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[PROSA_Oficina de textos_UFMG 2011] Salinha para resolução de questões abertas de Literatura (vestibular UFMG 2011) . Informações: emaildoaloisio@yahoo.com.br

2 de dezembro de 2006

Trechos selecionados de Dom Casmurro (Machado de Assis)_Complemento à aula

Dom Casmurro (Machado de Assis)

CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.



CAPÍTULO XVIII / UM PLANO
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos.


CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.


CAPÍTULO LVI / UM SEMINARISTA
Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. (...) Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me freqüentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra.


CAPÍTULO LIX / CONVIVAS DE BOA MEMÓRIA
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.


CAPÍTULO LXV / A DISSIMULAÇÃO
(...)minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.
—Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.
—Não é? disse ela com ingenuidade.


CAPÍTULO LXXV / O DESESPERO
Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles.
Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com minha mãe, e naturalmente comigo, como das outras vezes; mas, por maior que fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto e Capitu ria alto, falava alto, como se me avisasse; eu continuei surdo, a sós comigo e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue...



CAPÍTULO XCVIII / CINCO ANOS
A separação não nos esfriou. Ele [Escobar] foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou,—adivinha com quem,—casou com a boa Sancha a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua cunhadinha." Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros


CAPÍTULO CXVIII / A MÃO DE SANCHA
Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.(...) Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.
O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo, rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado, nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e apertando...


CAPÍTULO CXXIII / OLHOS DE RESSACA
As minhas [lágrimas] cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.


CAPÍTULO CXLV / O REGRESSO
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe,—creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mas nem menos o meu antigo c jovem companheiro do seminário de José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à moderna naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também estava de preto. Sentamo-nos.
—Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele
A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui. diante de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.
— Morreu bonita, concluiu.
—Vamos almoçar.
(...) Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.
—De que sexo? perguntei rindo.
Sorria vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dous colegas da universidade. Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Como disse que uma das conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando esta idéia me atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz e quis apertá-lo ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e agradecidos.


CAPÍTULO CXLVI / NÃO HOUVE LEPRA
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dous amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos." Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.
Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, achei que era exato, mas tinha ainda um complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação." Parei e perguntei calado: "Quando seria o dia da criação de Ezequiel?" Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.


CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO?
Agora , por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à "História dos Subúrbios.

Aula: Cora Coralina (Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais)



Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (Cora Coralina)
Na velhice dos muros de Goiás
O tempo planta avencas”

Ana Lins do Guimarães Peixoto Bretas nasceu em 20 de agosto de 1889, no estado de Goiás, e adotou o pseudônimo Cora Coralina para escrever suas poesias.
Foi tida como menina magricela e desengonçada. Porém, tomou uma decisão surpreendente, fugindo de casa em 1911 para se casar com Cantídio Bretas, um advogado divorciado. Morou então em São Paulo. Foi convidada para participar da Semana de Arte Moderna em 1922, mas recusou o convite. Acredita-se que por impedimento do marido.
Ainda jovem já produzia, mas sua primeira obra publicada foi aos 76 anos de idade com Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965).
Voltou para Goiás onde morreu aos 95 anos, em 1985.
Obras: Meu livro de cordel (1976); Vintém de cobre (1983); Póstumas: Estórias da casa velha da ponte; Os meninos verdes e O tesouro da casa velha da ponte.

Poemas reunidos em duas partes
Primeira: composições líricas. Recontam as estórias da infância, dos becos de Goiás, da escola, das cidades, o canto e a rotina das boiadas e o poema do milho.
Segunda: tom de narrativa, documental. Há entre essas estórias o espaço para os marginalizados: “Mulher da vida”; “Menor abandonado”; “Oração do delinqüente” e “Oração do presidiário”.
Características gerais:
  1. Poesia de caráter telúrico, que demonstra o forte apego e amor à terra e ao que é gerado por ela.
  2. Simplicidade, forte acento sertanejo.
  3. Poemas voltados para questões sociais e históricas da região de Goiás.
  4. Prosaísmo: os poemas possuem um tom de conversa, que ora beira a informalidade, ora o preciosismo da busca da expressão mais adequada para abordar os temas simples do cotidiano e da vida passada da autora.
  5. Tom universalista: temas comuns aos homens, principalmente aos marginalizados socialmente.
  6. Preocupação em retratar costumes e hábitos antigos, e em contar estórias da vida interiorana.
  7. Constante apego à memória: a poesia é uma maneira de reviver o passado.
  8. Ausência de rimas e métrica (versos livres, brancos e bárbaros).

  • Traços modernistas:
    Preocupação em retratar uma linguagem tipicamente brasileira: regionalismos, arcaísmos, gírias, corruptelas, oralidade, linguajar do homem rude.
  • Técnica enumerativa, com seqüências de vocábulos nominais, que acaba por produzir um ritmo cinematográfico para os poemas. Privilegia-se mais o caráter descritivo do que o lado metafórico da escrita.
  • Aspectos nacionalistas, nativistas, primitivistas.
  • Exaltação ao progresso, à vida moderna.
  • Vocabulário moderno, diálogo com a vanguarda européia.
  • Uso também de termos eruditos, bíblicos, latinos, litúrgicos, mitológicos. Há uma religiosidade cristã que permeia a visão poética de Cora Coralina.
  • Referências às rezas latinas, estórias orientais e provérbios populares.

Gênero
1) Lírico. Lembra as elegias (canto de tristeza, melancolia): “E nunca realizei nada na vida./Sempre a inferioridade me tolheu./E foi assim, sem luta, que me acomodei / na mediocridade de meu destino”. “Minha infância” (p. 173)
2) Odes (canto de exaltação, elogio): “Muletas novas, prateadas e reluzentes./ Apoio singelo e poderoso/ de quem perdeu a integridade/ de uma ossatura intacta, (...)” “Ode às Muletas” (p.191)
3) O eu-lírico retrata sua natureza interior, mas se identifica com seres e objetos exteriores: “a cabocla velha”, “a lavadeira do rio vermelho”, “a mulher do povo, “a mulher da vida” e “o vintém de cobre”, objeto que metonimicamente representa sua infância.
4) Poesia fraterna, que se compadece dos marginalizados.
5) Cantos que remetem ao obscuro, aos becos, aos cantos esquecidos.

18 de novembro de 2006

“A hora e a vez de Augusto Matraga” e “Duelo”, extraídos de Sagarana, de G. Rosa

“A hora e a vez de Augusto Matraga” e “Duelo”, extraídos de Sagarana, de G. Rosa
(Material copiado descaradamente da internet, modificado, editado e transformado. Viva o Ctrl+C + Ctrl+V !)


Sagarana: Neste livro, um conjunto de sagas - histórias épicas, folclóricas, de amor, mistério e aventura – Rosa universaliza o sertão, mistura o popular e o erudito, fecunda de vida o mundo primitivo e mágico dos Gerais. As estórias desembocam sempre numa alegoria e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada conto condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira , dos provérbios e cantigas do sertão.


A onisciência do narrador dos contos em terceira pessoa, como “Duelo” e “A hora e vez de Augusto Matraga”, é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia.

Ø Em Sagarana, “não é a linguagem que se acomoda à realidade, mas a realidade que se transforma em linguagem”.
(Utilização de metáforas, rimas, aliterações, assonâncias = prosa poética)


Duelo

Turíbio todo, ex-seleiro de profissão, foi pescar e avisou a mulher, Dona Silivana, que pernoitaria na casa do primo Lucrécio, no Dêcámão, para tentar o pesqueiro das Quatorze Cruzes. Teve má sorte e mudou de idéia, voltou no mesmo dia, deparando com a esposa em amores com o ex-militar Cassiano Gomes, de grande pontaria e notável habilidade com as armas.

Fingiu então que não voltara. Retornou na manhã seguinte, preparou uma viagem, e, no outro dia, foi espreitar a casa de Cassiano Gomes. Meteu-lhe, pelas costas, um balaço na nuca. Soube depois que o alvejado era Levindo Gomes, irmão de Cassiano e com ele muito parecido. Sua viagem programada tornou-se fuga, porque Cassiano Gomes, logo após o enterro do irmão inocente, pôs-se em busca da vingança. Turíbio, então, passa de perseguidor a perseguido e, embora ao alvejar o homem errado tenha demonstrado incompetência, consegue escapar às perseguições de Cassiano, querendo cansá-lo. O militar sofria do coração e, com o esforço da perseguição, poderia encontrar a morte, por causa da doença.

Após cinco meses e meio de fuga cansativa, Turíbio Todo atravessa o Paraopeba e vai para São Paulo. Cassiano não atravessa o rio e retorna para a Vista Alegre, onde reencontra com a mulher do perseguido. Descansa, consulta um boticário, de quem sabe da precariedade do coração, e apressa o recomeço da caçada. Faz, porém, repouso involuntário no Mosquito, um povoado perdido e longe de toda parte.

Na beira da morte auxilia o capiauzinho Timpim Vinte-e-um, que, por agradecimento, jura cumprir sua vingança. Dona Silivana envia a Turíbio Todo a notícia da morte do ex-amante. Quando de volta, dono da vitória e com planos de levar a mulher para a cidade, Timpim Vinte-e-um o liquida, contra a própria vontade, com uma garrucha de dois canos. A vingança de Cassiano se completa pelas mãos de um capiau, que, de acordo com o que prometera ao militar, em seu leito de morte, encontra Turíbio e inesperadamente o mata.

Alegoria do destino: enquanto os dois se perdem na busca de um fim, algo superior a ambos dispõe o contrário.


A hora e vez de Augusto Matraga

Pela estrutura narrativa, pela riqueza de sua simbologia e pelo tratamento exemplar concedido à luta entre o bem e o mal e às angústias que essa luta provoca em cada homem durante toda a vida , este conto é considerado o mais importante de Sagarana.

Augusto Matraga é um fazendeiro violento e beberrão, criador de casos e boêmio, que não respeita as pessoas nem a família. É o maior valentão de todo o lugar, gosta de briga e de deboche, tira as namoradas e mulheres de outros, não se preocupa nem com sua mulher nem com sua filha e deixa sua fazenda arruinar-se. Sua esposa, Dionóra, suporta-o pelo medo que tem da reação do marido se tentar se separar. A filha, por sua vez, não consegue entender por que o pai age dessa maneira.

A mudança na vida de Matraga vem depois de uma emboscada que sofre, pois seus capangas, mal pagos, põem-se a serviço de seu maior inimigo, Major Consilva. A mulher e a filha vão embora com Ovídio Moura, que quer Dionóra por companheira.

Nhô Augusto vai até a fazenda do Major para se vingar, mas seus ex-capangas o espancam, marcam sua nádega direita com o ferro quente de marcar o gado do Major e o jogam numa valeta crendo que ele já estava morto. Augusto Matraga, moribundo, é socorrido por um casal de pretos, que consegue o milagre de fazê-lo sobreviver aos ferimentos.

