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14 de junho de 2008

Estudo de obra: Maíra

Maíra, de Darcy Ribeiro:

gozo, dor e morte do índio

Aloisio Andrade Oliveira

O autor e a obra

Darcy Ribeiro, antropólogo, educador e romancista, nasceu em Montes Claros (MG), em 26 de outubro de 1922, e faleceu em Brasília, DF, em 17 de fevereiro de 1997. Diplomou-se em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1946), com especialização em Antropologia. Etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios, dedicou os primeiros anos de vida profissional (1947-56) ao estudo dos índios de várias tribos do país. Fundou o Museu do Índio, que dirigiu até 1947, e colaborou na criação do Parque Indígena do Xingu. Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena. Elaborou para a UNESCO um estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século XX e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. Organizou e dirigiu o primeiro curso de pós-graduação em Antropologia, e foi professor de Etnologia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1955-56).

Diretor de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais do MEC (1957-61); presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Participou com Anísio Teixeira, da defesa da escola pública por ocasião da discussão de Lei de Diretrizes e Bases da Educação; criou a Universidade de Brasília, de que foi o primeiro reitor; foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil do Governo João Goulart. Com o golpe militar de 64, teve os direitos políticos cassados e se exilou.

Viveu em vários países da América Latina, conduzindo programas de reforma universitária, com base nas idéias que defendeu em A Universidade necessária. Professor de Antropologia da Universidade Oriental do Uruguai; foi assessor do presidente Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no Peru. Escreveu nesse período os cinco volumes dos estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros - 1. Teoria do Brasil e Os índios e a civilização), nos quais propõe uma teoria explicativa das causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. [1]

Em Confissões, sua autobiografia, Darcy Ribeiro diz que inicialmente estudava os índios como um objeto externo que se olhava de fora, tanto para entender a natureza humana quanto para tanta compreender uma das matrizes formadoras da sociedade brasileira. No entanto, diz que começou a vê-los como “gente humana, adaptando-se penosamente aos novos tempos para sobreviver tal qual é ou era”. E acrescenta:

“Assim foi que aprendi a olhar os índios com os olhos deles mesmos. A partir de então, caí num questionamento de mim mesmo como antropólogo. Primeiro, pela crítica da etnologia aparentemente científica e inocente que cultivara até então, estudando parentescos ou mitologias ou colecionando artefatos, num total descaso pelo trágico destino dos índios que contavam os contos ou faziam os artefatos”.[2]

Na autobiografia, Darcy Ribeiro refere-se ainda à solidão do exílio e à maneira que encontrou para combatê-la, utilizando suas vivências nas aldeias indígenas para compor ficção. O autor é profundamente passional ao mencionar seu romance Maíra:

“Nunca escrevi nada com tanta emoção, mesmo porque meu tema ali era dar expressão ao que aprendi, no longo convívio com os índios, sobre a dor de ser índio, mas também sobre a glória e o gozo de ser índio. Enquanto eu o escrevi, eu estava lá na aldeia com eles. Era, outra vez, um jovem etnólogo, aprendendo a ver seu povo e a ver o meu mundo com os olhos deles”.[3]

O subtítulo de Maíra, “Um romance dos índios e da Amazônia”, revela a maneira poética como a vida indígena será abordada e a denúncia que será feita contra a devastação tanto de sua cultura quanto da floresta. Segundo o autor, há uma vontade de perfeição e beleza nas atitudes dos índios, porque é através delas que eles se retratam.

Na Introdução da obra, o autor admite o caráter ficcional da narrativa e sugere inclusive um teor pedagógico, ao considerá-la uma “reconstituição literária da etnologia indígena”. Justifica também a unificação das culturas indígenas dentro do romance através da tribo mairum, uma sociedade indígena ficcional, dizendo que a cultura não é apreensível se dissociada da mitologia, da arte, da religião; por isso optou-se por misturar as lendas, os mitos, os contos dos índios, de modo a gerar o contraste entre sua cosmogonia — a perspectiva indígena sobre a criação do universo — e a “visão cristã de mundo”.

Missa

O romance Maíra é construído com base na estrutura da missa católica tradicional. A missa tem um sentido estritamente sacrificial, o que aponta para a temática principal do livro: a morte. Essa morte se dará em vários sentidos, no entanto, o mais proeminente é o extermínio da cultura indígena, em contato com a sociedade civilizada. A morte da cultura indígena será retratada tanto no plano social, na abordagem do fim gradual da tribo dos mairuns, quanto no plano individual, através da história do índio Avá, que recebe o nome de Isaías quando resolve se tornar um sacerdote.

Isaías representa o índio convertido e civilizado, que almeja se tornar padre para catequizar os mairuns, mas que acaba negando a vocação de sacerdote para voltar à tribo. Ao desistir da vida religiosa, Isaías encarna o violento processo de transfiguração étnica, ou seja, da transformação de sua identidade indígena, a partir do contato com a civilização, e da impossibilidade de resgatar sua cultura original. Seu conflito espelhará a morte simbólica dos índios, quando perdem suas características étnicas, conflitantes com as dos brancos.

A morte liga-se também à figura da personagem Alma. Depois de mais de dois anos de convívio com os índios mairuns, ela e dois gêmeos de quem estava grávida são encontrados mortos às margens do rio Iparanã, próximo à aldeia. A simbologia de sua morte será analisada mais adiante.

O romance se inicia com a “Antífona”, que é a parte da missa em que se entoam os cânticos, antes dos salmos. É a parte destinada a preparar o homem para o sacrifício de Cristo que virá a seguir. São os ritos iniciais, os cantos de abertura. A “Antífona” em Maíra corresponde à narração das principais mortes que conduzirão a narrativa: a de Alma, a do tuxaua Anacã, e a morte simbólica de Isaías.

Em seguida, a “Homilia”, que são os ritos da palavra. É o momento em que o sacerdote, como o representante de Deus na terra, profere os sermões, as pregações, os evangelhos, as interpretações e explicações dos textos bíblicos. Em Maíra, corresponderá à parte em que serão narrados os mitos indígenas da criação dos deuses e do mundo — é a “palavra sagrada” dos mairuns.

O romance segue com o “Canon”, os ritos sacramentais das oferendas e da comunhão. É o ponto alto da celebração da missa, quando se presentifica o sacrifício de Cristo e a salvação do homem, quando se rememoram os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. A comunhão, na obra, será representada pela entrada dos deuses mairuns nos corpos das personagens. Em alguns desses capítulos, as vozes dos planos sagrado e terreno irão se misturar.

Para finalizar, o “Corpus”, os cantos de ação de graças e as bênçãos finais. No ritual católico, é o momento de refletir sobre a palavra de Deus e de aceitar a missão de difundi-la. Na narrativa, indica o alerta contra a morte da cultura indígena como aspecto que deve ser anunciado ao mundo.

Portanto, como a missa católica celebra a morte, mas também a ressurreição, e o romance anuncia principalmente o extermínio dos índios, pode-se afirmar que ocorre um processo intertextual de paródia. Desconstrói-se a idéia da salvação e enfatiza-se o fim dos mitos, da cultura, dos ritos e da sociedade indígena, metonimizados através da tribo dos mairuns. Trata-se, enfim, de uma missa católica sobre um povo pagão. O conflito existencial pelo qual passará Isaías se tornará então um dos focos do romance, pois espelhará o choque brutal de duas identidades culturais antagônicas.

Polifonia

Maíra é narrado de maneira polifônica, ou seja, com a presença de várias vozes narrativas, que muitas vezes são dissonantes e que ilustram, no universo literário, o conflito entre as culturas existente no Brasil.

Há a presença de uma voz narrativa onisciente, que conhece os acontecimentos, que narra a vida dos índios e dos brancos. Do mundo mairum e do mundo civilizado, surgem vozes narrativas em 1ª pessoa.

Os narradores do mundo civilizado valem-se muitas vezes de termos burocráticos, de uma linguagem mais formal, de um objetivismo, através de cartas, documentos jurídicos e processuais, por exemplo. Já do mundo mairum eclodem vozes que usam a 1ª pessoa do plural, o que faz perceber o contraste entre o individualismo dos brancos e o coletivismo dos índios.

Junto a esses narradores, tem-se a presença das vozes dos deuses mairuns, que se manifestam quando incorporam as personagens, configurando uma comunhão carnal e espiritual.

No capítulo “Egosum”, que será tratado adiante, o autor ficcionaliza sua própria voz, e a coloca acima até do narrador onisciente, pois, momentaneamente, rompe com o pacto narrativo e revela de onde vieram suas inspirações para as personagens.

