da proposta dos poetas da geração 70:
MODÉSTIA À PARTE
Exagerado em matéria de ironia e em
matéria de matéria moderado
(Cacaso)
Levante-se, vire o disco e toque o Lado A novamente
A antologia 26 poetas hoje não foi amplamente aceita no âmbito acadêmico e especializado, tanto por causa da “qualidade”, ou da falta dela, dos poemas, quanto pelo fato da organizadora focá-la basicamente na produção realizada no Rio de Janeiro. Mas as discussões suscitadas pelo livro acabaram promovendo, mesmo que de forma intuitiva e pouco organizada, uma reflexão sobre as formas poéticas e os textos já legitimados pela crítica, ou melhor, pelo que poderia ou não ser considerado como poesia.
A poesia marginal não seria considerada marginal se fosse tão bem aceita por setores tradicionalmente mais conservadores da sociedade, como as academias literárias apoiadas pela crítica universitária. Portanto, essa poesia é marginal porque encontrou saídas possíveis para sua produção e divulgação, à parte dos órgãos oficiais da crítica literária: é marginal porque é poesia independente.
Assim, a poesia da geração-mimeógrafo é marcada pela expressão despreocupada com a gramática normativa, pela valorização do sentimento do poeta em estado bruto, pelo humor, pela ironia e pela paródia:
(...)
– Virgens terras do planeta, qual a hora que tragarás
essa couraça poluída que te esfola e fere?
– Curiosa criança, continua a viver já que isso
te distrai.
Let it brisa.
(Chacal)
AULA
a luz da lua prateia a planta
um bocejo dentuço engole a noite
(Charles)
***
levantou o dedo em V
& enfiou duas vezes a faca
no peito do hippie...
(Adauto)
É uma poesia definida pela expressão da individualidade do poeta dentro de um contexto sócio-político massacrante, mas desatrelada do engajamento da arte socialmente comprometida:
(...)
Nas ferozes sombras do muro
distingue formas o acaso
da chuva
do lápis infantil
do terror
sangue
e escarro
(não foi deus nem o poeta
nem acaso quem pôs a pedra)
— a cal a sombra o sarcasmo —
é tudo pintura moderna
(José Carlos Capinam)
MANHÃ
Matei o amor logo às primeiras horas da manhã
E o dia suspirou inenarrável
Caminho agora até o fim da rua
Com idéias negras e vis a me povoar a cabeça:
O terror me acompanha calado.
Postetruras saborosas
Dlendlenam no esguicho da cruz
Um riso raso rasga o rosto de
José Oswald
O que faço agora de meu dia
É a desconstrução do sonho noturno.
O que faço agora de meu dia é de minha absoluta responsabilidade;
Mas o dia não é bastante para mim;
Não é bastante para o outro.
Tento portanto refazer do arbitrário
Minha dignidade pessoal.
Estou indo e vindo nesse dia
ensolarado de fevereiro de setenta e quatro;
e já não é tanto o calor;
já não é tanto a violência
dos dias urbano/tropicais;
é antes saber-se próximo
a mais um golpe da contra-revolução.
(João Carlos Pádua)
É uma lixeratura que promove a desopressão da sexualidade, através, por exemplo, da pornografia e do uso de expressões antiliterárias e vulgares:
***
moça/pop fode com o mundo
vagina psicotrópica
a lei do VENTRE LIVRE
(Adauto)
É poesia contracultural, que descreve a relação libertária dos poetas com o sexo, com o uso de drogas e com formas de viver independentes do comportamento tradicionalmente aceito:
CONFEITARIA MARSEILLAISE – DOCES E ROCAMBOLES
Caçadas
Experimentados no manejo de armas de fogo 3 filhotes infantes da burguesia empunham arma/ 1 empunha revólver/ 2 empunham espingardas. O aéreo esmaga folhas de eucalipto de encontro ao nariz enquanto de noite sonhei com um batalhão policial me exigindo identificação/ revistaram a maloca do fundo do meu bolso/ mostrei babilaques/ me entreguei descontento pero calmamente/ nada foi encontrado que incriminasse o detido no boletim de averiguações depois de batido, telex pra todas as delegacias.
Vadiagem.
(Wally Sailormoon)
É poesia underground, que afirma definitivamente a mulher como produtora de poesia, e, sobretudo, como sujeito poético feminino — a própria mulher falando de si mesma:
JORNAL ÍNTIMO
(...)