Quando se recupera, Augusto vai para longe com o casal, tentando acertar o passo de sua vida, perdida e desregrada. Passa, então, um período de ascese, em que busca o sofrimento como forma de purgar os pecados. Num lugarejo bem afastado trabalha duramente de manhã à noite, é manso servidor para todo mundo, reza e se arrepende de sua vida anterior. De homem boêmio e violento, que maltratava a mulher, a filha e todas as pessoas que o rodeavam, Augusto Matraga transforma-se num penitente, num pecador em busca de ascese, da conversão ao mundo de Deus.

Um dia, passa o bando do destemido jagunço Joãozinho Bem- Bem, que é hospedado por Matraga com grande dedicação. Quando o chefe dos jagunços lhe faz a proposta de integrar-se à tropa e receber ajuda deles, Matraga vence a tentação e recusa. Quer ir para o céu, "nem que seja a porrete", e sonha com um "Deus valentão".

Depois de se dedicar durante muito tempo ao trabalho, sem conforto ou diversão, Augusto decide voltar, ao saber que a mulher estava feliz com Ovídio, mas a filha havia se prostituído.

Na viagem, reencontra o chefe jagunço Joãozinho Bem-Bem, que havia hospedado em sua casa, e com quem fizera amizade.

Mas Augusto e o chefe jagunço se desentendem, pois este queria vingar a morte de um capanga e, na ausência do assassino, pretendia matar alguém de sua família. Matraga acha isso injusto e enfrenta o “parente” Joãozinho Bem-Bem.

No final do conto, ambos morrem, mas Augusto tem a sensação do dever cumprido: sua hora e sua vez haviam chegado.

Trecho do diálogo entre o padre e Nhô Augusto, quando este resolve buscar a absolvição de seus pecados:
“- Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um potro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com seta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei seu coração semelhante ao vosso...”(...) Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.
- Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...”

Augusto Esteves, Nhô Augusto e Augusto Matraga são os passos da travessia de um homem ao encontro de seu destino – buscado e construído na dor, mas também na alegria, no encontro com o sagrado e no desfrute dos prazeres mundanos.

1 de novembro de 2006

eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

1) Sobre o título:
RuffatoTalvez eu não seja o mais indicado para responder a questão. Mas, tentarei. O trecho do poema da Cecília Meireles, que serve de epígrafe ao livro, indica uma possível leitura: "eles eram muitos cavalos / mas ninguém mais lembra / de sua pelagem, de sua cor, de sua origem". Assim como ninguém mais lembra daqueles personagens que busquei retratar ao longo dos fragmentos do livro.

↔ A primeira epígrafe relaciona-se à despersonalização que ocorre nos grandes centros urbanos: o indivíduo se transforma em “multidão”.

↔ A segunda epígrafe, “Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios”, extraída do Salmo 82, indica a falta de juízos de valor por parte do “narrador”. Há uma preocupação em descrever, não em julgar, por isso muitas vezes a enumeração substitui a narração.
2) Sobre o livro:
RuffatoQuando escrevo, antes de se tornarem palavras, sirvo-me de imagens. Tento captar o ângulo e a luz para expressar exatamente o que gostaria. Daí a influência da fotografia: o olhar é o olhar de quem tenta ir além da cena que se desenvolve à sua frente. Mas o Eles eram muitos cavalos está muito impregnado também de outras linguagens não-literárias: artes plásticas, cinema, teatro, jornalismo, propaganda, música.

3) Sobre o processo de escrita do livro:
Ruffato
Comecei a pensar o que poderia oferecer como imigrante; eu falei "que contribuição posso dar para São Paulo? Como poderia tentar entender São Paulo?". Então, comecei, durante praticamente uns oito, nove meses, a fazer um monte de experiência. Por exemplo, não há uma coisa escrita que seja só fruto da imaginação. Para a cena da luta de boxe, eu fui ver uma luta de boxe; o estádio de futebol, a marcha das diretas...
Enfim, eu pensei: como a cidade se comporta o dia inteiro? Então, peguei um dia da cidade, não me lembro exatamente qual, e comprei os jornais todos daquele dia e mais aquele monte de informações e guardei. Quando foi julho de 2000, fui para Cataguases e fiquei de férias um mês, enfiado na casa de minha mãe, sozinho. Peguei cola, tesoura, lápis, papel, comecei a escrever à mão, pegava uma notícia de jornal, tentava entender o que tinha por trás daquela notícia, contando experiência pessoal também, e tal. Montava alguma coisa, mas sempre com esse dado da realidade. Depois que fiz isso tudo, deixei de lado, peguei o computador, sentei e fui escrever. Foi um exercício muito interessante. Demorei pra caramba para escrever porque eu não escrevo, reescrevo, então, escrevo, escrevo, escrevo, escrevo até chegar... O resultado foi muito grande, fui descartando um monte de coisas que não se encaixava bem no que eu queria, ou que não conseguia encaixar cronologicamente ou no qual a história não fazia parte.

4) Sobre a escrita:
Ruffato
São inegáveis as mudanças provocadas pelo aparecimento do cinema, da tevê e da internet. No meu caso específico, essas mudanças, principalmente na maneira de descrever a realidade, foram incorporadas antropofagicamente à minha própria linguagem. Eu transformo tudo em linguagem.

5) Sobre literatura e realidade:
Ruffato
Toda literatura está perto da realidade, pois se nutre dela. Há graus de proximidade diferentes. Mesmo quando se trata de uma literatura escapista, a realidade é a referência. No meu caso, a realidade que me interessa é a física - cheiros, sons, volumes, cores e sabores - que informam a realidade metafísica - sentimentos, desejos, angústias, culpas, remorsos, vinganças etc etc. Minha tentativa é a de reproduzir seres de carne e osso em papel. Daí ser tão real. Daí ser tão ficcional. Porque, entre a realidade e a ficção - a poesia.

↔ O uso de referências urbanas contemporâneas e a utilização de uma linguagem marcada pela rapidez, por expressões atuais, por cortes bruscos na narrativa e pelo excesso de informação dão uma sensação de realidade à escrita.

folhetos de simpatias, classificados de jornal (emprego, relacionamentos, eróticos), boletim de previsão do tempo, horóscopo, numerologia
gírias, utilização da linguagem coloquial e de termos chulos
retratos de “personagens” que habitam o grande centro urbano, como, por exemplo, o porteiro, o evangélico, o playboy, o adolescente problemático, casais separados, um taxista, um índio marginalizado e bêbado, uma roda de amigos, um médico, o mendigo, um desempregado, o morador de rua, uma atriz decadente, um casal numa casa de swing, o traficante, a prostituta, um pastor de rua, o acessor político,o corrupto engravatado, um internauta, o torcedor de futebol.
presença de referências de todas as classes sociais e retratação de diversas situações comuns numa grande cidade
Ex: diálogos burgueses sobre viagens ao exterior, expressão de desespero diante da falta de dinheiro para comprar comida para o filho recém-nascido, contraste entre um operário morto e os clientes de um restaurante elegante, cotidiano asfixiante de trabalhadores sem perspectiva de melhora, medo de ser assaltado no trânsito e ser assassinado, dificuldades no relacionamento conjugal ligadas à opressão causada pela vida na periferia, angústia diante da impossibilidade de ajudar crianças que trabalham como ambulantes, agressão de jovem de classe média alta contra porteiro, família de miseráveis e marginalizados se espremendo em um barracão imundo, depredação de uma escola pública por usuários de drogas, relacionamentos entre pais divorciados e seus filhos, preocupação das famílias com tiroteios freqüentes, pastor que vai até o centro pregar aos berros o evangelho e expor sua regeneração, prostituta prestes a ser agredida que se lembra de um antigo cliente, rico e gentil

↔ As situações, as emoções e as reflexões são descritas tanto pelas próprias “personagens” quanto por um observador que não se preocupa em julgar, mas retratar. Muitas vezes, a voz da “personagem” invade a narrativa e a estruturação do texto, marcado pela falta de pontuação constante ou montado a partir de fragmentos aleatórios de frases – é comum que muitos dos “contos/fragmentos/capítulos” terminem bruscamente, como se a frase tivesse sido abandonada. Esse entrecruzamento de vozes narrativas contribui para formar uma composição sólida da realidade urbana brasileira, pois toda ela é marcada pela diversidade mas, ao mesmo tempo, pela exclusão e pelas desigualdades sociais.

↔ A polifonia, a variedade de vozes na narrativa, deve-se à diversidade de “personagens” anônimas que desfilam pelas páginas, surpreendidas nos dramas do seu cotidiano e nos flagrantes da sua existência por um narrador-fotógrafo. São Paulo se tona uma cidade-personagem, e na verdade é ela que nos está sendo narrada, a partir de todas as histórias que se atropelam para formar um grande mosaico. A página negra no final é um negativo queimado, um blecaute, um cochilo ligeiro sem sonhos, a própria noite densa e silenciosa, perturbada pelo gemido de alguém lá fora que acorda um casal amedrontado com a violência urbana, que, por precaução, resolve ficar quieto, pois não há nada a ser feito – “Amanhã a gente fica sabendo”.