O livro se encerra com o “Indez”, um capítulo onde várias vozes se cruzam caoticamente. Percebem-se os interesses de alguns personagens, como o do Senador Andorinha, que manda expulsar os índios de suas terras para a agropecuária, e a voz de Jaguar, índio mairum, saudoso de sua amante branca Alma, mas desejo de sua amada mairum Inimá. Segundo o dicionário Houaiss, “indez”, ou “endez”, é uma espécie de ovo que se deixa no ninho descoberto, como chamariz para outras galinhas virem fazer postura no local. Mas também possui o sentido figurado de empecilho, de algo que prejudica ou aborrece.

O ovo, no caso, é algo não fecundado, falso. Mas também é algo que incomoda. Pode-se fazer uma associação com a morte gradual da cultura indígena, que aos poucos se torna também infecunda, e que, pejorativamente, acaba por se tornar um estorvo para os brancos. Ou ainda aos filhos que Alma perderá, que são sementes estéreis, que não germinarão. Mas o sentido de chamariz liga-se igualmente ao alerta feito pela obra quanto ao extermínio gradual dos índios.

Esse conflito liga-se ao multiculturalismo presente no país, que inicialmente pode ser identificado como um pluralismo cultural. O multiculturalismo indica que “determinadas culturas, postas em relação aberta e ativa, afetam-se e modificam-se em um processo transitivo de complexas mutações das quais surgem novas realidades culturais”.[4] Contudo, essa diversidade cultural e essas novas realidades nem sempre ocorrem de maneira harmônica. Ironicamente, apesar de tantas vozes narrativas no corpo do texto, a obra aborda precisamente o silenciamento da cultura indígena pelo homem civilizado.

O mundo mairum

O mundo mairum pode ser entendido através dos personagens principais que o compõem e de sua organização social peculiar, através dos seus rituais e de seus mitos de criação.

1) PERSONAGENS E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Anacã é o tuxaua, o chefe indígena, o cacique ou chefe guerreiro, uma espécie de líder político:

“No vasto mundo dos poucos mairuns viventes e dos muitos que viveram e morreram, corre a notícia. O tuxaua Anacã decidiu que nesta noite dos vivos ele deitará para dormir, como sempre, mas só acordará de madrugada, morto-vivo, no fim do dia dos mortos, para ver a luz do sol negro iluminando”. (p.38)

Depois da morte do tuxaua, para celebrar a renovação da vida, ocorrerão vários rituais. Seu corpo será enterrado no meio do pátio de danças, e toda tarde será regado com água, para que suas carnes amoleçam e se misturem ao barro. O cheiro do corpo se espalhará por toda a aldeia mairum:

“As rajadas de vento não lavam o ar, apenas revolvem a catinga e a devolvem concentrada. Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e dominador”.(p.67)

“Anacã morre para que os mairuns renasçam. Simultaneamente se vão dissolvendo na morte suas carnes regadas cada dia e renascendo seu povo nos ritos que reacendem em cada um o gosto de comer, a alegria de cantar, o prazer de dançar, a coragem de ousar, o gozo de foder”(p.99)

O prestígio de Anacã advém de sua força política, pois havia reestruturado a tribo mairum, juntando os clãs antes rivais e levando-os todos para as matas próximas à Lagoa Negra. Sua morte e o ritual de seu sepultamento definitivo marcarão o início e o final da primeira parte do livro, a “Antífona”. Anacã deve se tornar Anacã-Manon, ou seja, Anacã-defunto, e para tanto o aroe Remui, auxiliado por Jaguar, descendente do tuxaua, e por Teró e Narú, descendentes do aroe, começam a desenterrar seus ossos.

Todos estão com seus cocares cerimoniais e com os corpos pintados e adornados. Remui sopra a flauta e chacoalha o maracá num ritmo hipnótico alternadamente forte e leve. Segue até a sepultura de Anacã e, com profundo respeito, desfaz com as mãos o monte de lama que envolve as carnes apodrecidas do antigo tuxaua. Em seguida dá os ossos a cada mairum, que os vai lavar na lagoa até ficarem brancos. As mulheres e os homens mais velhos escarificam a pele e choram o morto. O aroe diz solene:

“—Anacã, meu tuxaua Anacã, hoje é o dia de sua morte. Logo chegará sua hora derradeira, Anacã. A hora de morrer definitivamente para nós. Sua festa está acabando. Já dançamos todas as danças, exceto o Coraci-Iaci, você sabe por quê. Já lutamos todas as lutas, inclusive o javari. Já comemos muita carne. Já comemos muito peixe. Já bebemos muito cauim. Chegou, afinal, Anacã, a sua hora”.(p.120)

Depois de lavados, os ossos são cuidadosamente recobertos de penas coloridas dos mais diversos pássaros e dispostos num cesto, que será dependurado num grande mastro fincado no fundo da Lagoa dos mortos.

Remui é o aroe, uma espécie de médium, guia místico, sacerdote, aquele que conversa com os mortos, tem visões e recebe mensagens dos antepassados:

“Os mortos entram e saem esvoaçando em círculos que sobem do baíto para o alto do céu. Só são visíveis aos olhos do aroe, sentado no seu banquinho-gavião de duas cabeças”. (p.37)

Teidju é o oxim, um curandeiro, espécie de pajé, que possui certo prestígio junto aos mairuns. No entanto, é um pouco desprezado e muitas vezes ignorado, já que pode pedir por seu auxílio qualquer presente que desejar, o que causa a ira de alguns mairuns.

Avá é o tuxauarã, sobrinho de Anacã, o herdeiro da chefia de guerra dos mairuns por via matrilinear. Trata-se de um índio que, quando criança, adoeceu e foi levado até a missão religiosa que se instalou próxima à aldeia. Lá toma contato com o cristianismo e resolve ser sacerdote. Porém, muitos anos depois, já em Roma, próximo de se tornar padre, o Avá, agora com o nome de Isaías, decide largar o sacerdócio para reassumir sua identidade mairum, o que fará com que passe por um processo de conflito de identidade, por se tratar de um índio civilizado e cristianizado.

Jaguar é sobrinho de Avá/Isaías. Trata-se de um índio guerreiro, bravo e predestinado a também se tornar um tuxaua. Teró, amigo de Jaguar, é sobrinho de Remui, e seu destino é ser o futuro aroe.

A organização social da tribo mairum é formada a partir da divisão da aldeia em metades casamenteiras e repartidas nas casas de seus clãs. A estrutura de parentesco é mais complexa do que a do homem branco. A aldeia, vista de cima, tem o formato de uma roda de carroça. Os varais dos raios são os caminhos que saem das casas em direção à casa-dos-homens, o baíto, onde as redes são armadas de acordo com a ordem como as famílias clânicas se plantam na aldeia. Essa é a definição que Isaías dá a ela:

“Uma linha invisível parte a aldeia em duas metades, a do Nascente e a do Poente. Cada uma delas com seus clãs que têm de ir buscar mulher ou marido na banda oposta. Esta partição da aldeia em metades retrata no chão a partição do mundo, tal como o concebemos, sempre dividido em dois; o dia e a noite, o claro e o escuro, o sol e a lua, o fogo e a água, o vermelho e o azul, e também o macho e a fêmea, o bom e o ruim, o feio e o bonito. Uma banda da aldeia é do dia, da luz, do fogo, do amarelo. (...) A outra banda é noturna, crepuscular, lunar, aquática, azulona. (p.73)

No início da obra, há o desenho da aldeia, em formato de roda de carroça com a separação entre os clãs. A tribo é dividida de modo a que os índios saibam onde devem buscar esposas ou maridos, conforme as regras clânicas que visam impedir o incesto. Assim, há um diagrama que separa a casa do jaguar da casa do carcará. O povo jaguar deve tomar como esposa ou marido o povo carcará, e vice-versa. A mulher carcará dará à luz aos futuros aroes, os guias espirituais, e as mulheres jaguar, os tuxauas, os chefes guerreiros. Portanto, Anacã é tio do Avá, e o Avá é o tio de Jaguar. Todos têm o direito, segundo a tradição mairum, de serem os líderes mairuns.

