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19 de maio de 2008

Nove noites (Bernardo Carvalho)_trechos selecionados

Nove noites (Bernardo Carvalho)

Relato de Manoel Perna

1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergun­te aos índios.

Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia re­ceberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela supo­sição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antro­pólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanha­vam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desapare­cer comigo o que confiei à memória.


(...)

As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de inter­pretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para acreditar.

Relato do Narrador-jornalista:

(...) O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos ín­dios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice in­crível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: "Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empur­rados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobre­vivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou".

(...)

As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tenta­va dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a fic­ção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua per­gunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fun­do, ele não estava interessado), nem convencê-lo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final se­ria tudo inventado.

Relato de Manoel Perna

Estou certo de que o que ele me contou aos poucos, ao longo daquelas nove noites, foi uma confissão, mas de alguma coisa além do que pare­cia confessar. Foi a preparação da sua morte. (...)

Isto é para quando você vier. E preciso que esteja preparado. Quando se sentir só e abandonado, quando achar que perdeu tudo, pense no dr. Buell, meu amigo. Em algum momento, todos se sentirão sozinhos e abandonados. (...)

No dia do seu vigésimo séti­mo aniversário, ele me disse que sabia o que era a morte: um excesso que se anula. E ficar mais cansado do que o cansaço permite, exceder as próprias condições, reduzir-se a menos que zero, ultrapassar as vin­te e quatro horas de um dia sem chegar ao dia seguinte. O diabo no caso dele foi não ter ninguém por perto para ampará-lo nessa malfa­dada hora. (...)

O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.

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