29 de outubro de 2006

Conto "José Matias" , do Eça de Queiroz

JOSÉ MATIAS
LINDA tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias – do José Matias de Albuquerque, sobrinho do Visconde de Garmilde... O meu amigo certamente o conheceu – um rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo, destro cavaleiro, duma elegância sóbria e fina. E espírito curioso, muito afeiçoado às ideias gerais, tão penetrante que compreendeu a minha Defesa da Filosofia Hegeliana! Esta imagem do José Matias data de 1865: porque a derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava dentro duma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominàvelmente a aguardente.
Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coimbra, recolhendo do Porto, ceou com ele, no Paço do Conde! Até o Craveiro, que preparava as Ironias e Dores de Satã, para acirrar mais a briga entre a Escola Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tão fúnebre idealismo: Na jaula do meu peito, o coração... E ainda lembro o José Matias, com uma grande gravata de cetim preto, tufada entre o colete de linho branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas, sorrindo pàlidamente àquele coração que rugia na sua jaula... Era uma noite de Abril, de Lua-cheia. Passeámos depois em bando, com guitarras, pela Ponte e pelo Choupal. O Januário cantou ardentemente as endechas românticas do nosso tempo:
Ontem de tarde, ao sol-posto,Contemplavas, silenciosa,A torrente caudalosaQue refervia a teus pés...
E o José Matias, encostado ao parapeito da Ponte, com a alma e os olhos perdidos na Lua! – Por que não acompanha o meu amigo este moço interessante ao Cemitério dos Prazeres? Eu tenho uma tipóia, de praça e com número, como convém a um Professor de Filosofia... O quê? Por causa das calças claras! Oh! meu caro amigo! De todas as materializações da simpatia, nenhuma mais grosseiramente material do que a casimira preta. E o homem que nós vamos enterrar era um grande espiritualista!
Vem o caixão saindo da igreja... Apenas três carruagens para o acompanhar. Mas realmente, meu caro amigo, o José Matias morreu há seis anos, no seu puro brilho. Esse, que aí levamos, meio decomposto, dentro de tábuas agaloadas de amarelo, é um resto de bêbedo, sem historia e sem nome, que o frio de Fevereiro matou no vão dum portal.
O sujeito de óculos de ouro, dentro do cupé?... Não o conheço, meu amigo. Talvez um parente rico, desses que aparecem nos enterros, com o parentesco correctamente coberto de fumo, quando o defunto já não importuna, nem compromete. O homem obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves Capão, que tem um jornal onde desgraçadamente a Filosofia não abunda, e que se chama a Piada. Que relações o prendiam ao Matias?... Não sei. Talvez se embebedassem nas mesmas tascas; talvez o José Matias ùltimamente colaborasse na Piada; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas tão sórdidas, se abrigue uma alma compassiva. Agora é a nossa tipóia... Quer que desça a vidraça? Um cigarro?... Eu trago fósforos. Pois este José Matias foi um homem desconsolador para quem, como eu, na vida ama a evolução lógica e pretende que a espiga nasça coerentemente do grão. Em Coimbra sempre o considerámos como uma alma escandalosamente banal. Para este juízo concorria talvez a sua horrenda correcção. Nunca um rasgão brilhante na batina! nunca uma poeira estouvada nos sapatos! nunca um pêlo rebelde do cabelo ou do bigode fugido daquele rígido alinho que nos desolava! Além disso, na nossa ardente geração, ele foi o único intelectual que não rugiu com as misérias da Polónia; que leu sem palidez ou pranto as Contemplações; que permaneceu insensível ante a ferida de Garibáldi! E todavia, nesse José Matias, nenhuma secura ou dureza ou egoísmo ou desafabilidade! Pelo contrário! Um suave camarada, sempre cordial, e mansamente risonho. Toda a sua inabalável quietação parecia provir duma imensa superficialidade sentimental. E, nesse tempo, não foi sem razão e propriedade que nós alcunhámos aquele moço tão macio, tão louro e tão ligeiro, de Matias-Coração-de-Esquilo. Quando se formou, como lhe morrera o pai, depois a mãe, delicada e linda senhora de quem herdara cinquenta contos, partiu para Lisboa, alegrar a solidão dum tio que o adorava, o general Visconde de Garmilde. O meu amigo sem dúvida se lembra dessa perfeita estampa de general clássico, sempre de bigodes terrìficamente encerados, as calças cor de flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas presilhas sobre as botas coruscantes, e o chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, ávida de vergastar o Mundo! Guerreiro grotesco e deliciosamente bom... O Garmilde morava então em Arroios, numa casa antiga de azulejos, com um jardim, onde ele cultivava apaixonadamente canteiros soberbos de dálias. Esse jardim subia muito suavemente até ao muro coberto de hera que o separava de outro jardim, o largo e belo jardim de rosas do Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torrãozinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a casa da “Parreira”. O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece Helena de Tróia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira... Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da sua grande caleche, ou nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou nos dois bailes da Assembleia do Carmo, de que o Matos Miranda era um director venerado. Por gosto borralheiro de provinciana, ou por pertencer àquela burguesia séria que nesses tempos, em Lisboa, ainda conservava os antigos hábitos severamente encerrados, ou por imposição paternal do marido, já diabético e com sessenta anos – a Deusa raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade constante, quase irremediàvelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José Matias – porque, jazendo o palacete do general na falda da colina, aos pés do jardim e da casa da Parreira, não podia a divina Elisa assomar a uma janela, atravessar o terraço, colher uma rosa entre as ruas de buxo, sem ser deliciosamente visível, tanto mais que nos dois jardins assoalhados nenhuma árvore espalhava a cortina da sua rama densa. O meu amigo decerto trauteou, como todos trauteámos, aqueles versos gastos, mas imortais:
Era no Outono, quando a imagem tuaÀ luz da Lua...
Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da Lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... Ah! Meu amigo, até eu, que já então laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto! Não sei se o José Matias lhe dedicou sonetos. Mas todos nós, seus amigos, percebemos logo o forte, profundo, absoluto amor que concebera, desde a noite de Outono, à luz da Lua, aquele coração, que em Coimbra considerávamos de esquilo! Bem compreende que homem tão comedido e quieto não se exalou em suspiros públicos. Já, porém, no tempo de Aristóteles, se afirmava que amor e fumo não se escondem; e do nosso cerrado José Matias o amor começou logo a escapar, como o fumo leve através das fendas invisíveis duma casa fechada que arde terrìvelmente. Bem me recordo duma tarde que o visitei em Arroios, depois de voltar do Alentejo. Era um domingo de Julho. Ele ia jantar com uma tia-avó, uma D. Mafalda Noronha, que vivia em Benfica, na quinta dos Cedros, onde habitualmente jantavam também aos domingos o Matos Miranda e a divina Elisa. Creio mesmo que só nessa casa ela e o José Matias se encontravam, sobretudo com as facilidades que oferecem pensativas alamedas e retiros de sombra. As janelas do quarto do José Matias abriam sobre o seu jardim e sobre o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, ele ainda se vestia, lentamente. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade mais segura e serena! Sorria iluminadamente quando me abraçou, com um sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada; sorria ainda deliciadamente enquanto eu lhe contei todos os meus desgostos no Alentejo: sorriu depois extàticamente, aludindo ao calor e enrolando um cigarro distraído; e sorriu sempre, enlevado, a escolher na gaveta da cómoda, com escrúpulo religioso, uma gravata de seda branca. E a cada momento, irresistìvelmente, por um hábito já tão inconsciente como o pestanejar, os seus olhos risonhos, calmamente enternecidos, se voltavam para as vidraças fechadas... De sorte que, acompanhando aquele raio ditoso, logo descobri, no terraço da casa da Parreira, a divina Elisa, vestida de claro, com um chapéu branco, passeando preguiçosamente, calçando pensativamente as luvas, e espreitando também as janelas do meu amigo, que um lampejo oblíquo do Sol ofuscava de manchas de ouro. O José Matias no entanto conversava, antes murmurava, através do sorriso perene, coisas afáveis e dispersas. Toda a sua atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola e do amicto, para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem deitar, com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço! E depois de enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem reter um delicioso suspiro, que abriu largamente, solenemente, as vidraças! Introibo ad altarem Deœ! Eu permaneci discretamente enterrado no sofá. E, meu caro amigo, acredite! Invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras, e tão indiferente ao Mundo como se o Mundo fosse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés!
E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e imaterial! Não ria... Decerto se encontravam na quinta de D. Mafalda: decerto se escreviam, e transbordantemente, atirando as cartas por cima do muro que separava os dois quintais: mas nunca, por cima das heras desse muro, procuraram a rara delícia duma conversa roubada ou a delícia ainda mais perfeita dum silêncio escondido na sombra. E nunca trocaram um beijo... Não duvide! Algum aperto de mão fugidio e sôfrego, sob os arvoredos de D. Mafalda, foi o limite exaltadamente extremo, que a vontade lhes marcou ao desejo. O meu amigo não compreende como se mantiveram assim dois frágeis corpos, durante dez anos, em tão terrível e mórbido renunciamento... Sim, decerto lhes faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha no muro. Depois a divina Elisa vivia realmente num mosteiro, em que ferrolhos e grades eram formados pelos hábitos rìgidamente reclusos de Matos Miranda, diabético e tristonho. Mas, na castidade deste amor, entrou muita nobreza moral e finura superior de sentimento. O amor espiritualiza o homem – e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista; mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele, sim! ele gozou nesse amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobre-humano. E durante dez anos, como o Rui Blas do velho Hugo, caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante, sonho em que Elisa habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser! Acreditará o meu amigo que ele abandonou o charuto, mesmo passeando solitàriamente a cavalo pelos arredores de Lisboa, logo que descobrira na quinta de D. Mafalda, uma tarde, que o fumo perturbava Elisa?
E esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias modos novos, estranhos, derivando da alucinação. Como o Visconde de Garmilde jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Matias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia frito no céu, e o Colares no céu engarrafado. Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores. Porquê? Porque Elisa também ali ceava, invisível. Daí esses silêncios banhados num sorriso religiosamente atento... Porquê? Porque a estava sempre escutando! Ainda me lembro dele arrancar do quarto três gravuras clássicas de Faunos ousados e Ninfas rendidas... Elisa pairava idealmente naquele ambiente; e ele purificava as paredes, que mandou forrar de sedas claras. O amor arrasta ao luxo, sobretudo amor de tão elegante idealismo: e o José Matias prodigalizou com esplendor o luxo que ela partilhava. Decentemente não podia andar com a imagem de Elisa numa tipóia de praça, nem consentir que a augusta imagem roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto, carruagens dum gosto sóbrio e puro: e assinou um camarote na Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco, bordado a estrelas de ouro.
Além disso, como descobrira a generosidade de Elisa, logo se tornou congénere e sumptuosamente generoso: e ninguém existiu então em Lisboa que espalhasse, com facilidade mais risonha, notas de cem mil-réis. Assim desbaratou, ràpidamente, sessenta contos com o amor daquela mulher a quem nunca dera uma flor!
E, durante esse tempo, o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Miranda não desmanchava nem a perfeição, nem a quietação desta felicidade! Tão absoluto seria o espiritualismo do José Matias, que apenas se interessasse pela alma de Elisa, indiferente às submissões do seu corpo, invólucro inferior e mortal?... Não sei. Verdade seja! aquele digno diabético, tão grave, sempre de cachenez de lã escura, com as suas suíças grisalhas, os seus ponderosos óculos de ouro, não sugeria ideias inquietadoras de marido ardente, cujo ardor, fatalmente e involuntàriamente, se partilha e abrasa. Todavia nunca compreendi, eu, Filósofo, aquela consideração, quase carinhosa, do José Matias pelo homem que, mesmo desinteressadamente, podia por direito, por costume, contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca!... Haveria ali reconhecimento por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal (onde José Matias nunca a descortinaria) aquela divina mulher, e por a manter em conforto, sòlidamente nutrida, finamente vestida, transportada em caleches de macias molas? Ou recebera o José Matias aquela costumada confidência – “não sou tua, nem dele” – que tanto consola do sacrifício, porque tanto lisonjeia o egoísmo?... Não sei. Mas, com certeza, este seu magnânimo desdém pela presença corporal do Miranda no templo, onde habitava a sua Deusa, dava à felicidade de José Matias uma unidade perfeita, a unidade dum cristal que por todos os lados rebrilha, igualmente puro, sem arranhadura ou mancha. E esta felicidade, meu amigo, durou dez anos... Que escandaloso luxo para um mortal!