25 de Junho
Quando acabei Os jardins dos Caminhos que se Bifurcam uma urticária me atacou o corpo. Comemos pato no almoço. Binder me afaga sempre no lugar errado.
(...)
28 de junho
Cantei e dancei na chuva. Tivemos uma briga. Binder se recusava a alimentar os corvos. Voltou a mexericar o diário. Escreveu algumas palavras. Recurso mofado e borolento. Me chama de vadia para baixo. Me levanto com dignidade, subo na pia, faço um escândalo, entupo o ralo com fatias de goiabada.
(Ana Cristina César)
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE
Esqueço meu desejo de vingança,
e a mágoa recalcada esqueço até,
se ponho a te afagar o membro flácido
com as pontas dos artelhos
do meu pé.
(Leila Miccolis)
EU TE DOU OS MELHORES ANOS DE MINHA VIDA
Coso a alça de um vestido descosido,
enquanto pregas um prego
numa madeira bichada,
dou chiclete a nosso filho
para parar de gritar,
te mostro a casa cheirando
a pinho e desodorante,
me sorris agradecendo.
E certo que não quero recompensa.
Mas te beijo tua boca vomitada
que tem gosto de fome
e de torrada.
(Leila Miccolis)
A organizadora da coletânea 26 poetas hoje, Heloisa Buarque de Hollanda, em seu estudo Impressões de viagem, sobre a poesia independente dessa geração marcante dos anos 70, adverte, enfim, que a proposta marginal era “mais identificada com o grito do que com uma forma de resistência mais consciente, mais planejada”[26], como bem ilustrado pelo seguinte poema metalingüístico de Adauto, um exemplo da reflexão que os poetas desse contexto cultural e político tinham sobre a marginalidade do fazer poético:
minha poesia não canta nada
– como haveria de cantar? –
berra todo nosso sufoco
como um doido na camisa-de-força.
vem do útero do ânus estuprado
do peito doente
da cirrose do fígado.
minha poesia é o pânico
a quarta dimensão terrível
da vida consumada no porto da barra pesada
das penitenciárias dos hospícios
do pervintin da maconha da cachaça
do povo na rua
– do povo de minha laia.
Minha poesia é o hino
dos libertinos
q conspiram na noite dos generais...
(Adauto)
QUESTÕES OBJETIVAS
1) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que:
a) é uma obra marcada por uma busca de desrepressão na área cultural, por causa da ditadura brasileira nas décadas de 60 e 70.
b) está relacionado à criação de circuitos alternativos de produção artística, como o desenvolvimento de uma poesia independente do mercado editorial tradicional.
c) é um livro no qual se percebe a afinidade dos poetas com o cânone literário e com a crítica cultural institucionalizada.
d) os poemas são marcados por um clima de “resistência cultural”, na medida em que divulgam um modo de vida alternativo que se contrapõe aos modelos socialmente consagrados.
2) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que:
a) os textos contêm a marca das experiências pessoais dos poetas.
b) os poemas possuem um espírito crítico independente de conteúdos programáticos.
c) os textos recusam formas sérias do conhecimento intelectual e literário.
d) os poemas se voltam para o passado dos poetas, mais preocupados com os movimentos culturais da década de 60 do que com o cotidiano da década de 70.
3) As expressões abaixo dizem respeito ao contexto político, social e cultural que envolve diretamente a publicação da antologia 26 poetas hoje, EXCETO:
a) vazio cultural.
b) difusão da contracultura.
c) revolução militar de 1964.
d) atitude de desbunde.
4) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que:
a) os poemas têm uma ligação profunda com as expectativas esperançosas dos poetas quanto ao futuro político do país.
b) os poetas da antologia estão comprometidos com uma busca por uma maior liberdade de expressão.
c) a poesia dita marginal, da década de 70, deixa de ser um artefato erudito e passa a ser uma curtição existencial.
d) os poetas da antologia retomam a oralidade das frases e a descrição irônica e prosaica do cotidiano.
5) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que a linguagem utilizada pelos poetas é marcada:
a) pelo discurso linear.
b) pelo humor e pela ironia.
c) por gírias, palavrões e referências sexuais explícitas.
d) por um discurso politicamente engajado.
6) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que:
a) a organizadora da antologia, Heloisa Buarque de Hollanda, defende que há uma participação política dos poetas vinculada ao campo da experiência particular e privada.
b) os poemas da antologia são marcados pela informalidade, pela comunicatividade e pela busca de desrepressão no plano político, cultural e social.
c) a poesia marginal era uma forma de resistência cultural ao sufoco vivido após o AI-5.
d) os poetas buscavam uma maneira de participar do mercado editorial tradicional, por isso incentivaram a publicação desse livro, para alcançarem uma publicidade que os tornasse conhecidos pelo grande público.
7) As expressões abaixo dizem respeito aos poemas publicados na antologia 26 poetas hoje, EXCETO:
a) poema-síntese.
b) momentaneidade, recorte do instante vivido pelo poeta.
c) retomada do tom solene e nobre do discurso poético.
d) registro bruto do momento.
8) Com base na leitura de 26 poetas hoje, é INCORRETO afirmar que o rótulo de “poesia marginal”, apesar de não ser consensual, relaciona-se a todos os fatores citados abaixo, EXCETO:
a) os poemas pertencem à geração-mimeógrafo, que produzia e distribuía seus próprios livros de poesia.
b) os poetas da antologia, além de serem, em sua essência, independentes, divulgavam, em seus textos, valores da contracultura.
c) a poesia da década de 70 é chamada, pejorativamente, por causa de suas características antiliterárias e antiintelectuais, de “lixeratura”, por isso pode ser considerada marginal.
d) é uma expressão poética que não teve nenhuma acolhida no meio acadêmico, o que a relegou ao ostracismo no campo cultural.
9) Todos os trechos dos poemas abaixo, extraídos de 26 poetas hoje, contêm IRONIA, EXCETO:
a)
(...) senhoras e senhores eu daria
os rins
minha gravata borboleta de cetim
duas lágrimas abóbodas uma festa
interminável
de rum e cocacola
em troca
apenas de você
pessoa amanhecer
me demolindo
tão desrespeitosamente
como um hino
atravessando entre os dentes
de um ninho ardente e todo
ensolarado de metralhadoras.
(Leomar Fróes)
b)
A COMADRE SECA
Chegou de manhã bem cedo
e já são três horas. Foda-se
a delicadeza. Acho que vou sair.
(Eudoro Augusto)
c)
***
Um reputado economista afirma
que assim como veio
a ditadura vai.
Escuto maravilhado.
(Roberto Schwarz)
d)
***
Quem diante do amor
Ousa falar do Inferno?
Quem diante do Inferno
Ousa falar do Amor?
Ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama de Baudelaire
(Isabel Câmara)
10) Todos os trechos dos poemas abaixo, extraídos de 26 poetas hoje, contêm o recurso intertextual da PARÓDIA, EXCETO:
a)
REVOLUÇÃO
Antes da revolução eu era professor
Com ela veio a demissão da Universidade
Passei a cobrar posições, de mim e dos outros
(meus pais eram marxistas)
Melhorei nisso —
hoje já não me maltrato
nem a ninguém
(Francisco Alvim)
b)
(...)
Se o sonho acabou
Não posso pensar
No que antes de vir
Chegou atrasado
(...)
(Ricardo G. Ramos)
c)
PAPO DE ÍNDIO
Veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
Aí êles falaram e nós fechamu a cara
depois êles arepitirum e nós fechamu o corpo
Aí êles insistiram e nós comemu êles.
(Chacal)
d)
E COM VOCÊS A MODERNIDADE
Meu verso é profundamente romântico
Choram cavaquinhos luares se derramam e vai
Por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
Ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!
(Antonio Carlos Brito)
11) A respeito da linguagem dos poetas marginais pode-se afirmar, exceto:
a) É perpassada por termos chulos.
b) Emprega gírias e palavrões de modo artificial para retratar situações inverossímeis e cômicas.
c) Privilegia o coloquialismo e as construções proverbiais de caráter debochado.
d) É marcada pela informalidade e por estrangeirismos – recursos típicos da oralidade e dos meios de comunicação.