2) RITUAIS

Durante o sepultamento de Anacã, ocorrerão vários rituais fúnebres, que demonstrarão a importância dos costumes indígenas e marcarão a “morte gloriosa” de Anacã. São eles:

  • Coraci-iaci: depois de dançarem ao redor da cova de Anacã, os mairuns preparam-se para a cauinagem. O cauim é uma espécie de aguardente feita de milho torrado, mel e água. A dança solene do Jaguar, o Coraci-iaci, a dança dos tuxauas, ainda não pode ser realizar, pois um novo tuxaua não foi nomeado.
  • Ñandeiara: cada criança que fala recebe o nome de um seu ancestral nesse ritual, junto com duas marcas de queimadura na maçã do rosto, a marca do olhar de Maíra-Coraci, o Sol. É o coraci-mãa, a marca solar dos mairuns. Assim, os ancestrais esquecidos sobreviverão encarnados nas crianças. Para consolá-los da dor causada pelas queimaduras, as mães dizem: “Agora você é gente, meu filho. É mairum. Você agora é dos mairuns: os que comem beiju, os que gostam de pacu, os que riem com gozo. Vamos, ria você também.”(p.60) Esse ritual acontece durante o funeral de Anacã porque esse é o momento de iniciação dos jovens ao mundo adulto.
  • Javari: competição de lanças cujas pontas estão envoltas em algodão, que são atiradas aos lanceiros que oferecem seu corpo como alvo descoberto. Eles podem movimentar-se para os lados ou se defender com um feixe de varas que levam na mão. Jaguar, representante do clã dos onças, e Narú, representante dos carcarás, disputam entre eles quem será o vencedor, mas empatam.
  • Huca-huca: luta entre os homens guerreiros da tribo, entre as várias casas e entre as metades casamenteiras da aldeia repartida em clãs. “Ganha quem tomba o adversário ou tão-somente trisca com a mão a dobra de seu joelho”(p.68)
  • Sucuridjuredá: trata-se de uma caçada à cobra sucuri empreendida pelos guerreiros da tribo para provar valentia. Após imobilizar a sucuri, os homens se sucedem, oferecendo o rosto para serem mordidos por ela. Uma vez mordidos, saem para segurar a cobra no lugar do outro, e assim ela permanece imóvel. Depois, a mantém viva, “testemunhando na mata, com sua vergonha, a ousadia mairum”. (p.88)
  • Jaguarum: durante a caçada à sucuri, o valente Jaguar decide perseguir um jaguarum enorme, uma espécie de onça negra. Afasta-se dos companheiros e consegue matá-la. Quando chega à aldeia, reveste-se com a pele da mesma e a oferece para o tuxauambir, o morto Anacã.
  • Juruparis: o ritual dos juruparis acontece em meio à cauinagem, onde todos os mairuns estão embriagados e se dedicam às experimentações sexuais. Os juruparis são mais antigos que os homens e vêm do fundo das águas. Têm o corpo recoberto da lama fétida do fundo dos rios e uma vestimenta palhosa. São os anhangás, os cabeça de bagre, que assaltam os lares mairuns para tomarem das mães os filhos homens mais crescidos. Se alguma delas olhar um anhangá, será estuprada até morrer, dilacerada por seus membros de pau. Os meninos desesperados choram. Os anhangás os levam até perto do rio e formam uma roda. Na verdade, são os tios dos garotos, que se fantasiam para lhes pregar um susto e marcar a sua passagem para a fase adulta: “(...) solteiros ou separados, vocês viverão conosco na nossa casa que é o baíto. Ali não entra mulher, não entra criança. Só nós, os homens de verdade: Avaetés!”(p.103)
  • Dança ritualística: no centro, dançam ao redor de si mesmas as crianças que receberam seus nomes e a marca do coraci-mãa; ao seu redor, os rapazinhos que conheceram os anhangás; em sentido contrário, aqueles que têm a cicatriz fresca da dentada da sucuridju, de mãos dadas com sua namorada mais amada da banda oposta; ao redor de todos, a gente madura, cantando o coro do Avaeté. Depois os homens serão servidos de comida por suas mirixós, amantes ou parentes, que zelarão por seus amados. Passarão mais de um dia bebendo, comendo e mantendo relações sexuais. É o momento da festa dos prazeres.

3) MITOLOGIA MAIRUM: cosmogonia (criação do mundo) e teogonia (criação dos deuses)

A gênese dos mairuns está ligada ao surgimento de Mairahú, o Criador, o Sem-Nome, o pai de Maíra, que um dia descobriu a si mesmo, sozinho, e esperou. Chegada a hora, juntou as mãos em concha, soprou um ar quente dentro delas e lançou do olhar uma luzinha, e assim foi inventando suas criações. Criou as terras, as águas, separou umas das outras e criou os juruparis, suas criaturas prediletas. Eles eram meio peixe, meio gente, e ganharam de presente a noite eterna que dormia no fundo das águas. Em seguida criou os curupiras, que eram criaturas incompletas. Alguns tinham só uma perna, ou um olho só, ou olhos fora do lugar. Eles ocupavam-se em comer as almas de quem se perdesse à noite na floresta.

Mairahú resolveu criar os avós dos mairuns, os Mairum Ambir. Não havia homens nem mulheres, todos eram iguais, e não tinham ânus, comiam e vomitavam pela boca, depois tornavam a comer. Mas todos tinham uma vulva dentada como boca de piranha, para sururucar — manter relações sexuais — com o Criador. Bastava bater três vezes na terra para que uma “cobra-raiz” surgisse do chão. Depois de sururucar com o Sem-Nome, bastava urinar num pote e, passados cinco dias, a urina fermentada criava um novo Mairum Ambir.

Enquanto isso, Mairahú desenhava na areia os bichos, soprava seu alento e eles nasciam espantados. Todas as criaturas viviam em aldeias e falavam suas línguas como gente. Cada coisa boa, como o fogo, o sal, o mel, pertencia a um bicho, que não repartia com ninguém. Não havia dia nem noite, somente uma penumbra constante. O Criador se divertia mandando para as criaturas chuvas de fogo ou águas torrenciais. Suas risadas eram as trovoadas e os raios. Somente os juruparis estavam protegidos no fundo das águas.

Mairahú, ou o Ambir, quis então sentir suas criações. Deu um arroto e o lançou para ser seu filho no mundo. O arroto girou pelos ares e foi parar numa árvore. Sentiu-a em sua integridade, das raízes até a copa frondosa. Gozando o sentimento de ser árvore, Maíra fez nascer as florestas selvagens, multiplicando-se pela primeira vez. O filho do Velho experimentou ser vários seres, mas voltava sempre à mata. Um dia avistou um antepassado mairum, Mosaingar. Entrou dentro dele e fez nascer um útero, no qual se alojou. Sentiu o corpo daquele avô que seria sua mãe em sua totalidade, a simetria dos lados esquerdo e direito, suas partes, seus membros, e sua cabeça móvel, com fendas de ver, de ouvir, de cheirar e de provar. Degustou o gozo de comer e sentir os gostos, mas não gostou do sarro que ficava na boca depois de vomitar. Reconheceu que Mosaingar era a melhor criação do Deus-Pai, e percebeu que podia melhorá-la.

Maíra pedia a Mosaingar que provasse toda a sorte de frutos e flores, mas Mosaingar batia na abrriga e dizia: “Filho que ainda não nasceu não fala”. Mas Maíra apertava-lhe por dentro as partes e Mosaingar acedia. Quando avistou um bichinho à-toa, um gambazinho fedorento, o micura-sariguê, Maíra pensou: “Aí está quem há de ser meu irmão gêmeo”. Chamou-o para dentro da barriga, mas Mosaingar gritava que não, e mordia Micura com os dentes de piranha de sua vagina. Maíra do lado de dentro quebrou todos aqueles dentes e Micura entrou finalmente.

Depois Maíra resolveu que melhoraria a criação de Maíra-Ambir, e os irmãos deram voltas no útero para nascer. Mosaingar diz: “Filho de não sei quem, já vou parir? Vejam, você nasce sem pai. Não sururuquei com a verga de Deus. Como é que você vai nascer, se não é filho do Sem-Nome?”. Ao que Maíra responde: “Você vai parir dois gêmeos. Não somos filhos de Deus. Somos os pais dos homens que há de ser”.

Eles nascem então no meio dos mairuns e Maíra é tão inocente quanto qualquer criança da aldeia. Elas se divertem com suas brincadeiras, pois podia se transformar em qualquer bicho que quisesse. Os mais velhos, assustados, resolvem acabar com os gêmeos, e os levam para o meio de uma vara de caititus, espécie de porcos-do-mato. Os gêmeos, no entanto, montam nos porcos e se divertem muito. Levam os bichos até a aldeia e causam a maior confusão. Os porcos cercam um homem e o comem. Maíra manda os porcos de volta para o mato e acha bom o extermínio daquele que mais queria seu fim. “Sem querer, por inocência, Maíra havia fundado a morte”.