Mas um dia, a terra, para o José Matias, tremeu toda, num terramoto de incomparável espanto. Em Janeiro ou Fevereiro de 1871, o Miranda, já debilitado pela diabetes, morreu com uma pneumonia. Por estas mesmas ruas, numa pachorrenta tipóia de praça, acompanhei o seu enterro numeroso, rico, com Ministros, porque o Miranda pertencia às Instituições. E depois, aproveitando a tipóia, visitei o José Matias em Arroios, não por curiosidade perversa, nem para lhe levar felicitações indecentes, mas para que, naquele lance deslumbrador, ele sentisse ao lado a força moderadora da Filosofia... Encontrei porém com ele um amigo mais antigo e confidencial, aquele brilhante Nicolau da Barca, que já conduzi também a este cemitério, onde agora jazem, debaixo de lápides, todos aqueles camaradas com quem levantei castelos nas nuvens... O Nicolau chegara da Velosa, da sua quinta de Santarém, de madrugada, reclamado por um telegrama do Matias. Quando entrei, um criado atarefado arranjava duas malas enormes. O José Matias abalava nessa noite para o Porto. Já envergara mesmo um fato de viagem, todo negro, com sapatos de couro amarelo: e depois de me sacudir a mão, enquanto o Nicolau remexia um grogue, continuou vagando pelo quarto, calado, como embaçado, com um modo que não era emoção, nem alegria pudicamente disfarçada, nem surpresa do seu destino bruscamente sublimado. Não! se o bom Darwin não nos ilude no seu livro da Expressão das Emoções, o José Matias, nessa tarde, só sentia e só exprimia embaraço! Em frente, na casa da Parreira, todas as janelas permaneciam fechadas sob a tristeza da tarde cinzenta. E, todavia, surpreendi o José Matias atirando para o terraço, ràpidamente, um olhar em que transparecia inquietação, ansiedade, quase terror! Como direi? Aquele é o olhar que se resvala para a jaula mal segura onde se agita uma leoa! Num momento em que ele entrara na alcova, murmurei ao Nicolau, por cima do grogue: – “O Matias faz perfeitamente em ir para o Porto...” Nicolau encolheu os ombros: – “Sim, pensou que era mais delicado... Eu aprovei. Mas só durante os meses de luto pesado...” Às sete horas acompanhámos o nosso amigo à estação de Santa Apolónia. Na volta, dentro do cupé que uma grande chuva batia, filosofámos. Eu sorria contente: – “Um ano de luto, e depois muita felicidade e muitos filhos... É um poema acabado!” – O Nicolau acudiu, sério: – “E acabado numa deliciosa e suculenta prosa. A divina Elisa fica com toda a sua divindade e a fortuna do Miranda, uns dez ou doze contos de renda... Pela primeira vez na nossa vida contemplamos, tu e eu, a virtude recompensada!”
Meu caro amigo! os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e José Matias não se arredou do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a melancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Júlio Verne e bebendo cerveja gelada até que a tarde refrescava e ele se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.
E apesar de se acercar o bendito remate do luto e da desesperada espera, não notei no José Matias nem alvoroço elegantemente reprimido, nem revolta contra a lentidão do tempo, velho por vezes tão moroso e trôpego... Pelo contrário! Ao sorriso de radiosa certeza, que nesses anos o iluminara com um nimbo de beatitude, sucedera a seriedade carregada, toda em sombra e rugas, de quem se debate numa dúvida irresolúvel, sempre presente, roedora e dolorosa. Quer que lhe diga? Nesse Verão, no Hotel Francfort, sempre me pareceu que o José Matias, a cada instante da sua vida acordada, mesmo emborcando a fresca cerveja, mesmo calçando as luvas ao entrar para a caleche que o levava à Foz, angustiadamente perguntava à sua consciência: – “Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?” – E depois, uma manhã, ao almoço, realmente me assombrou, exclamando ao abrir o jornal, com um assomo de sangue na face: “O quê? Já são 29 de Agosto? Santo Deus... Já o fim de Agosto!...”
Voltei a Lisboa, meu amigo. O Inverno passou, muito seco e muito azul. Eu trabalhei nas minhas Origens do Utilitarismo. Um domingo, no Rossio, quando já se vendiam cravos nas tabacarias, avistei dentro dum cupé a divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. E nessa semana encontrei no meu Diário Ilustrado a notícia curta, quase tímida, do casamento da sr.ª D. Elisa Miranda... Com quem, meu amigo? – Com o conhecido proprietário, o sr. Francisco Torres Nogueira!...
O meu amigo cerrou aí o punho, e bateu na coxa, espantado. Eu também cerrei os punhos ambos, mas agora para os levantar ao Céu onde se julgam os feitos da Terra, e clamar furiosamente, aos urros, contra a falsidade, a inconstância ondeante e pérfida, toda a enganadora torpeza das mulheres, e daquela especial Elisa cheia de infâmia entre as mulheres! Atraiçoar à pressa, atabalhoadamente, apenas findara o luto negro, aquele nobre, puro, intelectual Matias! e o seu amor de dez anos, submisso e sublime!...
E depois de apontar os punhos para o Céu ainda os apertava na cabeça, gritando: – “Mas porquê? porquê?” – Por amor? Durante anos ela amara enlevadamente este moço, e dum amor que se não desiludira nem se fartara, porque permanecia suspenso, imaterial, insatisfeito. Por ambição? Torres Nogueira era um ocioso amável como José Matias, e possuía em vinhas hipotecadas os mesmos cinquenta ou sessenta contos que o José Matias herdara agora do tio Garmilde em terras excelentes e livres. Então porquê? certamente porque os grossos bigodes negros do Torres Nogueira apeteciam mais à sua carne do que o buço louro e pensativo do José Matias! Ah! bem ensinara S. João Crisóstomo que a mulher é um monturo de impureza, erguido à porta do Inferno!
Pois, meu amigo, quando eu assim rugia, encontro uma tarde na rua do Alecrim o nosso Nicolau da Barca, que salta da tipóia, me empurra para um portal, agarra excitadamente no meu pobre braço e exclama engasgado: – “Já sabes? Foi o José Matias que recusou! Ela escreveu, esteve no Porto, chorou... Ele nem consentiu em a ver! Não quis casar, não quer casar!” Fiquei trespassado. – “E então ela...” – “Despeitada, fortemente cercada pelo Torres, cansada da viuvice, com aqueles belos trinta anos em botão, que diabo! Cotada, casou!” Eu ergui os braços até à abóbada do pátio: – “Mas então esse sublime amor do José Matias?” O Nicolau, seu íntimo e confidente, jurou com irrecusável segurança: – “É o mesmo sempre! Infinito, absoluto... Mas não quer casar!” – Ambos nos olhámos, e depois ambos nos separámos, encolhendo os ombros, com aquele assombro resignado que convém a espíritos prudentes perante o Incognoscível. Mas eu, Filósofo, e portanto espírito imprudente, toda essa noite esfuraquei o acto do José Matias com a ponta duma Psicologia que expressamente aguçara: – e já de madrugada, estafado, concluí, como se conclui sempre em Filosofia, que me encontrava diante duma Causa Primaria, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem vantagem para ele, para mim ou para o Mundo, a ponta do meu Instrumento!
Depois a divina Elisa casou e continuou habitando a Parreira com o seu Torres Nogueira, no conforto e sossego que já gozara com o seu Matos Miranda. No meado do Verão José Matias recolheu do porto a Arroios, ao casarão do tio Garmilde, onde recuperou os seus antigos quartos, com as varandas para o jardim, já florido de dálias que ninguém tratava. Veio Agosto, como sempre em Lisboa silencioso e quente. Aos domingos José Matias jantava com D. Mafalda de Noronha, em Benfica, solitàriamente – porque o Torres Nogueira não conhecia aquela venerada senhora da Quinta dos Cedros. A divina Elisa, com vestidos caros, passeava à tarde no jardim entre as roseiras. De sorte que a única mudança, naquele doce canto de Arroios, parecia ser o Matos Miranda no seu belo jazigo dos Prazeres, todo de mármore – e o Torres Nogueira no leito excelente de Elisa.
Havia, porém, uma tremenda e dolorosa mudança – a do José Matias! Adivinha o meu amigo como esse desgraçado consumia os seus estéreis dias? Com os olhos, e a memória, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, nas janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente abertas, em aberto êxtase, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das cortinas fechadas, através duma escassa fenda, escondido, surrupiando furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada pela angústia e pela derrota. E compreende porque sofria assim, esse pobre coração? Certamente porque Elisa, desdenhada pelos seus braços fechados, correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais acessíveis e prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão. O José Matias permanecia devotamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual onde não entram as imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos do orgulho, nem as emoções da carne – o amava, a ele, ùnicamente a ele, e com um amor que não deperecera, não se alterara, floria em todo o seu viço, mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O que o torturava, meu amigo, o que lhe cravara longas rugas em curtos meses, era que um homem, um marcho, um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que era sua! e que do modo mais santo e mais socialmente puro, sob o patrocínio enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à farta, os divinos lábios que ele nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência e quase no terror da sua divindade! Como lhe direi?... O sentimento deste extraordinário Matias era o de um monge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente enlevo – quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e ergue obscenamente a túnica da Imagem. O meu amigo sorri... E então o Matos Miranda? Ah! meu amigo! esse era diabético, e grave, e obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes, quando ele conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Torres Nogueira, esse, rompera brutalmente através do seu puríssimo amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque dum antigo pegador de touros, e empolgara aquela mulher – a quem revelara talvez o que é um homem!
Mas, com os demónios! essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe oferecia, na frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum desdém ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosidade espiritual deste Matias! Ao cabo de uns meses ele esquecera, positivamente esquecera essa recusa afrontosa, como se fora um leve desencontro de interesses materiais ou sociais, passado há meses, no Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com as janelas de Elisa diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na sombra, a dor presente, a dor real, era que ele amara sublimemente uma mulher, e que a colocara entre as estrelas para mais pura adoração, e que um bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrelas e a arremessara para a cama!
Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo, duma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo, que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! um ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.
E sabe o meu amigo o que exacerbou, mais furiosamente, este tormento? É que a pobre Elisa mostrava por ele o antigo amor! Que lhe parece? Infernal, hem?... Pelo menos se não sentia o antigo amor intacto na sua essência, forte como outrora e único, conservava pelo pobre Matias uma irresistível curiosidade e repetia os gestos desse amor... Talvez fosse apenas a fatalidade dos jardins vizinhos! Não sei. Mas logo desde Setembro, quando o Torres Nogueira partiu para as suas vinhas de Carcavelos, a assistir à vindima, ela recomeçou, da borda do terraço, por sobre as rosas e as dálias abertas, aquela doce remessa de doces olhares com que durante dez anos extasiara o coração do José Matias.
Não creio que se escrevessem por cima do muro do jardim, como sob o regime paternal do Matos Miranda... O novo senhor, o homem robusto da bigodeira negra, impunha à divina Elisa, mesmo de longe, de entre as vinhas de Carcavelos, retraimento e prudência. E acalmada por aquele marido, moço e forte, menos sentiria agora a necessidade de algum encontro discreto na sombra tépida da noite, mesmo quando a sua elegância moral e o rígido idealismo do José Matias consentissem em aproveitar uma escada contra o muro... De resto, Elisa era fundamentalmente honesta; e conservava o respeito sagrado do seu corpo, por o sentir tão belo e cuidadosamente feito por Deus – mais do que da sua alma. E quem sabe?... Talvez a adorável mulher pertencesse à bela raça daquela marquesa italiana, a Marquesa Julia de Malfieri, que conservava dois amorosos ao seu doce serviço, um poeta para as delicadezas românticas e um cocheiro para as necessidades grosseiras.
Enfim, meu amigo, não psicologuemos mais sobre esta viva, atrás do morto que morreu por ela! O facto foi que Elisa e o seu amigo insensìvelmente recaíram na velha união ideal, através dos jardins em flor. E em Outubro, como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e extàticamente!
Parece que um tão extreme espiritualista, reconquistando a idealidade do antigo amor, devia reentrar também na antiga felicidade perfeita. Ele reinava na alma imortal de Elisa: – que importava que outro se ocupasse do seu corpo mortal? Mas não! o pobre moço sofria, angustiadamente. E, para sacudir a pungência destes tormentos, findou, ele tão sereno, duma tão doce harmonia de modos, por se tornar um agitado. Ah! meu amigo, que redemoinho e estrépito de vida! Desesperadamente, durante um ano, remexeu, aturdiu, escandalizou Lisboa! São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias... Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancòlicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do Sol!
Mas todo este alarido não lhe dissipou a dor – e foi então que, nesse Inverno, começou a jogar e a beber! Todo o dia se encerrava em casa (certamente por trás das vidraças, agora que Torres Nogueira regressara das vinhas), com olhos e alma cravados no terraço fatal; depois, à noite, quando as janelas de Elisa se apagavam, saía numa tipóia, sempre a mesma, a tipóia do Gago, corria à roleta do Bravo, depois ao clube do “Cavalheiro”, onde jogava frenèticamente até à tardia hora de cear, num gabinete de restaurante, com molhos de velas acesas, e o colares, e o champanhe, e o conhaque correndo em jorros desesperados.
E esta vida, espicaçada pelas Fúrias, durou anos, sete anos! Todas as terras que lhe deixara o tio Garmilde se foram, largamente jogadas e bebidas: e só lhe restava o casarão de Arroios e o dinheiro apressado, porque o hipotecara. Mas, sùbitamente, desapareceu de todos os antros de vinho e de jogo. E soubemos que o Torres Nogueira estava morrendo com uma anasarca!