12) São recursos intertextuais freqüentemente utilizados pelos autores reunidos na antologia, exceto:
a) Construções poéticas feitas através de pastiches tanto de diários quanto de entrevistas e anúncios.
b) Montagens paródicas realizadas por meio de trocadilhos sarcásticos.
c) Exaltação parafrásica de textos canônicos por meio de construções ufanistas para soerguer a imagem da nação.
d) Alusões a poetas considerados “malditos” que são elencados como precursores e mentores dos jovens autores dos anos 70.
13) Não é um recurso freqüente em 26 poetas hoje:
a) Construções surreais.
b) Utilização de provérbios com caráter moralizante.
c) Referências irônicas em relação aos textos da tradição romântica.
d) Emprego de termos ambíguos.
14) O emprego da paródia é um recurso freqüente em 26 poetas hoje. São possíveis os seguintes motivos para a sua utilização no livro, exceto:
a) Ruptura com a concepção “romântica” de que a poesia deve utilizar uma linguagem nobre e lírica, bem como retratar os ideais humanos.
b) Satirizar a música popular da época, que se mostrava extremamente conservadora.
c) Quebra com os moralismos dos provérbios, o que aponta para a necessidade de libertação dos desejos, típica postura da “política do desbunde” vigente nos anos 70.
d) Destruir o clima ufanista promulgado pelo governo ditatorial, por isso os autores parodiavam freqüentemente os textos românticos que versavam sobre a exaltação da pátria.
15) A metalinguagem aparece retratada em todas as alternativas abaixo. A única em que esse recurso encontra-se realizado de modo surreal é:
a) “O verso era um abraço salgado / que os peixes telegrafaram. / Era um cisne louco / bicando o amor. / Era o secreto frio trancado na boca. / Era o tempo roendo os móveis, / os olhos, a conta de gás.”
b) “Estou te escrevendo / continuava a carta / da mesa onde janto, / um dia cheio de presságios / me lembrando / de como a gente olhava / as árvores / no jardim da viúva / da janela estreita / do quarto do avô.”
c) “A avestruz engole / tudo: parafusos em princípio. / O poeta não / digere uma / única partícula. / Tudo: fica-lhe atravessado. / no papel, para tanto / estraçalha e regurgita”
d) “A poesia é a lógica mais simples. / Isso surpreende / aos que esperam ser um gato / drama maior que o meu sapato / aos que esperam ser o meu sapato / drama tanto mais duro que andar descalço / e ainda aos que pensam não ser meu andar descalço/ um modo calmo.”
GABARITO
1)c
2)d
3)c
4)a
5)d
6)d
7)c
8)d
9)b
10)a
11)b
12)c
13)b
14)b
15)a
BIBLIOGRAFIA:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (org.) 26 poetas hoje. 6ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder.
Poesia jovem - anos 70. São Paulo : Abril Educação, 1982.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980.
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MORICONI, Italo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX .Rio de Janeiro: Objetiva , 2002.
SANT´ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1978.
Site:
http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/entrevitalo.html
[1] HOLLANDA, 1980, p.96.
[2] HOLLANDA, 1980, p.98.
[3] HOLLANDA,PEREIRA, 1982, p.101.
[4] SANT´ANNA, 1978.
[5] SANT´ANNA, 1978. p.249.
[6] HOLLANDA,PEREIRA, 1982, p.4.
[7] HOLLANDA,PEREIRA, 1982, p.54.
[8] HOLLANDA,PEREIRA, 1982, p.77.
[9] HOLLANDA, 1980, p.110.
[10] HOLLANDA, 1980, p.113.
[11] HOLLANDA, 1980, p.107.
[12] SANT´ANNA, 1978. p.252.
[13] MORICONI, 2002, p.131.
[14] MORICONI, 2002, p.133.
[15] As citações foram retiradas do Suplemento Literário FOLHETIM, da Folha de São Paulo, 28/02/1982.
[16] MORICONI, 2002, p.136
[17] PEREIRA, FOLHETIM, 1982.
[18] As falas da professora Heloisa Buarque de Hollanda foram retiradas do site: http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/entrevitalo.html
[19] HOLLANDA, 2007, p.10.
[20] HOLLANDA, 2007, p.11.
[21] FOLHETIM, 1982.
[22] HOLLANDA, 2007, p.11.
[23] HOLLANDA, 2007, p.261.
[24] HOLLANDA, 2007, p.257.
[25] PEREIRA, FOLHETIN, 1982.
[26] HOLLANDA, 1980, p.117.
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