Ele ordena então que todos riam para não ficarem tristes com a morte, e todos caem na gargalhada. Os irmãos Maíra e Micura saem andando pelo mundo, para evitar os pedidos excessivos dos mairuns. Mas sempre encontravam pessoas que os reconheciam. Eles realizavam os pedidos, mas com malícia. “A uns que queriam ser bonitos Maíra fez clarinhos mas muito fedorentos, são os caraíbas. A outros que quiseram tostar a pele num moreno dourado, Maíra fez negros como tições”.

Maíra depois deu aos mairuns uma genitália masculina, decepando o membro do Deus-pai, para que todos pudessem sururucar à vontade. As mulheres também pediram um presente, e ele lhes deu o uluri, uma espécie de tanga, e, junto com ela, a vergonha. Maíra determina também que “cada par durará o tempo que o desejo e o ciúme o mantiverem junto”. Divide a aldeia em metades casamenteiras e inventa o pecado: o incesto. Mairahú, lá do alto, irritado por estar castrado, olha o grande estrago que o filho faz na sua criação. “Cada dia, cada noite é uma batalha. Uma dura batalha em que Maíra enfrenta Mairahú para que o mundo fique como é”.

O Deus ancestral, para se vingar, manda seus cães ferozes, que são derrotados por Maíra. Mas em seguida, para destruir tudo, envia à terra o Jaguarunouí, o Grande Tigre-Azul do tamanho do mundo.

Maíra inventa o arco e flecha para salvar seu povinho mairum. Prega várias flechas no alto e sobe até lá, acompanhado do irmão Micura. Micura escorrega e cai, mas Maíra assopra-lhe pelo ânus, e ele incha e flutua, distraindo o Grande Tigre-Azul. Maíra entre dentro do monstro e destrói suas entranhas. De sua pele esticada faz o céu. Entra em seu olho e abre-se em luz, tornando-se Maíra-Coraci, o Sol. Faz do seu irmã Micura-Iaci, a lua. Mairahú, o Deus ancestral, recolhe-se para o lado de baixo do mundo, o lado dos mortos, e passa a ser Maíra-Monan, o Deus-defunto.

“E, desde então, cada dia e cada noite se sucedem, o sol e a lua iluminando e alumiando este mundo nosso. É Maíra, é Micura que giram em sua ronda, sempre atentos contra uma cilada de Maíra-Monan, que pode atacar de novo, a qualquer momento”.

O mundo civilizado dos caraíbas

O mundo do homem branco, dito civilizado, também pode ser entendido, dentro do romance, de acordo com a motivação e as características principais das personagens que nele se destacam. É, por exemplo, através do delegado Dr.Ramiro, que reside em Brasília, e que será o responsável pela apuração da morte de Alma, que tomamos conhecimento de uma importante característica do índio para a civilização, muito irônica dentro do contexto da obra:

“O código civil declara que os índios são pródigos — como os menores, os alienados, e as mulheres casadas —, quer dizer, irresponsáveis perante a lei; quer dizer: inocentes”. (p.36)

Nesse universo caraíba, um dos personagens de maior destaque é Juca. Acompanhado pelos capangas Manelão e Boca, sempre bruto e grosseiro, tenta explorar os mairuns. É mestiço, filho de mãe mairum e pai branco. Foi proibido por Anacã de freqüentar a aldeia, por querer seduzir os índios a trocar peles de lontra por facões, armas e demais utensílios do mundo civilizado. Ele encarna a ambição capitalista desmesurada. Por ter pai branco, renega o fato de também ser índio: “não sou bugre, meu pai era branco e a mãe é apenas o saco onde cresce a semente do homem”. Segundo a visão de Isaías, “é o mameluco cumprindo sua sina de castigador do gentio materno”. No entanto, tem um desejo oculto de dominar os mairuns, inclusive pelo fato de ser da família dos Onças, clã que produz os tuxauas. Através de sua fala, percebe-se a exploração predatória da floresta e a destruição do mundo indígena, com as doenças levadas pelos brancos.

Será ele que ajudará a demarcar e nomear as áreas indígenas que serão desmatadas para a pecuária, segundo planos do Senador Andorinha. Essas terras serão concedidas a amigos e vendidas a fazendeiros paulistas e estrangeiros. Juca ambiciona se tornar um grande fazendeiro e expulsar todos os índios daquelas paragens.

Outro personagem do mundo civilizado fundamental dentro do romance é o Major Nonato dos Anjos, o responsável designado para investigar a morte da mulher branca nas beiras do rio Iparanã. Através da narrativa, conheceremos os relatórios de Nonato acerca de seus inquéritos. Já de início, ele alimenta a vaga idéia de que Alma teria morrido devido a complicações no parto. Quando interroga Isaías, fica tentado a incriminá-lo, devido à recusa do ex-seminarista em ajudar nas investigações. Chega inclusive a ameaçá-lo. Sobre o “ex-padre, ex-índio, ex-gente”, anota:

“É um tipinho raquítico, caquético, justo o oposto da imagem que dele eu formava, pensando nos índios de verdade. Foi praticamente forçado pelo agente Elias a vir à minha presença. Não queria de nenhum modo entrevistar-se comigo e se negou a dar qualquer informação”(p.176).

Num dos capítulos mais importantes do livro, “Exumação”, Nonato nos revela sua visão peculiar sobre os mairuns. Junto com Elias e Juca, vai até a aldeia desenterrar os ossos de Alma para verificar a causa mortis. Elias avisa que os índios veriam aquela atitude como uma profanação. Mas Nonato acusa os mairuns de preguiçosos, por não os ajudarem na exumação. Verifica que o crânio da mulher estava intacto, e exclui uma possível agressão. O investigador se constrange com a “nudez” dos índios. Observa o comportamento das mulheres, o baíto — a casa dos homens — e, com as informações que Elias lhe fornece sobre a naturalidade com que os mairuns encaram a gravidez, conclui:

“Habituados com suas mulheres que parem como cachorros ou animais selvagens, não deram qualquer atenção especial ao parto dessa mulher branca e civilizada (apesar de extravagante) que estava no meio deles. Ela, vendo-se sozinha, numa praia, com as dores do parto que podem ter sobrevindo de repente, não teria resistido. Foi vítima de sua própria afoiteza em meter-se, aventurosamente, por essas matas e aqui deixar-se prenhar” (p.226)

O antropólogo busca relativizar seu olhar, ou seja, ele tenta enxergar a cultura do “outro” com o olhar do “outro”, busca enxergar a cultura diferente da sua com o olhar dela. Caso contrário, o olhar será etnocêntrico, preconceituoso, pois interpretará a cultura do “outro” com a visão da sua própria cultura. A partir do relato burocrático de Nonato, percebe-se todas as características desse olhar que não relativiza os valores: os índios são vistos como preguiçosos, indolentes, mendigos, miseráveis, doentes e sem pudor; e os mais saudáveis, como possível força de trabalho, como soldados, homens prontos para trabalhos braçais.

O discurso do Major Nonato é marcado pela objetividade que quer dominar a realidade, distinguível da fragmentação dos planos indígena e sagrado. “Nonato escreve uma história que busca manter a verdade objetiva do discurso histórico-oficial”.[5] Assim, sua visão sobre os mairuns espelha todos os preconceitos da sociedade civilizada acerca da cultura indígena.

Xisto é um beato que prega na Vila de Corrutela. Em seus sermões, faz questão sempre de enfatizar a figura do diabo e da transgressão à palavra de Deus. Acentua os pecados da humanidade e anuncia constantemente o juízo final. Representa os excessos da religiosidade e o fanatismo.

O Sr. Elias é um funcionário da Funai que auxilia o major Nonato na investigação. No entanto, em seu relatório sobre a morte de Alma, Nonato retrata como Elias não pretende dar qualquer apoio ou suporte aos índios, pois vive nas terras demarcadas pelo Estado, usufruindo de seus bens e do gado ali criado. Diz Nonato:

“Pelo que vejo a coisa está muito bem urdida e justificada para que os índios fiquem na aldeia como índios e os agentes do Posto como seus remotos tutores. O resultado é que eles jamais se integrarão nos usos e costumes da civilização. Mas é também que os funcionários da Funai não perderão seus empregos de burocratas-afazendados à custa da Fazenda nacional”. (p.97)

Depois que constata que bem provavelmente o falecimento de Alma “foi ocasionado por um parto duplo, ocorrido em más circunstâncias, junto a índios que nada sabem dos cuidados higiênicos e muitos outros de que uma mulher civilizada tem necessidade em sua délivrance”, Nonato acusa Elias de negligência, por não ter cuidado para que a mulher branca saísse da tribo a tempo.