Por esse tempo, e por causa dum negócio do Nicolau da Barca, que me telegrafara ansiosamente da sua quinta de Santarém (negócio embrulhado, duma letra), procurei o José Matias em Arroios, às dez horas, numa noite quente de Abril. O criado, enquanto me conduzia pelo corredor mal alumiado, já desadornado das ricas arcas e talhas da Índia do velho Garmilde, confessou que S. Ex.ª não acabara de jantar... E ainda me lembro, com um arrepio, da impressão desolada que me deu o desgraçado! Era no quarto que abria sobre os dois jardins. Diante duma janela, que as cortinas de damasco cerravam, a mesa resplandecia, com duas serpentinas, um cesto de rosas brancas e algumas das nobres pratas do Garmilde: e ao lado, todo estendido numa poltrona, com o colete branco desabotoado, a face lívida descaída sobre o peito, um copo vazio na mão inerte, o José Matias parecia adormecido ou morto.
Quando lhe toquei no ombro, ergueu num sobressalto a cabeça, toda despenteada: – “Que horas são?” – Apenas lhe gritei, num gesto alegre, para o despertar, que era tarde, que eram dez, encheu precipitadamente o copo, da garrafa mais chegada, de vinho branco, e bebeu lentamente, com a mão a tremer, a tremer... Depois, arredando os cabelos da testa húmida: – “Então que há de novo?” – Esgazeado, sem compreender, escutou, como num sonho, o recado que lhe mandava o Nicolau. Por fim, com um suspiro, remexeu uma garrafa de champanhe dentro do balde em que ela gelava, encheu outro copo, murmurando: – “Um calor... Uma sede!...” Mas não bebeu: arrancou o corpo pesado à poltrona de verga, e forçou os passos mal firmes para a janela, a que abriu violentamente as cortinas, depois a vidraça... E ficou hirto, como colhido pelo silêncio e escuro sossego da noite estrelada. Eu espreitei, meu amigo! Na casa da Parreira duas janelas brilhavam, fortemente alumiadas, abertas à macia aragem. E essa claridade viva envolvia uma figura branca, nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do terraço, como esquecida numa contemplação. Era Elisa, meu amigo! Por trás, no fundo do quarto claro, o marido certamente arquejava, na opressão da anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso, ao seu doce amigo. O miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto daquela visão benfazeja. E entre eles rescendiam, na moleza da noite, todas as flores dos dois jardins... Sùbitamente Elisa recolheu, à pressa, chamada por algum gemido ou impaciência do pobre Torres. E as janelas logo se fecharam, toda a luz e vida se sumiram na casa da Parreira.
Então José Matias, com um soluço despedaçado, de transbordante tormento, cambaleou, tão ansiadamente se agarrou à cortina que a rasgou, e tombou desamparado nos braços que lhe estendi, e em que o arrastei para a cadeira, pesadamente, como a um morto ou a um bêbedo. Mas, volvido um momento, com espanto meu, o extraordinário homem descerra os olhos, sorri num lento e inerte sorriso, murmura quase serenamente: – “É o calor... Está um calor! Você não quer tomar chá?”
Recusei e abalei – enquanto ele, indiferente à minha fuga, estendido na poltrona, acendia trèmulamente um imenso charuto.
Santo Deus! já estamos em Santa Isabel! Como estes lagóias vão arrastando depressa o pobre José Matias para o pó e para o verme final! Pois, meu amigo, depois dessa curiosa noite, o Torres Nogueira morreu. A divina Elisa, durante o novo luto, recolheu à quinta duma cunhada também viúva, à “Corte Moreira”, ao pé de Beja. E o José Matias inteiramente se sumiu, se evaporou, sem que me revoassem novas dele, mesmo incertas – tanto mais que o íntimo por quem as conheceria, o nosso brilhante Nicolau da Barca, partira para a Ilha da Madeira, com o seu derradeiro pedaço de pulmão, sem esperança, por dever clássico, quase dever social, de tísico.
Todo esse ano, também, andei enfronhado no meu Ensaio dos fenómenos afectivos. Depois, um dia, no começo do Verão, descendo pela rua de S. Bento, com os olhos levantados, a procurar o n.º 214, onde se catalogava a livraria do Morgado de azemel, quem avisto eu à varanda duma casa nova e de esquina? A divina Elisa, metendo folhas de alface na gaiola de um canário! E bela, meu amigo! mais cheia e mais harmoniosa, toda madura, e suculenta, e desejável, apesar de ter festejado em Beja os seus quarenta e dois anos! Mas aquela mulher era da grande raça de Helena, que quarenta anos também depois do cerco de Tróia ainda deslumbrava os homens mortais e os Deuses imortais. E, curioso acaso! logo nessa tarde, pelo Seco, o João Seco da Biblioteca, que catalogava a livraria do Morgado, conheci a nova história desta Helena admirável.
A divina Elisa tinha agora um amante... E ùnicamente por não poder, com a sua costumada honestidade, possuir um legítimo e terceiro marido. O ditoso moço que ela adorava era com efeito casado... Casado em Beja com uma espanhola que, ao cabo dum ano desse casamento e de outros requebros, partira para Sevilha, passar devotamente a Semana Santa, e lá adormecera nos braços dum riquíssimo criador de gado. O marido, pacato apontador de Obras Públicas, continuara em Beja, onde também vagamente ensinara um vago desenho... Ora uma das suas discípulas era a filha da senhora da “Corte Moreira”: e aí na quinta, enquanto ele guiava o esfuminho da menina, Elisa o conheceu e o amou, com uma paixão tão urgente que o arrancou precipitamente às Obras Públicas, e o arrastou a Lisboa, cidade mais propícia do que Beja a uma felicidade escandalosa, e que se esconde. O João Seco é de Beja, onde passara o Natal; conhecia perfeitamente o apontador, as senhoras da “Corte Moreira”; e compreendeu o romance quando das janelas desse n.º 214, onde catalogava a Livraria do Azemel, reconheceu Elisa na varanda da esquina, e o apontador enfiando regaladamente o portão, bem vestido, bem calçado, de luvas claras, com aparência de ser infinitamente mais ditoso naquelas obras particulares do que nas Públicas.
E dessa mesma janela do 214 o conheci eu também, o apontador! Belo moço, sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade (e talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viúvo, e portanto “vazio”, como diz a Bíblia. Eu frequentava esse n.º 214, interessado no catalogo da Livraria, porque o Morgado de Azemel possuía, pelo irónico acaso das heranças, uma colecção incomparável dos Filósofos do século XVIII. E passadas semanas, saindo desses livros uma noite (o João Seco trabalhava de noite) e parando adiante, à beira dum portal aberto, para acender o charuto, enxergo à luz tremente do fósforo, metido na sombra, o José Matias! Mas que José Matias, meu caro amigo! Para o considerar mais detidamente, raspei outro fósforo. Pobre José Matias! Deixara crescer a barba, uma barba rara, indecisa, suja, mole como cotão amarelado: deixara crescer o cabelo, que lhe surdia em farripas secas de sob um velho chapéu-coco: mas todo ele, no resto, parecia diminuído, minguado, dentro duma quinzena de mescla enxovalhada e dumas calças pretas, de grandes bolsos, onde escondia as mãos com o gesto tradicional, tão infinitamente triste, da miséria ociosa. Na espantada lástima que me tomou, apenas balbuciei: – “Ora esta! Você! Então que é feito?” – E ele, com a sua mansidão polida, mas secamente, para se desembaraçar, e numa voz que a aguardente enrouquecera: “Por aqui, à espera de um sujeito”. – Não insisti, segui. Depois, adiante, parando, verifiquei o que num relance adivinhara – que o portal negro ficava em frente ao prédio novo e às varandas de Elisa!
Pois, meu amigo, três anos viveu o José Matias encafuado naquele portal!
Era um desses pátios de Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados, sempre sujos, cavernas laterais da rua, de onde ninguém escorraça os escondidos da miséria ou da dor. Ao lado havia uma taverna. Infalìvelmente, ao anoitecer, o José Matias descia a rua de S. Bento, colado aos muros, e,como uma sombra, mergulhava na sombra do portal. A essa hora já as janelas de Elisa luziam, de Inverno embaciadas pela névoa fina, de Verão ainda abertas e arejando no repouso e na calma. E para elas, imóvel, com as mãos nas algibeiras, o José Matias se quedava em contemplação. Cada meia hora, subtilmente, enfiava para a taverna. Copo de vinho, copo de aguardente; – e, de mansinho, recolhia à negrura do portal, ao seu êxtase. Quando as janelas de Elisa se apagavam, ainda através da longa noite, mesmo das negras noites de Inverno – encolhido, transido, a bater as solas rotas do lajedo, ou sentado ao fundo, nos degraus da escada – ficava esmagando os olhos turvos na fachada negra daquela casa, onde a sabia dormindo com o outro!
Ao princípio, para fumar um cigarro apressado, trepava até ao patamar deserto, a esconder o lume que o denunciaria no seu esconderijo. Mas depois, meu amigo, fumava incessantemente, colado à ombreira, puxando o cigarro com ânsia, para que a ponta rebrilhasse, o alumiasse! E percebe porquê, meu amigo?... Porque Elisa já descobrira que, dentro daquele portal, a adorar submissamente as suas janelas, com a alma de outrora, estava o seu pobre José Matias!...
E acreditará o meu amigo que então, todas as noites, ou por trás da vidraça ou encostada à varanda (com o apontador dentro, estirado no sofá, já de chinelas, lendo o Jornal da Noite), ela se demorava a fitar o portal, muito quieta, sem outro gesto, naquele antigo e mudo olhar do terraço por sobre as rosas e as dálias? O José Matias percebera, deslumbrado. E agora avivava desesperadamente o lume, como um farol, para guiar na escuridão os amados olhos dela, e lhe mostrar que ali estava, transido, todo seu, e fiel!
De dia nunca ele passava na rua de S. Bento. Como ousaria, com o jaquetão roto nos cotovelos e as botas cambadas? Por que aquele moço de elegância sóbria e fina tombara na miséria do andrajo? Onde arranjava mesmo, cada dia, os três patacos para o vinho e para a posta de bacalhau nas tavernas? Não sei... Mas louvemos a divina Elisa, meu amigo! muito delicadamente, por caminhos arredados e astutos, ela, rica, procurara estabelecer uma pensão ao José Matias, mendigo. Situação picante, hem? a grata senhora dando duas mesadas aos seus dois homens – o amante do corpo e o amante da alma! Ele, porém, adivinhou de onde procedia a pavorosa esmola – e recusou, sem revolta, nem alarido de orgulho, até com enternecimento, até com uma lágrima nas pálpebras que a aguardente inflamara!
Mas só com noite muito cerrada ousava descer à rua de S. Bento, e enfiar para o seu portal. E adivinha o meu amigo como ele gastava o dia? A espreitar, a seguir, a farejar o apontador de Obras Públicas! Sim, meu amigo! uma curiosidade insaciada, frenética, atroz, por aquele homem, que Elisa escolhera!... Os dois anteriores, o Miranda e o Nogueira, tinham entrado na alcova de Elisa, pùblicamente, pela porta da Igreja, e para outros fins humanos além do amor – para possuir um lar, talvez filhos, estabilidade e quietação na vida. Mas este era meramente o amante, que ela nomeara e mantinha só para ser amada: e nessa união não aparecia outro motivo racional senão que os dois corpos se unissem. Não se fartava, portanto, de o estudar, na figura, na roupa, nos modos, ansioso por saber como era esse homem, que, para se completar, a sua Elisa preferia entre a turba dos homens. Por decência, o apontador morava na outra extremidade da rua de S. Bento, diante do Mercado. E essa parte da rua, onde o não surpreenderiam, na sua pelintrice, os olhos de Elisa, era o paradeiro do José Matias, logo de manhã, para mirar, farejar o homem, quando ele recolhia da casa de Elisa, ainda quente do calor da sua alcova. Depois não o largava, cautelosamente, como um larápio, rastejando de longe no seu rasto. E eu suspeito que o seguia assim menos por curiosidade perversa do que para verificar se, através das tentações de Lisboa, terríveis para um apontador de Beja, o homem conservava o corpo fiel a Elisa. Em serviço da felicidade dela – fiscalizava o amante da mulher que amava!
Requinte furioso de espiritualismo e devoção, meu amigo! A alma de Elisa era sua e recebia perenemente a adoração perene: e agora queria que o corpo de Elisa não fosse menos adorado, nem menos lealmente, por aquele homem a quem ela entregara o corpo! Mas o apontador era fàcilmente fiel a uma mulher tão formosa, tão rica, de meias de seda, de brilhantes nas orelhas, que o deslumbrava. E quem sabe, meu amigo? talvez esta fidelidade, preito carnal à divindade de Elisa, fosse para o José Matias a derradeira felicidade que lhe concedeu a vida. Assim me persuado, porque, no Inverno passado, encontrei o apontador, numa manhã de chuva, comprando camélias a um florista da Rua do Ouro; e defronte, a uma esquina, o José Matias, escaveirado, esfrangalhado, cocava o homem, com carinho, quase com gratidão! E talvez nessa noite, no portal, tiritando, batendo as solas encharcadas, com os olhos enternecidos nas escuras vidraças, pensasse: – “Coitadinha, pobre Elisa! Ficou bem contente por ele lhe trazer as flores!”
Isto durou três anos.
Enfim, meu amigo, anteontem, o João Seco apareceu em minha casa, de tarde, esbaforido: – “Lá levaram o José Matias, numa maca, para o hospital, com uma congestão nos pulmões!”
Parece que o encontraram, de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as varandas de Elisa. Corri ao hospital. Morrera... Subi, com o médico de serviço, à enfermaria. Levantei o lençol que o cobria. Na abertura da camisa suja e rota, preso ao pescoço por um cordão, conservava um saquinho de seda, puído e sujo também. Decerto continha flor, ou cabelos, ou pedaço de renda de Elisa, do tempo do primeiro encanto e das tardes de Benfica... Perguntei ao médico, que o conhecia e o lastimava, se ele sofrera. – “Não! Teve um momento comatoso, depois arregalou os olhos, exclamou Oh! com grande espanto, e finou.”
Era o grito da alma, no assombro e horror de morrer também? Ou era a alma triunfando por se reconhecer enfim imortal e livre? O meu amigo não sabe; nem o soube o divino Platão; nem o saberá o derradeiro filósofo na derradeira tarde do mundo.
Chegámos ao cemitério. Creio que devemos pegar às borlas do caixão... Na verdade, é bem singular este Alves Capão, seguindo tão sentidamente o nosso pobre espiritualista... Mas, Santo Deus, olhe! Além, à espera, à porta da Igreja, aquele sujeito compenetrado, de casaca, com paletó alvadio... É o apontador de Obras Públicas! E traz um grosso ramo de violetas... Elisa mandou o seu amante carnal acompanhar à cova e cobrir de flores o seu amante espiritual! Mas, oh meu amigo, pensemos que, certamente, nunca ela pediria ao José Matias para espalhar violetas sobre o cadáver do apontador! É que sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dele tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de si recebe, se tratará com brutalidade e desdém! Grande consolo, meu amigo, este apontador com o seu ramo, para um Metafísico que, como eu, comentou Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte e provou suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem... – Com efeito, está frio... Mas que linda tarde!

Caso do vestido (Drummond) e Mito de Penélope

Link para o poema "Caso do vestido", de Carlos Drummond de Andrade :

http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/drumond48.htm


Mito de Penélope

Na mitologia grega, Penélope (Πηνελόπη) é a esposa de Ulisses. Ela aguarda por ele durante todo o seu retorno da Guerra de Tróia, narrado na Odisséia, de Homero.
Enquanto Ulisses guerreava em altos mares, o pai de Penélope, sugeriu que sua filha se casasse novamente. Ela, uma mulher apaixonada e fiel por seu marido, decidiu que o esperaria até a sua volta. Diante da insistência de seu pai, para não desagradá-lo, Penélope resolveu aceitar a corte dos pretendentes à sua mão, mas com uma condição: casaria somente após terminar de tecer uma colcha.
E assim fez. De manhã aos olhos de todos, Penélope tecia a colcha, de noite ela desmanchava, e foi assim até uma de suas servas descobrir a mentira e contar toda a verdade. Então ela teve outra idéia e fez a proposta para seu pai e para seus pretendentes: o homem que conseguisse atirar uma flecha como Ulisses poderia se casar com ela. E foi assim que nenhum pretendente conseguiu, até o dia em que um mendigo pediu para tentar atirar e conseguiu. No mesmo instante, Penélope reconheceu seu amado marido Ulisses.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:JohnWilliamWaterhouse-PenelopeandtheSuitors%281912%29.jpg

13 de agosto de 2006

O GRANDE MENTECAPTO - Fernando Sabino
(Trechos de materiais retirados de vários sites da internet)