Curioso destacar também que Brasília, localizada no umbigo do Brasil, situa-se onde os mairuns considerariam a morada de Mairahú, o Deus-Pai feroz e caprichoso. Seria a boca do mundo subterrâneo, uma espécie de inferno, distante da foz do Iparanã, no Mato Grosso, o paraíso perdido dos mairuns.

A Missão de Nossa Senhora do Ó é habitada por missionários penitentes, que se entregam ao árduo e talvez infrutífero trabalho de catequizar o gentio, os selvagens, os mairuns. Os padres e as freiras lavam constantemente suas roupas e banham-se para tirar de si qualquer pecado:

“Os secos de carnes exibem, virtuosos, a magreza dos seus fáceis jejuns. Os gordos mal escondem na flacidez das carnes frouxas o sacrifício de sofridas abstinências. Uns e outros, silentes, se vêem, se julgam e se perdoam.” (p.160). As freiras não escapam dessa análise dolorosa e irônica: “Secas vidas de cinzas, sem doce nem sal. Vidas duras, de carinhos segadas, de desejos podadas. Sofrido povo de Deus, proibido de si. Enlutados, porque não morrem”(p.160).

Isaías sente que a Ordem se alimentava dele porque talvez vissem no seu sacerdócio “a capacidade de erradicar todas as ervas daninhas que os mairuns tinham na alma. As que cultivaram em séculos e séculos de heresia. Não sabiam é que, no lugar delas, não plantavam nada”(p.218).

Por fim, Bob e Gertrudes, que são dois missionários protestantes americanos, instalados num abrigo feito de chapas de metal, à semelhança com um disco voador, o que causa grande curiosidade em Alma e Isaías, quando eles os encontram durante a peregrinação à aldeia mairum. Gertrudes é uma lingüista que pretende traduzir os evangelhos para a língua indígena, a fim de catequizá-los. Eles entram em constantes choques com os missionários católicos, por questões religiosas.

Isaías (Avá) e Alma (Canindejub)

O romance começa com o capítulo “A morta”, no qual Alma é encontrada pelo naturalista suíço Peter Becker, numa praia do rio Iparanã, no dia 26/10/1974, nua e morta, com o corpo pintado de traços negros e vermelhos, formando linhas e círculos. Junto a ela, estão dois gêmeos do sexo masculino, natimortos, envoltos na placenta e ligados a ela pelos cordões umbilicais.

Depois de um passado de libertinagem e uso de drogas, Alma formara-se em psicologia pela Puc. Tenta então convencer irmã Petrina a deixá-la partir para a Missão de Nossa Senhora do Ó, a fim de dedicar-se à caridade com os índios:

“Só quero que a senhora concorde comigo em que há muitos caminhos para Deus. Um pode partir da fé e da pureza e por ele chegar ao serviço. Outro pode partir do mundo, da vivência, das decepções, da análise mesmo. É o meu caso, por isso começo tão tarde: vinte e três”.(p.63)

Alma descreve a falta que sempre sentiu da mãe, e a doença e definhamento do pai, que acaba por criá-la. À medida que chega à puberdade, começa a se envolver com vários homens em relações vazias e sem sentido. Usa drogas pesadas e é internada no hospício Pineu. Posteriormente, segundo sugere, reconquista sua fé na religião, já que o pai era profundamente católico, e almeja servir a Deus, numa aldeia de índios. A caminho da Missão de Nossa Senhora do Ó, mesmo com a reprovação das freiras francesas a quem pediu apoio, por não perceberem nela vocação religiosa alguma, Alma chega em Brasília e conhece Isaías, que nesse momento retornava para a aldeia mairum. Durante as investigações, Nonato se certifica que os dois não tiveram nenhum contato mais íntimo além da amizade.

Alma e Isaías seguem juntos até o rio Iparanã, perto da aldeia mairum. Alma fica curiosa em relação àquele sujeito estranho, diferente da idéia que ela tem de um índio:

“Ele é triste, feio e triste, coitado. Nunca pensaria que fosse índio. Nem imaginava um índio assim de franzino. A única coisa viva nele é o olhar aceso. Parece calmo, quando fala, mas é controle. É defesa. Na verdade é um desesperado que nem eu. Não, é um desenganado. E daí? Desenganado ou desesperado, dá no mesmo.”(p.137)

Depois de conseguirem uma canoa rústica, eles descem o rio em direção à aldeia. Alma e Isaías mantêm um diálogo acerca de suas expectativas. Ela acusa o ex-índio de ser pessimista em relação ao futuro de seu povo. Ele se mostra preocupado com a reação dos mairuns a Alma, e pensa em maneiras de não dar a entender que ela é sua mulher, com a desculpa de que deve tomar como esposa uma mulher do clã dos Carcarás. Alma reflete sobre sua vida vazia e sem sentido no Rio de Janeiro e alimenta um desejo de encontrar a si mesma.

Avá é o nome mairum do ex-seminarista Isaías, que tem o direito de herdar a posição de tuxaua. Percebe-se nele uma forte contradição em se valorizar como representante de seu povo e, ao mesmo tempo, esperar se transformar num homem comum, indistinguível de qualquer outro. Sua cicatriz mairum, que são duas queimaduras debaixo dos olhos, estão apagadas, o que representa seu conflito de identidade. A sua posição remete à fragilidade da situação na qual se encontram os aproximadamente duzentos mairuns de sua tribo, desamparados e à mercê da vontade do homem branco. Constantemente há a transcrição das reflexões conflituosas da personagem sobre sua identidade:

“A verdade está, porém, com o padre Ceschiatti: minha virtude é negativa. Mais filha da fraqueza que da força. (...) Não sou, nunca fui nem serei jamais Isaías. A única palavra de Deus que sairá de mim, queimando a minha boca, é que sou Avá, o tuxauarã [herdeiro da chefia de guerra dos mairuns por via matrilinear], e que só me devo a minha gente Jaguar da minha nação Mairum”. (p.43-45)

Isaías ressalta a ambigüidade que há na vida terrena dos mairuns, inclusive na divisão social da tribo e dos clãs, para em seguida refletir sobre a sua própria. Quando volta à aldeia, volta em busca do que ficou perdido, volta para tentar recuperar o passado. Acredita que o verdadeiro Avá nascerá quando se desvestir de si mesmo, ou melhor, do seu eu cristão, católico, branco:

“Não sou inocente. Não sou culpado. Sou um equívoco.(...) Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glória sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada”. (p.76)

“Sou o outro em busca do um. Sou o que resulto ser, ainda, nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram”.(p.107)

Nas conversas com Alma, Isaías sempre se refere à devastação dos mairuns pelas doenças dos caraíbas. No começo do contato, todos os índios queriam civilizar-se, mas depois notaram que no mundo dos brancos só lhes cabiam lugares que nem os bichos aceitariam. Antes de chegar à tribo, ele relembra da doença que lhe fez ir para a missão, e os cuidados que o padre Vecchio lhe devotou. Sentindo a vocação de missionário dentro de si, ele resolve partir para o sacerdócio. Já agora no retorno à terra natal, sente-se depenado e vazio: “eu fui a mairunidade. Agora sou um índio qualquer”.

Depois de sobreviverem a uma queda d´água perigosa, Isaías e Alma finalmente chegam à Missão. Os antigos padres insistem para que Isaías se arrependa e volte à Ordem, e para que Alma retorne a Brasília. Índias velhas que moram na Missão atacam Isaías, e ele sente que deve ir direto para a tribo. Sozinho em seu quarto, o ex-aspirante a sacerdote medita:

“Estou seco, meu Pai, como a fonte que secou sozinha no deserto, sem matar nenhuma sede. Tu renunciaste a mim. Eu também renuncio a ti. Minha vergonha, antes, era meu orgulho: pensava que conduzia no peito, como um luzeiro, a Tua marca. Sabia que a conduzia. Meu orgulho agora é minha vergonha: é saber que sempre estive vazio de ti, porque esta é a Tua vontade. (...) Eu era a minha obra. Agora sei que era uma moeda falsa. Minha santidade era uma vaidade.

Quando chegam à tribo, Isaías e Alma causam grande sensação. Todos os homens mairuns rodeiam o Avá, bebendo assombrados as palavras dele sobre o mundo dos brancos. O Avá fala sobre a tecnologia, sobre os lugares onde esteve, sobre suas viagens. Os índios perguntam acerca dos deuses dos brancos e do seu modo de vida.

Alma é levada pelas mulheres e tocada, sentida, admirada por todas. Eles comparam seu corpo feminino ao dela, estranham a presença dos pelos pubianos, roçam seus pés macios, sua pele lisa, seus cabelos loiros.