Fernando Sabino é autor contemporâneo dos mais importantes. Dono de um estilo inconfundível em que ressalta o extremo cuidado com a linguagem, é um especialista em criar situações cômicas de profunda beleza plástica. Sua capacidade descritiva faz com que o leitor, além de se deleitar com a complicação da trama, consiga visualizar a cena criada pelo narrado. Sua obra é extensa e inclui principalmente crônicas e contos. Seus romances - O Encontro Marcado; O Menino no Espelho; O Grande Mentecapto - são fruto de profunda preparação e artesanato impecável. Por isso mesmo cresce a cada dia a importância de sua obra no panorama da atual Literatura Brasileira.
Nesse romance de 1979, o Autor elabora uma trama com a nítida intenção de homenagear as pessoas humildes, simples e puras. Já na epígrafe da narrativa, "Todo aquele, pois, que se fizer pequeno como este menino, este será o maior no reino dos céus.". nota-se a vontade de elevar os puros, os inocentes e os ingênuos.
Na linha da novela picaresca - vide o Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes -, em que o personagem desloca-se por um espaço indefinido, à cata dos conflitos, para resolvê-los heroicamente, Viramundo vive uma seqüência de peripécias acontecidas no Estado de Minas Gerais, contracenando com personagens dos mais variados matizes e comportando-se sempre como o bem-intencionado, o puro, o ingênuo submetido às artimanhas e maldades de um mundo que ainda não está de todo resolvido. Andarilho, louco, despossuído, vagabundo, idealista. Marginal em uma sociedade que não entende e em que não se enquadra, o Viramundo instaura um sentimento de ternura e de pena por todos aqueles que, em sua simplicidade, sofrem o descaso, a ironia, a opressão e a prepotência.
Como o Quixote, com a sua amada Dulcinéia, e como Dirceu, com a sua adorada Marília, Viramundo põe em suas ações tresvariadas a esperança de realizar-se emocionalmente com a sua idealizada e inalcançável Marília, filha do governador de Minas Gerais. Sua ilusão alucinada é reforçada pelos pseudo amigos que o enganam com falsas cartas de amor e incentivam sua loucura mansa e seu sonho impossível.
A pureza deste aventureiro é a crítica à hipocrisia das relações humanas em um mundo que perdeu o sentido da solidariedade e da fraternidade. Sua alegria ingênua e desinteressada opõe-se ao jogo bruto dos interesses malferidos, ao conservadorismo e à arrogância. Porta-voz dos loucos, dos mendigos, das prostitutas, o Viramundo conhece os meandros da enganação e da falsidade dos políticos e dos poderosos.
Viramundo não era conhecido, mas termina por criar fama em razão dos casos incríveis em que se envolve. Sob a aparência imunda de um mendigo está um sujeito com cultura geral incomum. Sua fala de homem conhecedor surpreende e sua experiência de ex-seminarista e ex-militar confunde e admira aqueles com quem convive. Sua esquisitice e suas respostas prontas a todas as indagações fazem com se acredite tratar-se de um louco manso e inofensivo.
Outro aspecto interessante é a exploração da temática da loucura. O Autor parece convidar o leitor a uma reflexão sobre a origem e o convívio com a idéia da excentricidade do comportamento humano. Viramundo pode ser considerado um louco, mas quem não o é? O que a sociedade considera loucura? Como classificar e tratar os indivíduos que atuam em dissonância com aquilo que se considera normalidade? A sociedade mostrada no romance está povoada de tipos que comumente chamamos de loucos: os habitantes de Mariana agem desvairadamente ao tentar linchar Dª. Peidolina; o diretor do hospício é mais estranho que os próprios internos do manicômio; o capitão Batatinhas é absolutamente alienado. Há no decorrer de toda a narrativa o questionamento da fragilidade dos limites entre a sanidade e a loucura.
No limiar da consumação de sua caminhada, Viramundo mudou. No começo era idealista e cheio dos cometimentos da paixão. Manteve-se assim durante muito tempo até encarar a dura realidade da convivência humana. A série de acontecimentos em que figura como perdedor física e emocionalmente faz com que se desiluda. Descobre que as cartas de amor eram falsas; os amigos eram falsos; sua crença era falsa. Por todo lado só encontra sofrimento, opressão, hipocrisia. Está só, absolutamente só, e a solidão é tudo que lhe resta.
Seu fim é emblemático. Morre vitimado pelo próprio irmão. Paga por um crime que não cometeu. A intertextualidade bíblica é evidente: compara a trajetória e o comportamento de Viramundo com a Via-Sacra do Cristo, em todos os sentidos, inclusive no sacrifício final.

(...)

Como seus contos e crônicas prenunciavam, com seu humorismo, suas situações cômicas, suas ironias, suas sátiras, o novo livro compreendia tudo isto nas páginas deste romance picaresco em que o herói ou o anti-herói é como a criação imortal de Cervantes. Mas com seu imortal antecessor sempre teve um ideal de proteção dos fracos e dos humilhados, de consertar “Los tuertos” de que a vida está cheia. E mais, e um pícaro sem picarice, não é amoral, traiçoeiro, malandro, vigarista. Suas aventuras e desventuras lhe advêm da sua honestidade, do seu ideal, de seu senso da liberdade e da justiça. Por isso, como D. Quixote, sofre, apanha, é ridicularizado e morre defendendo um ideal de justiça e liberdade, ao se fazer o chefe duma revolta de presos, de loucos, de mendigos e de prostitutas.

– ENREDO & PERSONAGENS
Como é norma do romance picaresco, tudo gira em redor do herói, isto é, do pícaro. Em torno de Geraldo Viramundo e seus inumeráveis apelidos. Filho de um português, o Boaventura e de D. Nina, italiana. Seu nome de batismo: Geraldo Boaventura. Seu nome de nobreza: José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva. Sua glória e imortalidade: Viramundo. Um doido manso (doido de seguirmos os padrões tradicionais com que nossa sociedade mede normalidade e anormalidade) que saiu pelo mundo (das Minas Gerais), vivendo e sofrendo, em procura da liberdade. Uma liberdade natural, humana, total.
Nasceu e viveu sua infância em Rio Acima: fez tudo que os meninos, da idade, costumam fazer. Brincou muito no rio de sua terra. Fez para o trem que não parava nunca na sua cidade. Apostou que faria para o trem e ganhou a aposta de quinze amigos, treze meninos e duas meninas. (A Cremilda, filha da professora e amada de todos e a pretinha Salomé...) Com a façanha começa a virar herói. (Para parar o trem, ficou no meio da linha. O maquinista não teve outro recurso. Freou a composição. E xingou muito...) Um dia, de conversa com o Pe. Limeira, manifestou vontade de ser padre. Houve choradeira geral em casa. E ele foi para Mariana. Nada ou quase nada se sabe de sua vida seminarística. O certo é que um dia se meteu num confessionário e ouviu as inconfidências da viúva Correia Lopes, D. Pretolina, D. Lina, vulgarmente chama de Peidolina. Descoberta a malandragem, o seminarista Geraldo Boaventura foi expulso da casa sagrada do seminário... Mais tarde se põe em defesa da viúva, leva uma pedrada e é expulso aos gritos e empurrões. E começou a palmilhar os caminhos da vida: tinha 18 anos e se chamou Viramundo.
Suas andanças abrangem numerosíssimas cidade mineiras, de todos os cantos e tamanhos, até chegar a Belo Horizonte. Sempre metido em aventuras e desventuras... Foi em Ouro Preto que conheceu a amada do seu coração – Marília Ladisbão, filha de Clarismundo Ladisbão, Governador Geral das Minhas Gerais. (Viramundo, como D. Quixote, se apaixonou por essa Dulcinéia...) E o amor lhe trouxe muitas amolações. No meio dos estudantes que vão representar para o Governador, atrapalha tudo, erra o seu papel, é surrado e acaba num hospital. Numa festa ao Governador, o herói se mete em comilanças e acaba com uma irresistível dor de barriga. O toalete estava ocupado. Não podia esperar. Subiu uma escada, encontrou um cano, certamente do esgoto, e o jeito foi descarregar no dito cano. O cano descia livre, condutor de ar, em cima dum ventilador... A festa acabou, o Governador se foi... Sem a presença da amada, Viramundo deixa Ouro Preto. Esteve em Barcelona, acabou num hospício e candidato a prefeito. Na cidade, gastou o seu francês com o grande escritor Bernanos. Depois foi servir à Pátria num quartel. Foram tantas e tamanhas as suas atrapalhadas que foi devolvido à simples vida civil. Esteve em São João Del Rei, andou preso em Tiradentes, onde conheceu o João Toco que contou sua própria vida.
(Giramundo, Viramundo, Rolamundo... e o tempo, e a vida vão passando...) Até os profetas do Aleijadinho, em Congonhas, conheceram o grande metencapto.
Em Uberaba pegou touro à unha. Andou de ceca em Meca, cumprindo o seu destino de andejo. Em Cataguases, segundo dizem, foi confundido com o escritor Rosário Fusco, outro grande pícaro.
(Leitor, veja nas pág. 185 a 188 alguns lugares dos muitíssimos que o nosso herói conheceu. De agora em diante eles ficarão imortalizados pelo seu nome, isto é, apelido, e pela sua glória imortal...)
Em Belo Horizonte, metido com uma multidão de gente miúda, mendigos, prostitutas, vagabundos, desocupados, injustiçados, arraia-miúda... faz uma revolução. E com apoio de muitos políticos da oposição, parlamenta com o governador, mas nada resolve. A polícia cercou a Praça da Liberdade, dissolveu a multidão, acabou com a revolução do herói Viramundo. E ele sozinho, ou quase, com dois companheiros amigos fiéis, o Capitão Batatinhas e Barbeca (vendedor de esterco), se meteu em direção do Rio de Janeiro. Em protesto cívico, diante do Presidente, iam reivindicar os direitos de todos os injustiçados. Não chegou lá. No meio do caminho, perto de sua terra, foi amarrado, espancado e, com uma estocada no peito, fechou os olhos para este vale de lágrimas.
Geraldo Boaventura, 33 anos, sem profissão, natural de Rio Acima, foi enterrado como indigente numa cova rasa do cemitério local. Causa mortis: ignorada. Descanse em paz.
Foi assim que Geraldo Viramundo e todos os outros seus numerosos apelidos deixou o anonimato em que vivera, sofrera e morrera, para entrar na imortalidade.
Quem quiser saber do destino de muitos outros personagens dessas estórias, leia o epílogo do livro. O autor imortalizou ainda o último sorriso do pobre e grande herói.
“De viramundo, fica apenas o sorriso que se eternizou na sua face.”
(...)
1) A narrativa é, predominadamente, linear e segue (costume de novela picaresca) a ordem cronológica dos acontecimentos: nascimento, origens, família, as peripécias, aventuras e desventuras, até a morte do nosso vagabundo. No miolo do romance se encadeiam os episódios, as façanhas, os incidentes, o que serve para “engordar” a narrativa. Tudo gira em torno de Viramundo.
2) Para criar os personagens da novela picaresca, o autor usa e abusa dos traços caricaturais. E, assim, o herói e o seu pequeno mundo adquirem, pelos exageros caricaturais, traços e elementos capazes de levar ao riso e à sátira. Os apelidos também entram na jogada, principalmente aqueles que têm características depreciativas. Geraldo Boaventura (é o herói) tem 53 apelidos citados nas páginas 54 e 56. “Além desses, centenas de outros apelidos, epítetos, alcunhas, cognomes, ápodos e aliases...”
3) Há, no romance, algumas notas explicativas, muitas referências e acontecimentos e pessoas reais: Napoleão, D. Pedro, Tiradentes: Shakespeare, Maiakovski, Beethoven, Freud, Jung, Albalat, Umberto Eco; muitos escritores brasileiros, gente viva e morta;
4) O autor usou também do recurso de inserir uma estória ou estórias dentro da estória maior. João Toco conta sua estória para o Viramundo. (152 e segs.);
5) Fazem-se citações em francês, espanhol, inglês, latim, mostrando a erudição do pesquisador ou os conhecimentos do próprio ex-seminarista, transformado no herói Viramundo;
(...)
A palavra pícaro tem origem incerta e aparece como “sujeto ruin y de mala vida” desde o século XVI.
Na Idade Média, as fábulas criaram pícaros no reino animal: a raposa, por exemplo.
A literatura espanhola (séc. XVI) o fixou, definitivamente, com “La vida de Lazarillo de Tormes y sus fortunas e adversidades”. (Note-se o subtítulo de O Grande Mentecapto: “relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações”).
“Pícaro: tipo de persona descarada, traviesa, bufona y de no muy cristiano vivir... El pícaro, según creo, es el resultado de la comobinación de un estóico y de un cínico.
(Bonilla y San Martín – apud Manual de Literatura Española – Rodolfo M. Ragucci – Editorial Dom Bosco – Buenos Aires – 3ª ed. s.d. pág. 237).
“Añadase a todo que, aunque vicioso, el pícaro no es criminal y, a fuer de español, lleva siempre um sedimento religioso y cierta nobleza de corazón.” (Ragucci – ib. Pág. 237)
(...)
Há a predominância da sátira, clara ou escondida, que se revela no tom e nos traços caricaturais. Nenhum personagem escapa das linhas caricaturais e a figura mais caricatural é o Geraldo Viramundo, nosso herói.
O pícaro adota condutas conflitantes com os padrões sociais, voluntariamente ou não, contestando o que está estabelecido para a vida em grupo. Aparece como um doido, mas lúcido através de quem se vê um mundo diferente e se criticam os costumes. O pícaro é também um “gauche”.