O narrador, antes deles chegarem à aldeia, diz que Alma “adivinha que, de alguma forma, Isaías está morrendo e ela está nascendo e vice-versa”(p.233). Jaguar, sobrinho de Isaías, senta-se junto ao aroe em silêncio, mas este adivinha a indagação. Ambos estranham o Avá, pois não era aquele propriamente o grande líder guerreiro esperado:

“O Avá veio na forma do embuçado, do encoberto que não se deixa ver. Sua forma visível só esconde, só encobre a sua essência verdadeira. É preciso não o julgar. Não pensar um momento sequer que ele seja tão-somente o que se vê. Atrás dele está o escondido, o recôndito, cumprindo a sina que lhe impuseram os pajés-sacacas da Missão. Nele, através dele, se cumpre algum desígnio. Divino ou demoníaco? Qual?” (p.252-253)

Os pajés-sacacas são os missionários, e a sina refere-se ao destino de Isaías, inicialmente traçado de modo a se tornar o tuxauareté, o maior líder guerreiro de todos, mudado para ser o sacerdote que iria catequizar os mairuns. Ao longo da narrativa, percebe-se que a personagem transitará entre esses dois mundos para sempre, e jamais conseguirá assumir totalmente sua identidade indígena novamente. Sua visão sobre os mairuns se assemelha à que os brancos têm dos índios porque, quando retorna, os vê como preguiçosos que vivem à toa, fazendo brincadeiras inúteis, relegando o trabalho aos mais velhos e às mulheres. Estas, ao invés de produzir mais, demandam seus esforços em fazer balaios e artefatos que expressem suas particularidades, ao invés de fazer algo que pudessem vender.

Logo que chega, Isaías tem a idéia de canalizar para a produção agrícola o vigor dos mairuns, de motivá-los para o setor econômico, introduzi-los na vida prática. Os índios, mesmo sabendo que aquela não era a época das plantações, obedecem ao Avá, mas as plantações fracassam, as plantas não germinam adequadamente. Alma adverte o amigo, admirada que está com a vida indígena, de que os mairuns já fizeram a “revolução-em-liberdade”:

“Não há ricos, nem pobres; quando a natureza está sovina, todas emagrecem, quando está dadivosa, todos engordam. Ninguém explora ninguém. Ninguém manda em ninguém. Não tem preço essa liberdade de trabalhar ou folgar ao gosto de cada um”(p.256).

Os mairuns acreditam na existência de uma Terra sem Males, e crêem que todos, independentemente de seu comportamento, irão para o céu. Essas idéias se chocam com as do Avá, agora um índio cristianizado, que sem perceber, deseja imprimir no mundo indígena as marcas do mundo dos caraíbas, dos civilizados, obrigando-os a trabalhar visando o lucro, e não a subsistência.

No capítulo “Maíra : Remui”, quando o deus Maíra entra dentro do aroe e fala através de sua boca, temos a transcrição de suas dúvidas em relação ao Avá, e uma reflexão sobre a única possibilidade de salvação para os mairuns que, afinal, se relacionará com a simbologia por trás da morte de Alma:

“O Avá veio e não veio. Este que veio é e não é o verdadeiro Avá. (...) Este é o que restou de meu filho Avá, depois que os pajés-sacacas mais poderosos dos caraíbas roubaram sua alma. Ele anda por aí, meio dormindo, perdido para si, perdido para nós. Atrás dos seus olhos está a névoa, a cegueira dos que já não têm alma para morrer. Ele não é mais um vivente mortal, como nós. (...)

Nós, os mairuns, estamos acabando. Conosco acaba Maíra-Monan, Mairahú, Maíra-Ambir o nosso Criador. Quem começou tudo isso foi mesmo Maíra-Coraci.(...) Quem sabe o Velho, o Sem-nome, manda outro arroto dele, para entrar em alguma Mosaingar? Aí, nasceriam outra vez os filhos gêmeos do Senhor, para começar tudo de novo”(p.258).”

No capítulo “Maíra : Teidju”, temos as lamentações do oxim, que reclama da vida reclusa e isolada de curandeiro que leva, por sofrer preconceitos dos demais. Os mairuns têm uma relação de amor e ódio com o feiticeiro, por ele poder supostamente dar a vida como trazer a morte, e cobrar o que quiser por seus serviços. Como não consegue caçar ou exercer outros afazeres tribais, Isaías acaba buscando a companhia do oxim. Mas Teidju pressente um fedor de morte, um anúncio de agouro através dos animais da natureza.

Já no capítulo “Maíra : Jaguar” temos a revelação dos anseios do sobrinho de Isaías sobre o posto de tuxaua. Seguindo a tradição, seria Jaguar o tuxaua depois da morte de Isaías, no entanto, ele já se sente pressionado a assumir o posto, pois o Avá se mostra cada vez mais inapto a assumir o posto. É sua voz que nos revela as relações sexuais que mantém simultaneamente com Inimá, a mulher destinada ao tio Avá, e Alma, a branca loira Canindejub que acaba por se integrar à cultura mairum.

Isaías repreende Alma por manter relações com vários índios, e diz que ela está se tornando uma mirixorã, ou seja, uma mulher disponível, que não se casa, não tem filhos e não possui nenhuma interdição clânica que a impeça de se relacionar sexualmente com qualquer mairum.

Em “Micura : Canindejub”, a voz do deus Micura Sariguê, irmão de Maíra, se manifesta através de Alma e nos dá uma interessante visão sobre a sensualidade e a libido dessa mulher branca que quer viver como índia:

“Ó mulher macha, vive do seu sumo. De todo o corpo tira gozo, gozoso. Tira e dá. É uma beleza esta pele lisa, coberta de penugem, com seus tufos de pentelhos. Bem esticada, esse pelame daria para cobrir minha cara na cheia. Pele de pêlos e poros sensibilíssimos. Feita para sentir as vibrações do ar, para outros corpos saborear.” (p.314)

Micura ainda diz que talvez voltará para deixar uma semente dentro de Alma, o que sugere como, num plano metafórico, os filhos que a Canindejub perderá são fruto de um acasalamento simbólico com os deuses mairuns.

Durante sua gravidez, Alma se pergunta como fará para dar a luz ao filho — aparentemente, ela não sabe que está grávida de gêmeos — e se conseguirá parir como as índias. Reflete também sobre sua identidade e a do filho, já que ele é uma mistura, e ela mesma está misturada, pois é uma branca que assumiu uma postura de mirixorã, mas que não deixa de ser uma civilizada:

“Que será este meu filho ou esta minha filha? Será mairum como eu quero que seja? Será um branco, um caraíba, no sentido de civilizado e de cristão, como eu fui, como eu era, como ainda sou, apesar de mim? (...) Aqui um filho pertence à mãe. É do clã da mãe. Respeitará ao tio, nunca ao pai. Este meu filho, por isso, apesar de tão mairum que é, é um filho meu, do clã que não tenho. (...) Mas é muito ruim para uma pessoa ser apenas um pouco alguma coisa. Fica dependurada entre dois mundos, como este pobre Isaías, ou como eu mesma” (p.328)

“O mal de Isaías é ser ambíguo. Ser e não ser. Não é índio, nem cristão. Não é homem, nem deixa de ser, coitado. Ser dois é não ser nenhum, ninguém”. (p.346)

É notória a identificação entre as figuras das personagens, porque ambas passam por conflitos de identidade. No entanto, enquanto Isaías pretende resgatar o que está perdido, sua posição de tuxauarã, de herdeiro do tuxaua Anacã, Alma não deseja “mairuzinar-se” completamente, mas, sim, quedar-se na aldeia enquanto lhe der prazer. Apesar disso, tanto Alma quanto Isaías passam por um processo de desintegração de suas identidades étnicas.

Quando finalmente vê a índia Mbiá dando a luz, Alma se assusta com os costumes mairuns. O marido segura a mulher pelos sovacos e ela faz força para baixo. Quando a criança nasce, é limpa e o cordão umbilical é cortado, mas a mãe se levanta em seguida. Será o pai que ficará no choco, de resguardo. Alma completa:

“Os partos que eu conheço de ouvir contar são traumas terríveis, com berreiros e sofrimentos medonhos. Sobre nós pesa até hoje a praga divina: hás de parir com dor”. (p.349).

Alma possuía, segunda ela mesma, uma vida libertina e vazia, que deixa de lado para aspirar uma vida cristã, com o intuito de reformar uma sociedade selvagem. Em contrapartida, Isaías rompe com sua formação religiosa e anseia uma vida pagã, para restabelecer os valores de seu povo mairum. Apesar disso, Alma, mesmo com seu espírito profundamente crítico, respeita os costumes indígenas, adapta-se à vida mairum. Já Isaías se crê igual aos mairuns, mas não consegue se desvencilhar do mundo cristão onde é educado, e por isso enxerga os índios através de preconceitos sociais e religiosos[6].

Isaías afigura-se, portanto, como o mediador entre dois mundos, que encarna o violento processo de transformação da identidade. É um ser ambíguo, cujas preces antecipam o fracasso de sua reintegração à sociedade dos mairuns, porque pede, ao mesmo tempo, para o Deus cristão e para os deuses mairuns para torná-lo novamente indistinguível entre os demais índios — ele pede a um deus cristão que o torne novamente numa criatura pagã. Já Alma repudia a sociedade em que vive, acreditando que possui uma vocação religiosa para ser missionária entre os índios. Mas, ao invés de modificá-los, acaba aceitando-os.

As mortes

O final de Maíra é todo marcado por mortes, o que sugere o sentido do sacrifício apontado pela estruturação do romance na forma da missa católica, conforme apontado no início do estudo.

A personagem Juca, o “subproduto oficial entre a civilização e a aldeia”, através de quem se faz conhecer a miséria econômica e moral do trabalho escravo dos barranqueiros[7] e a ambição desmesurada que ajudará a destruir a floresta amazônica, é morto, junto com seu capanga, supostamente pelos selvagens xaepes.

Xisto, o fanático que “traduz a obsessão religiosa resultante de uma cultura mal assimilada”, arrancará a língua de Perpetinha, uma de suas mais fiéis seguidoras, e depois a matará. Apesar de ser ferido, ele corre para a mata e se esconde.

Uma indiazinha mairum, Cori, será mordida acidentalmente por uma cobra, e morrerá também. Os mairuns a levam desesperadamente ao oxim, mas ele não consegue fazer nada pela garotinha. Embalados pela fúria, os índios matam Teidju com as próprias mãos.

Os padres mais velhos da Missão de Nossa Senhora do Ó também falecem.

Uma das partes finais do romance é composta pela cerimônia de amarração do tuxaua. Será Jaguar quem assumirá afinal o posto de líder da tribo, já que Isaías não conseguiu impor-se como o chefe. Ele pede com o olhar ao aroe Remui que o amarre; em seguida, amarra seus companheiros, que se tornam seus miaçus-guerreiros. Porém, no dia seguinte, todas as mulheres, inclusive as meninas, amanhecem menstruadas. Segundo a cultura mairum, a menstruação é causada pela flechada do deus Micura. O sangue que escorre é o dos filhos que as mulheres carregariam dentro de si e que não nascerão, o que se afigura como motivo de dor e vergonha para elas.

Além de todas essas mortes, a de Alma e dos gêmeos que carregava dentro de si, que abre o romance, permeia todo o enredo e traduz a destruição do universo mítico dos mairuns. O mito representa a memória, já que para ser conhecido é necessário que ele seja narrado, contado, presentificado através de uma narração, para não ser esquecido. Fundamentados numa concepção cíclica de mundo, os mairuns, após a situação desagregadora da morte de Anacã, negam a idéia do fim definitivo através dos rituais de reintegração, que acabam por preservar a vida indígena[8]. A própria narração dos rituais serve para recuperar a identidade mairum e reafirmar o tempo e o espaço de origem. Anacã representa, então, a memória a ser conservada dentro da tribo; os rituais da cerimônia fúnebre ajudam a inscrever sua “morte gloriosa” na memória dos índios. Assim, no romance, a busca dessa memória é o resultado de uma ordem social e cultural já fragmentada pelo processo civilizatório do homem branco.

Os mairuns, como dito, vivem imersos num tempo circular, mítico, dentro do qual a vida se repete: “O círculo está escrito no pátio, no baíto e na aldeia. Nesses espaços, os mairuns distribuem-se também em forma de círculo, de roda, conforme a organização clânica”[9]. Alma, portanto, é vista pelos mairuns como a Mosaingar, aquela que está prenhe do plano sagrado, que dará a luz a novos deuses que, como o aroe Remui destaca, farão começar tudo de novo, ou seja, trarão a renovação para a vida indígena.

No entanto, metaforicamente, a morte de Alma e dos gêmeos representa a morte da própria cultura indígena em contato com o mundo civilizado. Significa um rompimento dessa circularidade, dessa vida cíclica, do universo mítico, e a inscrição brutal do mundo indígena no mundo dos brancos.

Junto com o mundo indígena, morrem seus costumes, suas tradições e, sobretudo, seus deuses. No capítulo “Mairañee”, Maíra reflete sobre o fim de seu povo e de si mesmo, chamando-se de um “Deus-mortal”:

“Sem eles, quem me há de lembrar, louvar? Povo meu que refiz quebrando molde de Deus-Pai. Quem fez o meu pai fui eu. Mas quem me fez?

Um mundo despovoado de mairum-mairuns não estará, coitado, de mim também despojado?” (p.332)

Egosum

O capítulo “Egosum”, que em latim significa “sou eu”, encontra-se precisamente no meio da obra. É uma espécie de marcação proposital feita por Darcy Ribeiro, para deixar sua voz sobressair-se em relação à voz do narrador onisciente que aparece com freqüência.

Nesse capítulo, pode-se considerar que há uma escrita auto-biográfica, disfarçada de escrita literária. Ao mesmo tempo que se afirma que a voz presente é a do próprio Darcy Ribeiro, autor de Maíra, sugere-se a presença de um metanarrador, ou seja, um narrador que fala sobre os demais, ou que se encontra acima das outras vozes narrativas.

Trata-se de um capítulo repleto de lirismo, decorrente do uso da primeira pessoa aliada à manifestação poética da linguagem. Nele, o autor/metanarrador revela que o Avá que conhecera se chamava Tiago, e que o vira emplumando os ossos da filhinha entoando uma ladainha em latim. Anacã, segundo ele, “era baixinho, gordo e risonho. O mais parecido com um intelectual que eu encontrei num índio”(p.204). Numa interlocução imaginária com o poeta Carlos Drummond de Andrade, ele revela a inspiração para a personagem advinda dos “barrocos profetas vociferantes” esculpidos por Aleijadinho: Isaías, o da boca queimada pela palavra de Deus.

Essa voz narrativa peculiar relata suas experiências pessoais com as tribos indígenas. Durante a convivência com os índios, ela revela, talvez, o grande conflito que impulsiona a obra, que é o da impossibilidade de aceitar totalmente a cultura do “outro”, o choque cultural decorrente da necessidade de entendimento de uma cultura diferente:

“Aqueles meses de convívio inelutável da maloca quase me enlouqueceram. Só na prisão das quatro paredes me senti assim contido e constrangido. Condicionados a viver em casas com muros e portas para nos isolar, para nos esconder, não suportamos aquela comunicação índia sem fim, de dia e de noite, vivendo sempre uma vida totalmente comungante.” (p.205)

Esse Darcy Ribeiro disfarçado de narrador refere-se também ao seu enfrentamento com a morte, quando se viu cara a cara com um índio furioso, que acabara de perder seu único filho, e que por isso tinha o “direito”, segundo os costumes indígenas, de fazer o que quisesse para acalmar-se. Acrescenta :

“Mas quando me veio a hora do medo, do medo derradeiro, do medo feroz de saber, afinal, com certeza certa que sou mortal e que viverei, doravante, de mãos dadas com a minha morte; então, só então, percebi que o urgente é viver. Estou aprendendo”.(p.207)

O capítulo termina com uma reflexão poética sobre a continuidade da existência através da memória:

“Ai vida que esvai distraída, entre os dedos da hora, tirando da mão até a memória do tato dos meus idos. Só persistimos, se tanto, na usura da memória alheia, à véspera do longo esquecimento.” (p.207)

O capítulo “Egosum” sintetiza, assim, as três temáticas principais de Maíra: o choque cultural, que será retratado através dos conflitos vivenciados por Isaías e Alma; a idéia da morte, associada ao fim da cultura indígena em contato com a civilização; e a importância da memória como uma barreira à finitude definitiva, já que a narração dos rituais e da mitologia mairum constituem a inscrição e a perpetuação de sua cultura num futuro incerto.