"Fernando Sabino explora de maneira não agressiva o humor recôndito no mecanismo das coisas e dos homens: seu humor poderia receber a qualificação genérica de um desmonte progressivo da realidade, no sentido a nosso ver socrático: questiona a natureza das coisas, quer saber os limites das definições, toma a palavra do outro e a decompõe em seus próprios termos, como quem nada sabe da realidade examinada, e coloca aí o dinamismo das contradições e muitas vezes do ridículo de terceiros e dele próprio. Sabe rir de si mesmo, que é a suprema forma de humor. Desmonta a realidade por muito amar - toma a palavra do interlocutor como verdade inabalável para, em seguida, por um processo de desintegração mental e conceitual, ir mostrando que a pessoa não sabia bem o que estava dizendo..."
Matos, Marco Aurélio. Fernando Sabino: o verbo como aventura. In: SABINO, Fernando. Obra reunida. v.1, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.39. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira).

21 de maio de 2006

O monstro_Sérgio Sant´anna: Roteiro de leitura

O monstro (Sérgio Sant´anna)
aloisio andrade

1. Pós-modernismo: ecletismo, pluralidade, fragmentos de informação
2. individualismo pós-moderno: satisfação imediata, hedonismo, crise de valores
3. sociedades pós-industriais: indivíduo sincrético, sua natureza é confusa, indefinida, plural, não-totalizante
4. pastiche: imitação irônica, recuperação de gêneros literários, colagem
Nos três contos, usa-se a narração como uma forma de se reviver o amor, que, no entanto, é inatingível, incompleto, ligado à transcendência, e que se realiza no ato da narração, mas que se perde quando finda o texto
Ironia: narrar = amar : efemeridade, transitoriedade, incompletude = “Dorothy disse que todas as histórias são pela metade” (As cartas não mentem jamais)

Uma carta

Beatriz escreve uma carta para Carlos onde irá reviver a experiência sexual fugaz que tiveram
Ela é uma engenheira de uma cidade pequena, ele é secretário do governo, casado, em visita profissional
A construção da carta se dará como o processo de uma relação entre estranhos: descobrimento, desvendamento de impulsos carnais, clímax e afastamento
Para Beatriz, seus sentimentos “são como as obras que necessita edificar”
Propósito da carta: “Porque é nesta escrita e construção – e esta sua razão maior – que as coisas parecem ter acontecido, tornam-se reais e vivas. Escrevo para repetir, viver”.
A carta como um prolongamento do encontro e o encontro como um “pretexto” para a carta (complementaridade)
Se houvesse o gozo, não haveria a carta, e depois o vazio (descontinuidade)
Final: “Seja ou não violada esta carta, estará aqui esta mulher abrindo as pernas para o amante (...) esta pornografia como uma construção assinada também pelo corpo...”.

O monstro

Antenor Lott Marçal, 45 anos, professor universitário é preso por assassinato e estupro de Frederica Stucker, 20 anos, portadora de uma grave deficiência visual. Foi auxiliado (ou induzido) pela amante Marieta de Castro, 34 anos, que se suicidou ao saber que Antenor se entregaria à polícia.
Pastiche: reportagem policial = objetividade, levantamento de informações, sensacionalismo (revista Flagrante)
Discussão das formas grotescas e agressivas como o amor e o desejo sexual se manifestam
Na entrevista, Antenor revela a personalidade dominadora de Marieta
“Marieta queria verdadeiramente, as pessoas que a interessavam e a atraíam. A diferença, aquilo que Marieta não possuía ou atribuía a outrem, a exasperava”.
Ela queria desmistificar as pessoas, torná-las seres comuns
Encontro de Marieta com Frederica na Lagoa Rodrigo de Freitas, uma possível sedução
Antenor era uma espécie de escravo da amante que não se rebelava
Marieta queria transcender os limites da experiência física, ultrapassando o sexo
Voyerismo: ciúmes de Marieta, pois Antenor devora com os olhos Frederica, que já se encontra no apartamento da amante. Marieta coloca calmantes na bebida da garota. Enquanto ambos seviciam a garota, ela acorda. Eles a drogam com éter e cocaína, e a asfixiam com uma almofada. Frederica morre.
Antenor consuma o ato para satisfazer uma “voracidade sem limites” da amante– Marieta está novamente no controle da situação.
Fantasias de amor com Frederica para amenizar a violência do ato
Sexualidade: “crueldade e amor”
Sensação de aniquilamento depois do ato = desejo extinto, novamente revivido na memória, durante a entrevista = modo de Antenor possuí-la outra vez e protegê-la de Marieta
Eles carregam o corpo até um lugar ermo.
“Marieta não suportava a frustração. Havia uma espécie de pureza infantil em sua amoralidade. O fato é que se você tiver a psicologia de uma criança em um adulto dotado de força e inteligência, eis o monstro”
Antenor se entrega à polícia para sentir-se livre para amar Frederica e espera por uma transcendência, onde possa talvez encontrá-la
Força selvagem da sexualidade e do desejo como a natureza da criação

As cartas não mentem jamais

Narrativa em abismo: uma narrativa dentro de outra = metalinguagem
O pianista Antônio Flores e uma jovem francesa de 16 anos, Michelle, conversam após uma relação, no quarto de hotel onde Antônio está hospedado
A discussão e a curiosidade sobre a iniciação sexual de ambos e a menção da figura de Madame Zenaide
O pianista carioca está em Chicago, com uma francesa, falando inglês, conhecerá uma psicanalista que mora em Las Vegas, e irá falar com ela, pelo telefone, de Tóquio (Globalização)
Antônio fala sobre sua infância e suas composições a Michelle (Sinfonia da bola nº1, Sonata Atlântica) = composições de Flores interpretadas até pelo famoso maestro Karajan = mistura de elementos reais e ficcionais
Amor por Estela e a relação com a Sonata Atlântica. A traição da garota com outro garota da rua em que moravam: “queria que o outro rapaz possuísse Estela ali às minhas vistas, para que o meu aniquilamento fosse completo e definitivo”.
Conversa telefônica com René, pai de Michelle, e Dorothy, a psicanalista de Las Vegas
Gravação em fita da história sobre Madame Zenaide, para que Dorothy pudesse escutar: levado pela empregada, Antônio vai até ela para curar sua depressão, através da leitura de seu destino nas cartas
Nas cartas, a visão da morte, do sucesso e das mulheres: Estela, uma dama negra e uma de cabelos ruivos.
Madame Zenaide muda o destino de Antônio, iniciando-o sexualmente. O avô de Antônio fora um compositor de marchinhas de carnaval, que morrera no sótão do casarão em que moravam, embriagado de lança-perfume, pois sua mulher não o deixara sair para o carnaval. Zenaide, simbolicamente, livra Antônio de seguir o mesmo caminho de auto-destruição do avô.
Relação sexual de Antônio com a garota Estela : satisfação de um impulso sexual que logo se extingue, para se perpetuar na memória
Antônio Flores deixa Michelle dormindo no quarto de hotel: “o ato terminou e ele deve abandonar a cena para não estragá-la, para que as notas continuem a repercutir no tempo”
Conversa com Dorothy direto de Tóquio: Antônio carrega dentro de si a antiga casa e a cartomante = as cartas foram lidas outra vez em Chicago = os acontecimentos futuros mudam sempre quando se troca a posição das cartas
Ao final, fica subentendido que Antônio terá com Dorothy o mesmo tipo de relação que tivera com Michelle. No entanto, pode-se questionar se a história contado por ele, e gravada por Michelle, da dama de cabelos ruivos vislumbrada nas cartas, não poderia ter sido inventada, como uma forma de sedução.

Questões da UFV

29. O conto “O monstro”, de Sérgio Sant´anna, narra a história do estupro e do
assassinato de uma jovem – Frederica – que sofria de deficiência visual. A
respeito deste conto, marque a afirmativa INCORRETA:

a) O tema central do conto é a violência, tratada de forma simplista e banal
tal como aparece nos jornais sensacionalistas que, rotineiramente,
estampam as suas primeiras páginas com crimes hediondos.
b) O narrador tenta desvendar, através da consciência do assassino, as
causas que o levaram a cometer o crime.
c) A linguagem jornalística, também presente no conto, é misturada com
reflexões de cunho psicológico e filosófico sobre os limites humanos.
d) O conto origina-se do mesmo mote que inspira os romances policiais,
mas se diferencia deles porque parte, a priori, do assassino já
conhecido.
e) A estrutura pela qual é formada o conto – perguntas e respostas – deixa
entrever nos parênteses abertos, antes das respostas do entrevistado, a
sensibilidade do assassino.

30. Nos contos “Uma Carta” e “As cartas não mentem jamais”, de Sérgio
Sant’anna, encontramos características da narrativa pós-moderna, isto é,
da produção literária contemporânea. Assinale a alternativa que contém
uma característica dessa narrativa:

a) O paradoxo entre os acontecimentos reais e transcendentais.
b) A linguagem como instrumento de construção de sentidos.
c) O bucolismo das paisagens rurais contrapondo com as cenas urbanas.
d) A presença de narrativas longas e descritivas, como no Romantismo.
e) A mistura de elementos da natureza e da cultura estrangeira.