BIBLIOGRAFIA:

COELHO, Haydée Ribeiro. Exumação da memória. 1989. 212 f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

NETO, Arnaldo Rosa Vianna. Multiculturalismo e pluriculturalismo. IN: Conceitos de literatura e cultura. Org: Eurídice Figueiredo. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

RAMOS, Maria Luiza. Maíra: leitura/escritura. Cadernos de Lingüística e Teoria da Literatura, Belo Horizonte: UFMG, 1985. p.149-177

RIBEIRO, Darcy.Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

RIBEIRO, Darcy.Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Questões objetivas

1) Todos os personagens, que caracterizam o livro Maíra, de Darcy Ribeiro, transitam entre a aldeia e a civilização, exceto.

a) Alma.

b) Isaías.

c) Juca.

d) Anacã

2) Todas as alternativas abaixo sobre a obra Maíra, estão corretas, exceto.

a) A viagem do personagem Isaías é geográfica e existencial.

b) A presença do Estado no universo indígena é marcada pela negligência, pelo descaso.

c) O major Nonato, designado a investigar a morte de alma, sensibiliza-se com os costumes indígenas.

d) Os trabalhos missionários entre os índios são realizados por católicos e protestantes, e são vistos ironicamente como inócuos.

3) Todas as alternativas abaixo sobre o deus Maíra, estão corretas, exceto.

a) Maíra vive, num primeiro momento, como força da natureza.

b) Maíra é um deus que reforma o mundo do Deus-Pai.

c) Maíra transforma-se em Iaci, a lua, enquanto seu irmão, Micura, transforma-se em Coraci, o sol.

d) Maíra desce do céu e penetra no corpo de vários personagens.

4) Todas as partes que compõem o romance Maíra, encontram-se devidamente identificadas, exceto.

a) Em “Antífona”, primeira parte de Maíra, os rituais de reintegração à vida e de integração à morte iniciam e terminam com a morte de Alma.

b) Em “Homilia”, observa-se o relato sobre a mitologia mairum e a trajetória da viagem dos protagonistas, Isaías e Alma.

c) Em “Cânon”, tem-se o desdobramento do deus Maíra em vários “eus”, ao partilhar com os homens as experiências terrenas.

d) Em “Corpus”, última parte do romance, observa-se o término do ciclo mairum, em que Jaguar se transforma no tuxaua de seu povo.

5) Com base na leitura de Maíra, de Darcy Ribeiro, é INCORRETO afirmar que:

a) exalta os valores culturais dos índios, mas faz um alerta contra o seu extermínio gradual causado pela civilização.

b) demonstra o choque cultural no plano da narrativa através da estruturação do romance a partir das partes da missa católica.

c) configura-se como uma obra com uma visão romântica sobre o povo indígena, fruto dos árduos trabalhos do autor junto aos índios mairuns.

d) trata-se de uma narração que exalta a diversidade cultural do Brasil, mas que não deixa de mostrar o impacto existente entre as culturas que compõem o país.

6) Com base na leitura de Maíra, de Darcy Ribeiro, só é CORRETO afirmar que:

a) Isaías rejeita o sacerdócio por descobrir em si a semente do ateísmo.

b) Alma encontra dentro do meio mairum o ateísmo que sempre soubera estar dentro de si.

c) Anacã prediz a vinda do novo tuxaua que salvará os mairuns da extinção, por isso decide morrer.

d) Remui tem visões sobre o novo tuxaua, mas elas são frustradas quando o Avá retorna numa forma diferente da imaginada pelo aroe.

7) Quanto à polifonia presente em Maíra, é CORRETO afirmar que:

a) espelha o preconceito existente no meio civilizado em relação aos índios.

b) demonstra a impossibilidade de se abarcar a cultura indígena através exclusivamente do olhar do mundo civilizado.

c) sugere a coexistência harmônica entre as diversas culturas no Brasil.

d) liga-se à constituição multicultural brasileira, para exaltar a propagação da cultura indígena no mundo dos brancos.

8) Sobre as personagens Alma e Isaías, de Maíra, só é CORRETO afirmar que:

a) Alma é uma carioca que engravida dentro da tribo mairum e passa a desprezar o modo de vida indígena.

b) após Alma engravidar, ela teme perder os gêmeos que carrega dentro de si por causa da falta de amparo médico dentro da aldeia.

c) Isaías mantém uma relação pessoal distanciada de Alma devido ao seu pudor alimentado pela formação religiosa.

d) Isaías é o Avá que renunciou ao seu posto de tuxaurã dentro do mundo mairum, e que retorna à aldeia na tentativa de encontrar a si mesmo.

9) São temáticas pertinentes à análise de Maíra, EXCETO:

a) o desencantamento do mundo através da destruição dos deuses indígenas.

b) a imposição da lógica capitalista dentro do universo indígena.

c) o conflito gerado pelo choque entre culturas que começaram a se discriminar na atualidade.

d) a frustração dos mairuns diante da marginalização presente no mundo civilizado.

10) Sobre a mitologia mairum, é INCORRETO afirmar que:

a) Mosaingar é a mulher virgem que engravida do Deus-Pai para dar a luz aos novos mairuns.

b) Maíra satisfaz aos anseios orgânicos e pessoais dos ancestrais dos mairuns.

c) Mairahú é visto como um deus feroz, arbitrário e caprichoso, que não se importa com o bem-estar dos mairuns.

d) Micura é o irmão de Maíra que o acompanha nas suas peripécias de modificação do mundo originalmente criado por Mairahú.

11) Dos episódios destacados abaixo, só se narrado no romance Maíra:

a) os rituais que envolvem o sepultamento de Alma.

b) os anos de seminário de Isaías.

c) a travessia de Alma e Isaías em busca da tribo dos mairuns.

d) as visões de Anacã sobre o novo tuxaua.

12) Para compor Maíra, Darcy Ribeiro utilizou todos os recursos destacados abaixo, EXCETO:

a) linguagem burocrática e objetivista.

b) transcrição de documentos e cartas oficiais.

c) linguagem poética redundante e paradoxal.

d) referências intertextuais bíblicas.

13) Sobre a narração dos rituais que cercam a morte de Anacã, é INCORRETO afirmar que:

a) legitimam a importância do tuxaua dentro da tribo mairum.

b) ajudam a preservar sua identidade de tuxaua e a inscrevê-la na memória coletiva.

c) conferem importância ao aroe Remui, que passa a ser o responsável pela chefia da tribo.

d) liga-se à renovação decorrente do término de um ciclo e o início de outro, no caso, o da chefia da tribo.

14) Leia atentamente o trecho do depoimento de Darcy Ribeiro:

“Assim foi que aprendi a olhar os índios com os olhos deles mesmos. A partir de então, caí num questionamento de mim mesmo como antropólogo. Primeiro, pela crítica da etnologia aparentemente científica e inocente que cultivara até então, estudando parentescos ou mitologias ou colecionando artefatos, num total descaso pelo trágico destino dos índios que contavam os contos ou faziam os artefatos”.

Com base no texto acima e em seus conhecimentos sobre Maíra, só é CORRETO afirmar que:

a) o autor propõe o isolamento dos índios em reserves para evitar o contato com o homem branco.

b) o autor sugere a importância do olhar descentrado do antropólogo, que propicia o entendimento sensível sobre a cultura que estuda.

c) o autor conclui que todo olhar científico sobre os índios é precário, porque trata de uma cultura demasiadamente primitiva.

d) o autor discute algo que extrapola o romance Maíra, mais voltado para a retratação poética da cultura indígena.

15) Leia atentamente o trecho do depoimento de Darcy Ribeiro:

“Nunca escrevi nada com tanta emoção, mesmo porque meu tema ali era dar expressão ao que aprendi, no longo convívio com os índios, sobre a dor de ser índio, mas também sobre a glória e o gozo de ser índio. Enquanto eu o escrevi, eu estava lá na aldeia com eles. Era, outra vez, um jovem etnólogo, aprendendo a ver seu povo e a ver o meu mundo com os olhos deles”.

Com base em seus conhecimentos sobre Maíra, é INCORRETO afirmar que o trecho acima:

a) demonstra a habilidade do ficcionista em recriar culturas primitivas e desprezar a visão científica.

b) justifica o recurso da polifonia dentro do romance.

c) aborda a temática da destruição da cultura indígena.

d) explica a existência da voz narrativa do autor ficcionalizada dentro do romance.

Gabarito

1) d

2) c

3) c

4) a

5) c

6) d

7) b

8) a

9) c

10) a

11) c

12) c

13) c

14) b

15) a



[1] Fonte: site da Academia Brasileira de Letras

[2] RIBEIRO, p.155, 1997.

[3] RIBEIRO, p.166, 1997.

[4] NETO, p.292, 2005.

[5] COELHO, p.62, 1989.

[6] RAMOS, 1985.

[7] RAMOS, p.172, 1985.

[8] COELHO, 1989.

[9] COELHO, 1989.

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